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ACORDAO DO TRIBUNAL (SEXTA SECCAO) DE 5 DE JULHO DE 1988. - W. J. R. MOL CONTRA INSPECTEUR DER INVOERRECHTEN EN ACCIJNZEN. - PEDIDO DE DECISAO PREJUDICIAL APRESENTADO PELO HOGE RAAD DER NEDERLANDEN. - IVA SOBRE A TRANSACCAO ILEGAL DE ESTUPEFACIENTES EFECTUADA NO TERRITORIO DE UM ESTADO-MEMBRO. - PROCESSO 269/86.
Colectânea da Jurisprudência 1988 página 03627
Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória
++++
Disposições fiscais - Harmonização das legislações - Impostos sobre o volume de negócios - Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado - Imposto incidente sobre as transacções de bens no território de um Estado-membro - Aplicação a estupefacientes incluídos no circuito ilegal - Inadmissibilidade - Repressão penal das infracções - Competência dos Estados-membros - Transacções ilegais de anfetaminas - Não sujeição
(Directiva 77/388 do Conselho, artigo 2.°)
A transacção ilegal de estupefacientes no mercado interno de um Estado-membro que, da mesma forma que a sua importação na Comunidade, apenas pode dar lugar a medidas repressivas, é estranha às disposições da sexta directiva em matéria de harmonização das legislações dos Estados-membros relativas aos impostos sobre o volume de negócios. Assim, o artigo 2.° desta directiva deve ser interpretado no sentido de que não se constitui nenhuma dívida de imposto sobre o volume de negócios na transacção ilegal de estupefacientes efectuada a título oneroso no território de um Estado-membro, na medida em que esses produtos não façam parte do circuito económico estritamente vigiado pelas autoridades competente com vista à sua utilização para fins médicos e científicos.
Esta constatação em nada prejudica a competência dos Estados-membros para reprimir as infracções à sua legislação em matéria de estupefacientes através de sanções apropriadas, com todas as consequências que elas podem comportar, designadamente no plano pecuniário.
O princípio da não sujeição vale igualmente para a transacção ilegal de anfetaminas, na medida em que esses produtos não façam parte do circuito económico estritamente vigiado pelas autoridades competentes.
No processo 269/86,
que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, pelo Hoge Raad der Nederlanden, destinado a obter, no processo pendente neste órgão jurisdicional entre
W. J. R. Mol, de Haule,
e
Inspecteur der Invoerrechten en Accijnzen, de Leeuwarden,
uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação do artigo 2.° da sexta directiva do Conselho (77/388), de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54),
O TRIBUNAL (Sexta Secção),
constituído pelos Srs. O. Due, presidente de secção, T. Koopmans, K. Bahlmann, C. Kakouris e T. F. O' Higgins, juízes,
advogado-geral: G. F. Mancini
secretário: B. Pastor, administradora
vistas as observações apresentadas:
- em representação de W.J.R. Mol, pelo advogado De Wal,
- em representação da República Federal da Alemanha, pelos Srs. Seidel e Dittrich, na qualidade de agentes,
- em representação da República Francesa, pelos Srs. Giullaume e Botte, na qualidade de agentes,
- em representação do Reino dos Países Baixos, pelos Srs. Jacobs e Borchardt, na qualidade de agentes,
- em representação da Comissão das Comunidades Europeias, pelos Sr. Buhl e pelo advogado Mees, na qualidade de agentes,
visto o relatório para audiência e após a realização desta em 29 de Outubro de 1987,
ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 21 de Abril de 1988,
profere o presente
Acórdão
1 Por acórdão de 29 de Outubro de 1986, entrado no Tribunal em 5 de Novembro de 1986, o Hoge Raad der Nederlanden submeteu ao Tribunal, nos termos do artigo 177.° do Tratado CEE, uma questão prejudicial sobre a interpretação do artigo 2.° da sexta directiva (77/388) do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54; adiante sexta directiva).
2 Esta questão foi suscitada no âmbito de um litígio que opõe a administração fiscal neerlandesa a W. Mol, que vendeu anfetaminas em violação da lei neerlandesa sobre estupefacientes, litígio esse que tem por objecto a sujeição desse comércio de anfetaminas ao imposto sobre o volume de negócios. Tendo o Gerechtshof de Leeuwarden dado razão à administração, W. Mol interpôs um recurso de cassação, sustentando, designadamente, que as referidas transacções, devido ao seu carácter ilegal, não estavam sujeitas ao imposto em causa.
3 Considerando que esse litígio suscitava um problema que não tinha sido ainda solucionado pela jurisprudência do Tribunal, designadamente no acórdão de 28 de Fevereiro de 1984 (Einberger, 294/82, Recueil, p. 1177), o Hoge Raad submeteu ao Tribunal a seguinte questão prejudicial:
"O artigo 2.° da sexta directiva deve ser interpretado no sentido de que as transacções de anfetaminas, efectuadas a título oneroso no território do país não estão sujeitas ao imposto sobre o valor acrescentado, na medida em que se trata de transacções proibidas pela lei?"
4 Para mais ampla exposição dos factos do litígio no processo principal e das observações apresentadas ao Tribunal, remete-se para o relatório para audiência. Estes elementos do processo apenas serão adiante retomados na medida do necessário para a fundamentação da decisão do Tribunal.
5 Deve referir-se, antes de mais, que a questão suscitada pelo órgão jurisdicional nacional comporta, na realidade, dois aspectos distintos, um que diz respeito à questão de saber se o artigo 2.° da sexta directiva deve ser interpretado no sentido de que não se constitui nenhuma dívida de imposto sobre o volume de negócios na transacção ilegal de estupefacientes, efectuada a título oneroso, no território do país, e o outro que pretende saber se, em caso afirmativo, a regra da não sujeição ao IVA abrange também a transacção ilegal de anfetaminas.
Quanto ao primeiro aspecto da questão
6 Neste aspecto, recorde-se que o Tribunal, no acórdão de 28 de Fevereiro de 1984, já citado, interpretou o artigo 2.°, n.° 2, da sexta directiva no sentido de que não se constitui nenhuma dívida de imposto sobre o volume de negócios na importação ilegal na Comunidade de estupefacientes que não façam parte do circuito económico estritamente vigiado pelas autoridades competentes com vista a uma utilização para fins médicos e científicos.
7 W. Mol e a Comissão consideram que a solução adoptada nesse acórdão deve ser transposta para o domínio das transacções efectuadas no território do país. Com efeito, segundo eles, o Tribunal baseou a sua decisão essencialmente no raciocínio segundo o qual os estupefacientes, por definição, são objecto de uma proibição total de importação e de comercialização na Comunidade, o que excluiria do âmbito de aplicação da sexta directiva também a transacção no interior do país desses mesmos estupefacientes.
8 Os governos neerlandês, francês e alemão sustentam que o referido acórdão se limita à importação ilegal de estupefacientes e, portanto, não prejudica uma decisão sobre a sua transacção no território do país, tanto mais que o Tribunal realçou expressamente no mesmo acórdão que entre as duas operações existem diferenças nos planos económico e jurídico. Com efeito, na importação o facto gerador do IVA é essencialmente idêntico ao dos direitos aduaneiros, enquanto que a transacção no território do país apenas é tributável quando efectuada a título oneroso por um sujeito passivo agindo nessa qualidade.
9 Perante estes argumentos divergentes, deve recordar-se que o artigo 2.° da sexta directiva define, como âmbito de aplicação do imposto sobre o valor acrescentado:
"1) as entregas de bens e as prestações de serviços, efectuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade;
2) as importações de bens".
10 Neste contexto, verifica-se, a título preliminar, que o órgão jurisdicional nacional formulou a questão prejudicial, no primeiro aspecto, exclusivamente em relação à transacção ilegal de estupefacientes efectuada no território do Estado-membro em causa. Ora, a questão de saber se essa operação está sujeita ao IVA não foi ainda objecto da jurisprudência do Tribunal que, para além dos acórdãos relativos ao regime aduaneiro dos estupefacientes importados em contrabando, apenas foi chamado a pronunciar-se, no citado acórdão de 28 de Fevereiro de 1984, sobre a interpretação do artigo 2.°, n.° 2, da sexta directiva no caso de uma importação ilegal de estupefacientes na Comunidade. Neste acórdão, a questão das transacções ilegais no território do país não foi abordada.
11 Na falta de disposições expressas da directiva sobre este ponto, coloca-se em primeiro lugar a questão de saber se a transacção ilegal de estupefacientes no território do país constitui ou não uma operação tributável ou se a directiva deve ser interpretada no sentido de que deixa aos Estados-membros a faculdade de disso decidir.
12 Neste aspecto, verifica-se, como o Tribunal já declarou em relação às importações de estupefacientes no citado acórdão, que a directiva não pode ser interpretada como deixando esta questão fora do seu âmbito de aplicação. Semelhante interpretação seria inconciliável com o objectivo prosseguido pela directiva, que visa uma ampla harmonização nesse domínio e, designadamente, no que respeita ao âmbito de aplicação do imposto sobre o valor acrescentado.
13 Seguidamente, deve examinar-se se a sexta directiva, considerados o seu contexto e os seus objectivos, se opõe à sujeição ao IVA dos estupefacientes transaccionados ilegalmente no território do país.
14 A este propósito, deve declarar-se que a sexta directiva se baseia nos artigos 99.° e 100.° do Tratado CEE e tem por objectivo a harmonização ou a aproximação das legislações dos Estados-membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios "no interesse do mercado comum". Nos termos dos seus terceiro e quarto considerandos, a instituição de um sistema comum de IVA deve contribuir para a liberalização efectiva da circulação das pessoas, dos bens, dos serviços, dos capitais e para a integração das economias no mercado comum que permita uma concorrência sã e apresente características análogas às de um verdadeiro mercado interno.
15 Ora, sendo a nocividade dos estupefacientes geralmente reconhecida, a sua comercialização é proibida em todos os Estados-membros, à excepção de um comércio estritamente controlado com vista a uma utilização para fins médicos e científicos. Como o Tribunal já declarou no acórdão de 28 de Fevereiro de 1984, atrás citado, a propósito da sua importação ilegal na Comunidade, esses produtos, por definição, são abrangidos por uma proibição total de importação e de comercialização na Comunidade. O Tribunal acrescentou que essas mercadorias, cuja introdução no circuito económico e comercial da Comunidade está absolutamente fora de questão, e cuja importação ilegal apenas pode dar lugar a medidas repressivas, são totalmente estranhas às disposições da sexta directiva sobre a definição da matéria colectável e, por via de consequência, às disposições que se referem à constituição de uma dívida fiscal em matéria de imposto sobre o volume de negócios.
16 Este raciocínio é igualmente válido para a cobrança do IVA aquando da transacção no território do país. Com efeito, a circulação ilícita de estupefacientes no território do país, que, ela também, apenas pode dar lugar a medidas repressivas, é tão estranha aos objectivos da sexta directiva, e, por via de consequência, à constituição de uma dívida fiscal em matéria de imposto sobre o volume de negócios, como a importação ilícita desses mesmos estupefacientes.
17 Quanto à tese desenvolvida em sentido contrário pelos três governos que intervieram neste processo, observe-se que ela parece ter sido ditada pelo receio de que seja impossível delimitar a jurisprudência sobre o comércio ilegal de estupefacientes de outras operações económicas ilícitas, de forma que, por um tratamento fiscal mais favorável do comércio ilícito em geral, o princípio da neutralidade fiscal do sistema do IVA seja posto em causa.
18 Neste aspecto, tem de admitir-se que o princípio da neutralidade fiscal se opõe efectivamente, em matéria de cobrança do IVA, a uma diferenciação generalizada entre as transacções lícitas e as transacções ilícitas. Contudo, isto não é verdadeiro em relação à transacção de produtos como os estupefacientes, que apresentam características particulares devido a, pela sua própria natureza, serem objecto de uma proibição total de circulação em todos os Estados-membros, à excepção de um circuito económico estritamente vigiado com vista a uma utilização para fins médicos e científicos. Em tal situação específica, em que está excluída toda a concorrência entre um sector económico lícito e um sector económico ilícito, a não sujeição ao IVA não pode afectar o princípio da neutralidade fiscal.
19 Por esta mesma razão, o argumento que neste contexto os três governos retiram do artigo 4.°, n.° 1, da sexta directiva, que submete ao IVA toda a actividade económica "independentemente do fim ou do resultado dessa actividade", não pode proceder. Com efeito, embora a disposição invocada, ao definir a noção de sujeito passivo, cubra de forma geral as operações económicas sem distinguir entre as operações lícitas e ilícitas, esta conclusão não é no entanto pertinente em relação ao regime fiscal dos estupefacientes, dado que esses produtos estão já excluídos do âmbito de aplicação do IVA definido no artigo 2.° da sexta directiva.
20 Deve acrescentar-se que esta constatação em nada prejudica a competência dos Estados-membros para reprimir as infracções à sua legislação em matéria de estupefacientes através de sanções apropriadas, com todas as consequências que estas podem comportar, designadamente no plano pecuniário.
21 Deve, portanto, responder-se ao primeiro aspecto da questão prejudicial que o artigo 2.° da sexta directiva deve ser interpretado no sentido de que não se constitui nenhuma dívida de imposto sobre o volume de negócios na transacção ilegal de estupefacientes efectuada a título oneroso no território do país, na medida em que esses produtos não façam parte do circuito económico estritamente vigiado pelas autoridades competentes com vista à sua utilização para fins médicos e científicos.
Quanto ao segundo aspecto da questão
22 Nesta parte da questão, o órgão jurisdicional nacional pretende saber se a regra da não sujeição ao IVA, aplicável à transacção ilegal de estupefacientes no território do país, abrange também a transacção ilegal de anfetaminas.
23 Neste aspecto, deve observar-se que resulta das observações apresentadas ao Tribunal no quadro do presente processo prejudicial que o comércio de anfetaminas, devido à sua reconhecida nocividade, é geralmente proibido em todos os Estados-membros.
24 Esta situação jurídica reflete-se, no plano internacional, na Convenção sobre as Substâncias Psicotrópicas (Recueil des traités des Nations unies 1019, n.° 14956) que pretende prevenir, entre outros, o tráfico ilícito de anfetaminas, mesmo se se deve reconhecer que esta convenção não foi assinada por alguns Estados-membros, entre os quais o Reino dos Países Baixos, e que, portanto, não constitui uma base para a interpretação do direito comunitário.
25 Seguidamente, verifica-se que à proibição do comércio e anfetaminas prevista no direito nacional dos Estados-membros existem certas excepções de utilização bem limitadas e estritamente controladas pelas autoridades competentes. Assim, nos Estados-membros que são partes na convenção acima referida existem as excepções por esta previstas. Com efeito, a convenção dispõe nos artigos 5.°, n.° 2, e 4.°, que o comércio de anfetaminas não é proibido para uso para fins médicos e científicos; além disso, autoriza o transporte por viajantes internacionais de pequenas quantidades de preparados para uso pessoal, o emprego de substâncias psicotrópicas na indústria para a fabricação de substâncias ou produtos não psicotrópicos e a utilização dessas substâncias na captura de animais por pessoas expressamente autorizadas, na condição de essas utilizações serem estritamente controladas pelas autoridades competentes.
26 Daí resulta que, no que se refere à aplicação da sexta directiva, as anfetaminas se encontram em situação idêntica à dos estupefacientes. Por conseguinte, estão excluídas do âmbito de aplicação do IVA definido no artigo 2.° da sexta directiva, exceptuadas as utilizações estritamente controladas para fins bem determinados pelo direito internacional.
27 Deve pois responder-se ao segundo aspecto da questão prejudicial que a regra da não sujeição ao IVA abrange igualmente a transacção ilegal de anfetaminas, na medida em que esses produtos não façam parte do circuito económico estritamente vigiado pelas autoridades competentes.
Quanto às despesas
28 As despesas efectuadas pela República Federal da Alemanha, pela República Francesa, pelo Reino dos Países Baixos e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.
Pelos fundamentos expostos,
O TRIBUNAL (Sexta Secção),
pronunciando-se sobre a questão que lhe foi submetida pelo Hoge Raad der Nederlanden, por acórdão de 29 de Outubro de 1986, declara:
1)O artigo 2.° da sexta directiva do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios - sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, deve ser interpretado no sentido de que não se constitui nenhuma dívida de imposto sobre o volume de negócios na transacção ilegal de estupefacientes efectuada a título oneroso no território do país, na medida em que esses produtos não façam parte do circuito económico estritamente vigiado pelas autoridades competentes com vista à sua utilização para fins médicos e científicos.
2) A regra da não sujeição ao IVA abrange igualmente a transacção ilegal de anfetaminas, na medida em que esses produtos não façam parte do circuito económico estritamente vigiado pelas autoridades competentes.