Avis juridique important
Acórdão do Tribunal de 15 de Dezembro de 1995. - Union royale belge des sociétés de football association ASBL contra Jean-Marc Bosman, Royal club liégeois SA contra Jean-Marc Bosman e outros e Union des associations européennes de football (UEFA) contra Jean-Marc Bosman. - Pedido de decisão prejudicial: Cour d'appel de Liège - Bélgica. - Livre circulação dos trabalhadores - Regras de concorrência aplicáveis às empresas - Jogadores profissionais de futebol - Regulamentações desportivas relativas à transferência de jogadores que obrigam o novo clube a pagar uma indemnização ao antigo - Limitação do número de jogadores nacionais de outros Estados-Membros que podem ser utilizados em competição. - Processo C-415/93.
Colectânea da Jurisprudência 1995 página I-04921
Sumário
Partes
Fundamentação jurídica do acórdão
Decisão sobre as despesas
Parte decisória
1. Processo ° Requerimento de diligências de instrução ° Apresentação após o encerramento da fase oral do processo ° Condições de admissibilidade
(Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, artigos 59. , n. 2, e 60. )
2. Questões prejudiciais ° Competência do Tribunal de Justiça ° Limites ° Questões manifestamente destituídas de pertinência e questões hipotéticas colocadas num contexto que exclui uma resposta útil ° Competência para responder a questões colocadas no âmbito de um processo de acção declarativa previsto no direito nacional
(Tratado CEE, artigo 177. )
3. Direito comunitário ° Âmbito de aplicação ° Desporto exercido como actividade económica ° Inclusão
(Tratado CEE, artigo 2. )
4. Livre circulação de pessoas ° Trabalhadores ° Disposições do Tratado ° Condições de aplicação ° Existência de uma relação de trabalho ° Entidade patronal que não constitui uma empresa ° Não incidência
(Tratado CEE, artigo 48. )
5. Livre circulação de pessoas ° Trabalhadores ° Disposições do Tratado ° Âmbito de aplicação ° Regras que regem as relações económicas entre entidades patronais mas que afectam as condições de emprego dos trabalhadores ° Inclusão
(Tratado CEE, artigo 48. )
6. Livre circulação de pessoas ° Trabalhadores ° Liberdade de estabelecimento ° Livre prestação de serviços ° Disposições do Tratado ° Âmbito de aplicação ° Actividades desportivas ° Limites
(Tratado CEE, artigos 48. , 52. e 59. )
7. Livre circulação de pessoas ° Trabalhadores ° Disposições do Tratado ° Alcance ° Limitação por força do respeito da diversidade das culturas nacionais e regionais imposto pelo artigo 128. do Tratado CE ° Inadmissibilidade
(Tratado CEE, artigo 48. ; Tratado CE, artigo 128. , n. 1)
8. Direito comunitário ° Princípios ° Direitos fundamentais ° Liberdade de associação ° Implicações ° Direito de as associações desportivas estabelecerem regras susceptíveis de limitar a livre circulação dos desportistas profissionais ° Exclusão
(Acto Único Europeu, preâmbulo; Tratado da União Europeia, artigo F, n. 2)
9. Direito comunitário ° Princípios ° Princípio da subsidiariedade ° Alcance ° Restrição do exercício dos direitos conferidos aos particulares pelo Tratado ° Exclusão
10. Livre circulação de pessoas ° Trabalhadores ° Disposições do Tratado ° Âmbito de aplicação ° Regulamentação colectiva do trabalho assalariado não emanada de autoridade pública ° Inclusão
(Tratado CEE, artigo 48. )
11. Livre circulação de pessoas ° Trabalhadores ° Limitações justificadas por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública ° Possibilidade de invocação das referidas razões por entidade pública ou privada
(Tratado CEE, artigo 48. )
12. Livre circulação de pessoas ° Trabalhadores ° Disposições do Tratado ° Âmbito de aplicação ° Regras elaboradas por associações desportivas que estabelecem as condições de exercício de uma actividade assalariada por desportistas profissionais ° Inclusão
(Tratado CEE, artigo 48. )
13. Livre circulação de pessoas ° Trabalhadores ° Disposições do Tratado ° Âmbito de aplicação ° Desportista profissional nacional de um Estado-Membro que celebrou um contrato de trabalho com um clube de outro Estado-Membro para o exercício de uma actividade assalariada no território deste Estado ° Inclusão
(Tratado CEE, artigo 48. )
14. Livre circulação de pessoas ° Trabalhadores ° Regras elaboradas por associações desportivas que sujeitam a contratação de um desportista profissional por uma nova entidade patronal num outro Estado-Membro ao pagamento, por esta, de indemnizações em benefício da entidade patronal anterior ° Inadmissibilidade ° Justificação ° Inexistência
(Tratado CEE, artigo 48. )
15. Livre circulação de pessoas ° Trabalhadores ° Igualdade de tratamento ° Regras elaboradas por associações desportivas que limitam a participação de jogadores profissionais nacionais de outros Estados-Membros em determinadas competições ° Inadmissibilidade ° Justificação ° Inexistência
(Tratado CEE, artigo 48. )
16. Comissão ° Competências ° Prestação de garantias quanto à compatibilidade com o Tratado de determinado comportamento ° Exclusão salvo habilitação específica ° Autorização de comportamentos contrários ao Tratado ° Exclusão
17. Questões prejudiciais ° Interpretação ° Efeito no tempo dos acórdãos interpretativos ° Efeito retroactivo ° Limites ° Segurança jurídica ° Poder de apreciação do Tribunal de Justiça
(Tratado CEE, artigo 177)
1. O pedido de que o Tribunal ordene uma diligência de instrução nos termos do artigo 60. do Regulamento de Processo apresentado por uma das partes após o encerramento da fase oral apenas pode ser deferido se se fundar em factos susceptíveis de exercerem influência decisiva e que o interessado não tenha podido invocar antes do encerramento da fase oral.
2. No âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 177. do Tratado, compete apenas ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, tendo em conta as especificidades de cada processo, apreciar, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, como as questões colocadas pelo juiz nacional são relativas à interpretação do direito comunitário, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado aonhecer delas.
No entanto, compete ao Tribunal de Justiça, a fim de ajuizar da sua própria competência, apreciar as condições em que foi chamado, pelo juiz nacional, a pronunciar-se sobre as questões. Efectivamente, o espírito de colaboração que deve presidir ao funcionamento do reenvio prejudicial implica que o juiz nacional tenha em atenção a função confiada ao Tribunal de Justiça, que é contribuir para a administração da justiça nos Estados-Membros e não emitir opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas.
Atendendo a esta missão, o Tribunal de Justiça considerou não poder pronunciar-se sobre uma questão prejudicial colocada por um órgão jurisdicional nacional quando é manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma norma comunitária, solicitadas pela jurisdição nacional, não têm qualquer relação com a realidade ou com o objecto do litígio nos processos principais ou ainda quando o problema é hipotético e o Tribunal de Justiça não dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são colocadas.
A este propósito, deve considerar-se que correspondem a uma necessidade objectiva para a decisão de um litígio pendente num tribunal nacional questões por este colocadas para decisão de acções declarativas propostas para evitar a violação de um direito gravemente ameaçado, que, efectivamente, se baseiam necessariamente em previsões incertas por natureza, mas que considera admissíveis nos termos do respectivo direito nacional.
3. Tendo presentes os objectivos da Comunidade, a prática de desportos só é abrangida pelo direito comunitário na medida em que constitua uma actividade económica na acepção do artigo 2. do Tratado. É o caso da actividade dos jogadores de futebol, profissionais ou semiprofissionais, uma vez que exercem uma actividade assalariada ou efectuam prestações de serviços remuneradas.
4. Para efeitos da aplicação das disposições comunitárias relativas à livre circulação dos trabalhadores, não é necessário que a entidade patronal tenha a qualidade de empresa, apenas se exigindo a existência de uma relação de trabalho ou a vontade de estabelecer tal relação.
5. Regras que regulam as relações económicas entre as entidades patronais de um sector de actividade são abrangidas pelo âmbito de aplicação das disposições comunitárias relativas à livre circulação dos trabalhadores desde que a sua aplicação afecte as respectivas condições de emprego.
Tal é o caso de regras relativas às transferências de jogadores entre clubes de futebol que, embora rejam mais especialmente as relações económicas entre os clubes do que as relações de trabalho entre clubes e jogadores, afectam, através da obrigação imposta aos clubes de pagarem indemnizações pelo recrutamento de um jogador que provenha de outro clube, as possibilidades de os jogadores encontrarem emprego, bem como as condições em que esse emprego é oferecido.
6. As disposições comunitárias em matéria de livre circulação de pessoas e de serviços não impedem regulamentações ou práticas no domínio desportivo justificadas por razões não económicas e que respeitem ao carácter e quadro específico de determinadas competições. Esta restrição do âmbito de aplicação das disposições em causa deve no entanto limitar-se ao seu objecto específico não podendo ser invocada para excluir toda a actividade desportiva do âmbito de aplicação do Tratado.
7. A livre circulação dos trabalhadores, garantida pelo artigo 48. do Tratado, que constitui uma liberdade fundamental no sistema das Comunidades, não pode ser limitada no respectivo âmbito pelo dever que incumbe à Comunidade de, ao fazer uso das competências de extensão limitada que lhe confere o artigo 128. , n. 1, do Tratado CE, no domínio da cultura, respeitar a diversidade nacional e regional das culturas dos Estados-Membros.
8. O princípio da liberdade de associação consagrado no artigo 11. da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e resultante das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, faz parte dos direitos fundamentais que, segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, reafirmada no preâmbulo do Acto Único Europeu e no artigo F, n. 2, do Tratado da União Europeia, são protegidos na ordem jurídica comunitária.
No entanto, não se pode considerar que regras susceptíveis de restringir a livre circulação dos desportistas profissionais adoptadas por associações desportivas, sejam necessárias para garantir o exercício desta liberdade pelas referidas associações, pelos clubes ou pelos jogadores, ou que constituam uma consequência inelutável dessa liberdade.
9. O princípio da subsidiariedade, mesmo na acepção ampla de que a intervenção das autoridades comunitárias se deve limitar ao estritamente necessário no domínio da organização das actividades desportivas, não pode ter por efeito que a autonomia de que dispõem as associações privadas para adoptarem regulamentações desportivas limite o exercício dos direitos, tal como o da livre circulação, conferidos pelo Tratado aos particulares.
10. O artigo 48. do Tratado não se aplica apenas à actuação das autoridades públicas, abrangendo igualmente as regulamentações de outra natureza destinadas a disciplinar, de forma colectiva, o trabalho assalariado.
Efectivamente, por um lado, a abolição dos obstáculos à livre circulação de pessoas seria comprometida se a supressão das barreiras de origem estatal pudesse ser neutralizada por obstáculos resultantes do exercício da sua autonomia jurídica por associações ou organismos de direito privado. Por outro lado, se a referida disposição tivesse como objecto apenas os actos da autoridade pública poderiam daí resultar desigualdades quanto à sua aplicação tendo em conta que, conforme os Estados-Membros, as condições de trabalho são regidas quer por disposições de ordem legislativa ou regulamentar quer por convenções e outros actos celebrados ou adoptados por entidades de direito privado.
11. Nada se opõe a que particulares invoquem, para justificar limitações à livre circulação dos trabalhadores de que sejam acusados, razões de ordem pública, de segurança pública e de saúde pública admitidas pelo artigo 48. do Tratado. O alcance e conteúdo das referidas justificações não variam conforme a natureza pública ou privada de uma regulamentação restritiva em apoio da qual sejam invocadas.
12. O artigo 48. do Tratado aplica-se a regras adoptadas por associações desportivas que estabeleçam as condições de exercício de uma actividade assalariada por parte dos desportistas profissionais.
13. Não se pode qualificar de puramente interna e considerar que não releva, portanto, do direito comunitário, a situação de um jogador profissional de futebol nacional de um Estado-Membro que, tendo celebrado um contrato de trabalho com um clube de outro Estado-Membro para exercer no território deste uma actividade assalariada, responde a uma oferta de emprego efectivamente feita na acepção do artigo 48. , n. 3, alínea a), do Tratado.
14. O artigo 48. do Tratado opõe-se à aplicação de regras adoptadas por associações desportivas, nos termos das quais um jogador profissional de futebol nacional de um Estado-Membro, no termo do contrato que o vincula a um clube, só pode ser contratado por um clube de outro Estado-Membro se este último pagar ao clube de origem uma indemnização de transferência, de formação ou de promoção.
Efectivamente, estas regras, ainda que não se distingam das regras que regulam as transferências no interior de um mesmo Estado-Membro, são susceptíveis de restringir a livre circulação dos jogadores que desejem exercer a sua actividade noutro Estado-Membro, impedindo-os ou dissuadindo-os de deixar os respectivos clubes mesmo após a expiração dos contratos de trabalho que a eles os ligam.
Além disso, não poderão constituir um meio adequado para atingir objectivos legítimos, tais como a preocupação de manter o equilíbrio financeiro e desportivo entre os clubes e apoiar a busca de talentos e a formação de jovens jogadores, uma vez que,
° por um lado, essas regras não impedem que os clubes mais ricos obtenham a colaboração dos melhores jogadores nem que os meios financeiros disponíveis sejam um elemento decisivo na competição desportiva e que o equilíbrio entre clubes daí resulte consideravelmente alterado,
° por outro lado, as indemnizações previstas por tais regras caracterizam-se pela sua natureza eventual e aleatória e são, de qualquer forma, independentes dos custos reais de formação suportados pelos clubes,
° e, finalmente, os mesmos objectivos podem ser atingidos de modo igualmente eficaz por outros meios que não restringem a livre circulação dos trabalhadores.
15. O artigo 48. do Tratado opõe-se à aplicação de regras adoptadas por associações desportivas nos termos das quais, nos encontros por elas organizados, os clubes de futebol apenas podem fazer alinhar um número limitado de jogadores profissionais nacionais de outros Estados-Membros.
Efectivamente, aquelas regras são contrárias ao princípio da não discriminação em razão da nacionalidade em matéria de emprego, remuneração e condições de trabalho, pouco importando, para o efeito, que não respeitem ao emprego destes jogadores, que não é limitado, mas à possibilidade de os respectivos clubes os fazerem alinhar num encontro oficial porque, na medida em que a participação em tais encontros constitui o objecto essencial da actividade de um jogador profissional, é evidente que uma regra que a limite restringe igualmente as possibilidades de emprego do jogador abrangido.
Além disso, as mesmas regras, que não respeitem a encontros específicos que oponham equipas representativas do respectivo país, mas se apliquem ao conjunto dos encontros oficiais entre clubes, não podem justificar-se por razões não económicas, que interessem unicamente ao desporto enquanto tal, como a preservação do elo tradicional entre cada clube e o seu país, porque o elo entre um clube e o Estado-Membro em que está estabelecido não pode considerar-se inerente à actividade desportiva; a criação de uma reserva de jogadores nacionais suficiente para permitir às equipas nacionais alinharem jogadores de alto nível em todas as suas actividades, porque, mesmo se as equipas nacionais tiverem de ser constituídas apenas por jogadores com a nacionalidade do país em causa, estes não têm de ser necessariamente qualificados para clubes desse país; a manutenção do equilíbrio desportivo entre clubes, porque nenhuma regra limita a possibilidade de os clubes ricos recrutarem os melhores jogadores nacionais, facto que compromete da mesma forma aquele equilíbrio.
16. Para além dos casos em que tais competências lhe são expressamente atribuídas, a Comissão não está habilitada a dar garantias quanto à compatibilidade com o Tratado de determinado comportamento e não dispõe, em nenhuma circunstância, do poder de autorizar comportamentos contrários ao Tratado.
17. A interpretação que o Tribunal de Justiça faz de uma norma de direito comunitário, no exercício da competência que lhe confere o artigo 177. , esclarece e precisa, quando é necessário, o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ou deveria ter sido compreendida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor. Donde se conclui que a norma assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz mesmo às relações jurídicas surgidas e constituídas antes de ser proferido o acórdão que decida o pedido de interpretação, se se encontrarem também reunidas as condições que permitam submeter aos órgãos jurisdicionais competentes um litígio relativo à aplicação da referida norma.
Só a título excepcional o Tribunal de Justiça pode, em aplicação do princípio geral da segurança jurídica inerente à ordem jurídica comunitária, ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar uma disposição que o Tribunal interpretou para pôr em causa relações jurídicas estabelecidas de boa fé. Tal limitação só pode ser admitida no próprio acórdão que decide sobre a interpretação solicitada.
Atentas as especificidades das regras instituídas pelas associações desportivas para as transferências de jogadores entre clubes de diferentes Estados-Membros, bem como a circunstância de as mesmas regras, ou regras idênticas, se aplicarem tanto às transferências entre clubes pertencentes à mesma associação nacional como às que envolvem clubes pertencentes a associações nacionais diferentes dentro do mesmo Estado-Membro, podem ter criado uma situação de incerteza quanto à compatibilidade das referidas regras com o direito comunitário, opondo-se considerações imperiosas de segurança jurídica a que situações jurídicas que produziram todos os seus efeitos no passado sejam objecto de reavaliação.
Consequentemente cabe decidir que o efeito directo do artigo 48. do Tratado não pode ser invocado em apoio de reivindicações relativas a uma indemnização de transferência, de formação ou de promoção que, na data do presente acórdão, já tenha sido paga ou seja devida em execução de uma obrigação nascida antes desta data, excepto se, antes desta data, já tiver sido proposta acção judicial ou apresentada reclamação equivalente nos termos do direito nacional aplicável.
No processo C-415/93,
que tem por objecto um pedido dirigido ao Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 177. do Tratado CE, pela cour d'appel de Liège (Bélgica), destinado a obter, nos litígios pendentes neste órgão jurisdicional entre
Union royale belge des sociétés de football association ASBL
e
Jean-Marc Bosman
entre
Royal club liégeois SA
e
Jean-Marc Bosman,
SA d'économie mixte sportive de l'union sportive du littoral de Dunkerque,
Union royale belge des sociétés de football association ASBL,
Union des associations européennes de football (UEFA),
e entre
Union des associations européennes de football (UEFA),
e
Jean-Marc Bosman,
uma decisão a título prejudicial sobre a interpretação dos artigos 48. , 85. e 86. do Tratado CEE,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
composto por: G. C. Rodríguez Iglesias, presidente, C. N. Kakouris, D. A. O. Edward, G. Hirsch, presidentes de secção, G. F. Mancini (relator), J. C. Moitinho de Almeida, P. J. G. Kapteyn, C. Gulmann, J.. Murray, P. Jann e H. Ragnemalm, juízes,
advogado-geral: C. O. Lenz,
secretários: R. Grass, secretário, e D. Louterman-Hubeau, administradora principal,
vistas as observações escritas apresentadas:
° em representação da Union royale belge des sociétés de football association ASBL, por G. Vandersanden e J.-P. Hordies, advogados no foro de Bruxelas, e por R. Rasir e F. Moïses, advogados no foro de Liège,
° em representação da Union des associations européennes de football (UEFA), por I. S. Forrester, QC,
° em representação de J.-M. Bosman, por L. Misson, J.-L. Dupont, M.-A. Lucas e M. Franchimont, advogados no foro de Liège,
° em representação do Governo francês, por H. Duchène, secretária dos Negócios Estrangeiros na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, e C. de Salins, subdirectora na mesma direcção,
° em representação do Governo italiano, pelo professor L. Ferrari Bravo, chefe do serviço do contencioso diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, assistido por D. Del Gaizo, avvocato dello Stato,
° em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por F. E. González Díaz, membro do seu Serviço Jurídico, G. de Bergues, funcionário nacional colocado à disposição do Serviço Jurídico, e Th. Margellos, advogado no foro de Atenas,
visto o relatório para audiência,
ouvidas as alegações da Union royale belge des sociétés de football association ASBL, representada pelos advogados F. Moïses, J.-P. Hordies e G. Vandersanden, da Union des associations européennes de football (UEFA), representada por I. S. Forrester e E. Jakhian, advogado no foro de Bruxelas, de J.-M. Bosman, representado pelos advogados L. Misson e J.-L. Dupont, do Governo dinamarquês, representado por P. Biering, kontorchef no Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agente, do Governo alemão, representado por E. Roeder, Ministerialrat no Ministério Federal da Economia, do Governo francês, representado por C. de Salins e P. Martinet, secretário dos Negócios Estrangeiros na Direcção dos Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, na qualidade de agentes, do Governo italiano, representado por D. Del Gaizo, e da Comissão, representada por F. E. González Díaz, G. de Bergues e M. Wolfcarius, membro do Serviço Jurídico, na audiência de 20 de Junho de 1995,
ouvidas as conclusões do advogado-geral apresentadas na audiência de 20 de Setembro de 1995,
profere o presente
Acórdão
1 Por acórdão de 1 de Outubro de 1993, que deu entrada no Tribunal de Justiça no dia 6 do mesmo mês, a cour d'appel de Liège colocou, nos termos do artigo 177. do Tratado CEE, questões prejudiciais sobre a interpretação dos artigos 48. , 85. e 86. do mesmo Tratado.
2 Essas questões foram suscitadas no âmbito de diversos litígios que opõem, em primeiro lugar, a Union royale belge des sociétés de football association ASBL (a seguir "URBSFA") a J.-M. Bosman, em segundo lugar, o Royal club liégeois SA (a seguir "RCL") a J.-M. Bosman, à SA d'économie mixte sportive de l'union sportive du littoral de Dunkerque (a seguir "clube de Dunkerque"), à URBSFA e à Union des associations européennes de football (UEFA) (a seguir "UEFA") e, em terceiro lugar, a UEFA a J.-M. Bosman.
Regras de organização do futebol
3 O desporto "football association", vulgarmente designado "futebol", profissional ou amador, pratica-se, na sua forma organizada, em clubes que, em cada um dos Estados-Membros, estão reunidos em associações nacionais, igualmente chamadas federações. O Reino Unido é o único país em que existem diversas associações nacionais, concretamente quatro, respectivamente responsáveis para a Inglaterra, o País de Gales, a Escócia e a Irlanda do Norte. A URBSFA é a associação nacional belga. Das associações nacionais dependem outras associações secundárias ou subsidiárias, responsáveis pela organização do futebol em certos sectores ou em certas regiões. As associações organizam campeonatos nacionais, repartidos em diversas divisões consoante o valor desportivo dos clubes participantes.
4 As associações nacionais são membros da Fédération internationale de football association (a seguir "FIFA"), associação de direito suíço que organiza o futebol a nível mundial. A FIFA está dividida em confederações continentais, cujos regulamentos são submetidos à sua aprovação. A confederação competente para a Europa é a UEFA, que é igualmente uma associação de direito suíço. São membros da UEFA cerca de cinquenta associações, entre as quais, nomeadamente, as associações nacionais dos Estados-Membros que, em conformidade com os estatutos da UEFA, se comprometeram a respeitar tanto os estatutos como os regulamentos e decisões desta última.
5 Cada jogo de futebol organizado sob a égide de uma associação nacional deve ser jogado entre dois clubes membros desta associação ou de associações secundárias ou subsidiárias nela filiadas. A equipa que cada clube faz alinhar é composta por jogadores qualificados pela associação nacional para esse clube. Todos os jogadores profissionais devem estar inscritos como tais na sua associação nacional e do registo a eles relativo consta a sua condição de actuais ou antigos empregados de um clube específico.
Regras relativas às transferências
6 Segundo o regulamento federal da URBSFA de 1983, aplicável na altura em que ocorreram os factos dos processos principais, há que distinguir três tipos de relações: a inscrição, que vincula o jogador à associação nacional, a afectação, que vincula o jogador a um clube, e a qualificação, que é a condição necessária para que um jogador possa participar nas competições oficiais. A transferência é definida como o acto pelo qual um jogador inscrito obtém uma mudança de afectação. Em caso de transferência temporária, o jogador permanece afecto ao seu clube, mas fica qualificado para outro clube.
7 Nos termos do mesmo regulamento, todos os contratos dos jogadores profissionais, cuja duração varia entre um e cinco anos, terminam em 30 de Junho. Antes do termo do contrato, o mais tardar em 26 de Abril, o clube deve propor um novo contrato ao jogador que, na falta de proposta, é considerado amador para efeitos de transferência, passando, portanto, a ser abrangido por outras disposições do regulamento. O jogador é livre de aceitar ou de recusar a referida proposta.
8 Em caso de recusa, o jogador é inscrito numa lista de jogadores que podem ser objecto, entre 1 e 31 de Maio, de uma transferência dita "obrigatória", isto é, sem o acordo do clube de afectação, mas contra o pagamento a este último pelo novo clube de uma indemnização dita "de formação", calculada multiplicando o rendimento bruto anual do jogador por coeficientes que variam entre 14 e 2, consoante a sua idade.
9 No dia 1 de Junho inicia-se o período das transferências ditas "livres", que decorrem com o acordo dos dois clubes e do jogador, nomeadamente quanto ao montante da indemnização de transferência que o novo clube deve pagar ao antigo, sob pena de sanções que podem ir até à exclusão do primeiro por dívidas.
10 Se não houver transferência, o clube de afectação deve oferecer ao jogador um novo contrato por uma época, nas mesmas condições que as propostas antes de 26 de Abril. Se o jogador o recusar, o clube tem o direito, até 1 de Agosto, de tomar uma medida de suspensão, na falta da qual o jogador é requalificado como amador. O jogador que persista na sua recusa de assinar os contratos que o seu clube lhe propõe pode obter uma transferência como amador, sem o acordo do seu clube, após duas épocas de inactividade.
11 Os regulamentos da UEFA e da FIFA não são directamente aplicáveis aos jogadores, mas fazem parte dos regulamentos das associações nacionais, às quais incumbe em exclusivo o poder de os fazer aplicar e de regular as relações entre os clubes e os jogadores.
12 A UEFA, a URBSFA e o RCL alegaram no órgão jurisdicional nacional que as disposições aplicáveis na época dos factos às transferências entre clubes de diferentes Estados-Membros ou entre clubes pertencentes a associações nacionais diferentes no seio do mesmo Estado-Membro faziam parte de um documento intitulado "Princípios de colaboração entre as associações membros da UEFA e seus clubes", aprovado pelo comité executivo da UEFA em 24 de Maio de 1990 e em vigor desde 1 de Julho de 1990.
13 Esse documento prevê que, no termo do contrato, o jogador é livre de celebrar novo contrato com um clube à sua escolha. Este deve imediatamente informar do facto o antigo clube que, por sua vez, o comunica à associação nacional, a qual é obrigada a emitir o certificado internacional de desvinculação. No entanto, o antigo clube tem o direito de receber do novo clube uma indemnização de promoção ou de formação cujo montante será fixado, em caso de desacordo, por uma comissão constituída no seio da UEFA, através de uma grelha de coeficientes que variam entre 12 e 1, consoante a idade do jogador, a multiplicar pelo rendimento bruto deste ao longo do último ano, tendo como limite máximo 5 000 000 SFR.
14 O documento precisa que as relações económicas entre os dois clubes para o pagamento da indemnização de promoção ou de formação não têm qualquer influência sobre a actividade do jogador, que poderá livremente jogar pelo seu novo clube. No entanto, se o novo clube não pagar imediatamente a referida indemnização ao antigo clube, a comissão de controlo e de disciplina da UEFA aprecia o caso e comunica a sua decisão à associação nacional em causa, a qual poderá igualmente aplicar sanções ao clube em falta.
15 O órgão jurisdicional de reenvio considera que, no caso que é objecto dos litígios nos processos principais, a URBSFA e o RCL não aplicaram o regulamento da UEFA, mas sim o da FIFA.
16 Na época dos factos, este último regulamento previa nomeadamente que um jogador profissional não podia abandonar a associação nacional em que estivesse inscrito enquanto estivesse vinculado pelo seu contrato e pelos regulamentos do seu clube e da sua associação nacional, por mais severos que fossem. A transferência internacional dependia da emissão, pela antiga associação nacional, de um certificado de desvinculação no qual esta reconhecia que todas as obrigações financeiras, incluindo um eventual montante de transferência, tinham sido pagos.
17 Posteriormente à data dos factos dos processos principais, a UEFA iniciou conversações com a Comissão das Comunidades Europeias. Em Abril de 1991, comprometeu-se nomeadamente a fazer inserir em todos os contratos de jogador profissional uma cláusula autorizando este, no termo do contrato, a celebrar novo contrato com um clube à sua escolha e a jogar imediatamente pelo novo clube. Disposições neste sentido foram inseridas nos "princípios de colaboração entre as associações membros da UEFA e seus clubes", adoptados em Dezembro de 1991 e em vigor desde 1 de Julho de 1992.
18 Em Abril de 1991, a FIFA adoptou igualmente um novo regulamento relativo ao estatuto e às transferências dos jogadores de futebol. Este documento, alterado em Dezembro de 1991 e em Dezembro de 1993, prevê que um jogador pode celebrar um contrato com um novo clube quando o contrato que o liga ao seu antigo clube termina, é rescindido ou chega ao seu termo nos seis meses subsequentes.
19 Existem regras especiais para os jogadores "não amadores", definidos como jogadores que receberam, por uma participação no futebol ou por qualquer actividade com ele relacionada, uma quantia superior ao montante das despesas ocasionadas pelo exercício dessa actividade, salvo se tiverem readquirido o estatuto de amadores.
20 Em caso de transferência de um jogador não amador, ou que se torna não amador nos três anos subsequentes à transferência, o antigo clube tem direito a uma indemnização de promoção ou de formação cujo montante deve ser acordado entre os dois clubes. Em caso de desacordo, o litígio deve ser submetido à FIFA ou à confederação competente.
21 Estas regras foram completadas por um regulamento da UEFA dito "para a fixação de uma indemnização de transferência" que, adoptado em Junho de 1993 e em vigor desde 1 de Agosto de 1993, substituiu os "Princípios de colaboração entre as associações membros da UEFA e seus clubes" de 1991. Este novo regulamento mantém o princípio segundo o qual as relações económicas entre os dois clubes não têm qualquer influência sobre a actividade desportiva do jogador, que é livre de jogar pelo clube com o qual celebrou um novo contrato. Prevê, além disso, que, em caso de desacordo entre os clubes envolvidos, compete à comissão competente da UEFA determinar o montante da indemnização de formação ou de promoção. Para os jogadores não amadores, tal montante é calculado com base no rendimento bruto obtido pelo jogador ao longo dos últimos doze meses, ou do rendimento fixo anual garantido no novo contrato, acrescido de 20% para os jogadores que tenham jogado pelo menos duas vezes na selecção nacional representativa do respectivo país e multiplicado por um coeficiente que varia entre 12 e 0 em função da idade.
22 Resulta dos documentos apresentados pela UEFA ao Tribunal de Justiça que as regulamentações em vigor noutros Estados-Membros contêm igualmente disposições que obrigam o novo clube, em caso de transferência de um jogador entre dois clubes da mesma associação nacional, a pagar ao antigo, nas condições entre eles acordadas, uma indemnização de transferência, de formação ou de promoção.
23 Em Espanha e em França, a indemnização só pode ser exigida se o jogador transferido tiver menos de 25 anos ou, respectivamente, se o antigo clube for o clube com que o jogador celebrou o seu primeiro contrato como profissional. Na Grécia, se nenhuma indemnização for expressamente devida pelo novo clube, o contrato entre o clube e o jogador pode subordinar a desvinculação deste último ao pagamento de um certo montante que, segundo as indicações da UEFA, é na realidade efectuado, na maioria dos casos, pelo novo clube.
24 As regras aplicáveis para este efeito podem resultar, consoante os casos, da legislação nacional, dos regulamentos das associações nacionais de futebol ou de convenções colectivas.
As cláusulas de nacionalidade
25 A partir dos anos sessenta, numerosas associações nacionais de futebol adoptaram regras que passaram a limitar a possibilidade de recrutar ou de fazer alinhar em competição jogadores de nacionalidade estrangeira (a seguir "cláusulas de nacionalidade"). Para efeitos de aplicação dessas cláusulas, a nacionalidade é definida por referência à possibilidade de o jogador ser qualificado para jogar na selecção nacional ou representativa de um país.
26 Em 1978, a UEFA comprometeu-se com E. Davignon, membro da Comissão das Comunidades Europeias, por um lado, a suprimir as limitações do número de contratos celebrados por cada clube com jogadores de outros Estados-Membros e, por outro, a fixar em dois o número desses jogadores que podem participar em cada jogo, não sendo este último limite aplicável aos jogadores estabelecidos há mais de cinco anos no Estado-Membro em causa.
27 Em 1991, na sequência de novos encontros com M. Bangemann, vice-presidente da Comissão, a UEFA adoptou a regra dita "3 + 2", que prevê a possibilidade de as associações nacionais limitarem a três o número de jogadores estrangeiros que um clube pode fazer alinhar em jogos da primeira divisão dos respectivos campeonatos nacionais, mais dois jogadores que tenham jogado ininterruptamente durante cinco anos no país da associação nacional em causa, dos quais três anos como júniores. Este limite aplica-se igualmente aos jogos das competições para equipas de clubes organizadas pela UEFA.
Matéria de facto dos litígios nos processos principais
28 J.-M. Bosman, jogador profissional de futebol de nacionalidade belga, foi empregado, a partir de 1988, pelo RCL, clube belga da primeira divisão, nos termos de um contrato que terminava em 30 de Junho de 1990 e que lhe garantia um salário mensal de 120 000 BFR, incluindo prémios.
29 Em 21 de Abril de 1990, o RCL propôs a J.-M. Bosman um novo contrato, por uma época, reduzindo a sua remuneração mensal para 30 000 BFR, ou seja, o mínimo previsto pelo regulamento federal da URBSFA. Tendo recusado assinar o contrato, J.-M. Bosman foi inscrito na lista das transferências. O valor da indemnização de formação relativa ao jogador foi fixado, ao abrigo do referido regulamento, em 11 743 000 BFR.
30 Não tendo nenhum clube manifestado interesse pela sua contratação no âmbito de uma transferência obrigatória, J.-M. Bosman entrou em contacto com o clube francês de Dunkerque, da segunda divisão, tendo sido contratado por um salário mensal da ordem dos 100 000 BFR e um prémio de contratação de cerca de 900 000 BFR.
31 Em 27 de Julho de 1990, um contrato foi igualmente celebrado entre o RCL e clube de Dunkerque, no qual se previa a transferência temporária de J.-M. Bosman, pelo período de um ano, contra o pagamento pelo clube de Dunkerque ao RCL de uma indemnização de 1 200 000 BFR, exigível a partir do momento em que a Federação Francesa de Futebol (a seguir "FFF") recebesse o certificado de desvinculação da URBSFA. Além disso, este contrato dava ao clube de Dunkerque uma opção irrevogável sobre a transferência definitiva do jogador pelo montante de 4 800 000 BFR.
32 Os dois contratos, entre a USL Dunkerque e o RCL, por um lado, e entre o clube de Dunkerque e J.-M. Bosman, por outro, ficaram, no entanto, sujeitos a uma condição suspensiva nos termos da qual o certificado de desvinculação devia ser transmitido pela URBSFA à FFF antes do primeiro jogo da época, o qual devia ter lugar em 2 de Agosto de 1990.
33 Duvidando da solvência do clube de Dunkerque, o RCL não solicitou à URBSFA que enviasse o certificado de desvinculação à FFF. Consequentemente, os dois contratos ficaram sem efeito. Em 31 de Julho de 1990, o RCL suspendeu igualmente J.-M. Bosman, impedindo-o assim de jogar durante toda a época.
34 Em 8 de Agosto de 1990, J.-M. Bosman intentou no tribunal de première instance de Liège uma acção contra o RCL. Paralelamente a esta acção, requereu que fossem decretadas providências cautelares, tendo pedido, em primeiro lugar, que o RCL e a URBSFA fossem condenados a pagar-lhe 100 000 BFR por mês até encontrar nova entidade patronal, em segundo lugar, que os requeridos fossem proibidos de entravar a sua contratação, especialmente pelo recebimento de uma importância em dinheiro e, finalmente, que fosse colocada uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça.
35 Por despacho de 9 de Novembro de 1990, o tribunal que conheceu das providências cautelares condenou o RCL e a URBSFA a pagar a J.-M. Bosman 30 000 BFR por mês e ordenou-lhes que não criassem entraves à contratação de J.-M. Bosman. Além disso, colocou ao Tribunal de Justiça uma questão prejudicial (processo C-340/90) sobre a interpretação do artigo 48. do Tratado para efeitos de apreciação de uma regulamentação que regula as transferências de jogadores profissionais (a seguir "regras relativas às transferências").
36 Entretanto, J.-M. Bosman tinha sido contratado, em Outubro de 1990, pelo clube francês Saint-Quentin, da segunda divisão, tendo a contratação ficado sujeita à condição suspensiva de o seu pedido de providências cautelares ser deferido. No entanto, o seu contrato foi rescindido no fim da primeira época. Em Fevereiro de 1992, J.-M. Bosman assinou novo contrato com o clube francês Saint-Denis de la Réunion, que foi igualmente rescindido. Após várias tentativas para encontrar clube na Bélgica e em França, J.-M. Bosman veio finalmente a ser contratado pelo Olympic de Charleroi, clube belga da terceira divisão.
37 Segundo o órgão jurisdicional de reenvio, existem presunções graves e concordantes que levam a pensar que, apesar do estatuto de "liberdade" que lhe fora conferido pelo despacho que ordenara as providências cautelares, J.-M. Bosman foi alvo de um boicote por parte da globalidade dos clubes europeus susceptíveis de o contratar.
38 Em 28 de Maio de 1991, a cour d'appel de Liège revogou o despacho em que o tribunal de première instance de Liège decretou as providências cautelares, na parte em que colocava uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça. No entanto, confirmou a condenação do RCL a pagar uma quantia mensal a J.-M. Bosman e intimou o RCL e a URBSFA a libertar J.-M. Bosman para qualquer clube que quisesse beneficiar dos seus serviços, sem que para tanto pudesse ser reclamada qualquer indemnização. Por despacho de 19 de Junho de 1991, o Tribunal de Justiça cancelou o processo C-340/90 no registo.
39 No âmbito da acção para o tribunal de première instance de Liège, a URBSFA, que, contrariamente ao que acontecera no procedimento cautelar, não era parte no processo, interveio voluntariamente em 3 de Junho de 1991. Em 20 de Agosto de 1991, J.-M. Bosman requereu que a UEFA fosse chamada a intervir no litígio que o opunha ao RCL e à URBSFA, tendo contra ela intentado uma acção fundada na sua responsabilidade na adopção dos regulamentos que lhe causavam prejuízo. Em 5 de Dezembro de 1991, o RCL chamou à demanda o clube de Dunkerque a fim de prevenir qualquer condenação que contra si pudesse ser proferida. Em 15 de Outubro e 27 de Dezembro de 1991, respectivamente, o sindicato profissional francês Union nationale des footballeurs professionnels (a seguir "UNFP") e a associação de direito neerlandês Vereniging van contractspelers (a seguir "VVCS") intervieram voluntariamente no processo.
OS FUNDAMENTOS CONTINUAN NO NUM.DOC: 693J0415.1
40 Através de novo articulado apresentado em 9 de Abril de 1992, J.-M. Bosman alterou o seu pedido inicial contra o RCL, intentou nova acção preventiva contra a URBSFA e desenvolveu o seu pedido contra a UEFA. No âmbito destes litígios, solicitou que fosse declarado que as regras relativas às transferências e às cláusulas de nacionalidade lhe eram inaplicáveis e que, em razão do seu comportamento irregular por ocasião da sua transferência frustrada para o clube de Dunkerque, o RCL, a URBSFA e a UEFA fossem condenadas a pagar-lhe, por um lado, 11 368 350 BFR, montante do prejuízo sofrido desde 1 de Agosto de 1990 até ao termo da sua carreira e, por outro, 11 743 000 BFR, que representam o montante de quanto deixou de auferir desde o início da sua carreira em razão da aplicação das regras relativas às transferências. Solicitou igualmente que fosse colocada uma questão prejudicial ao Tribunal de Justiça.
41 Por sentença de 11 de Junho de 1992, o tribunal de première instance de Liège declarou-se competente para conhecer do mérito da causa nos processos submetidos à sua apreciação. Além disso, julgou admissíveis os pedidos formulados por J.-M. Bosman contra o RCL, a URBSFA e a UEFA destinados, designadamente, a obter a declaração de inaplicabilidade das regras relativas às transferências e das cláusulas de nacionalidade e a censurar o comportamento destas três organizações. Em contrapartida, o tribunal indeferiu o chamamento do clube de Dunkerque requerido pelo RCL, uma vez que não foi feita prova de comportamento irregular daquela na execução das suas obrigações. Finalmente, verificando que a análise das pretensões formuladas por J.-M. Bosman contra a UEFA e a URBSFA implicava uma apreciação da compatibilidade das regras relativas às transferências com o Tratado, interrogou o Tribunal de Justiça sobre a interpretação dos artigos 48. , 85. e 86. do Tratado (processo C-269/92).
42 A URBSFA, o RCL e a UEFA recorreram desta decisão. Tendo estes recursos efeito suspensivo, a instância no Tribunal de Justiça foi suspensa. Por despacho de 8 de Dezembro de 1993, o Tribunal de Justiça determinou finalmente que, na sequência do novo acórdão da cour d'appel de Liège que está na origem do presente processo, o processo C-269/92 fosse cancelado no registo.
43 Não foi interposto qualquer recurso contra a UNPF e a VVCS, que não reiteraram a sua intervenção na fase de recurso.
44 No acórdão de reenvio, a cour d'appel de Liège confirmou a sentença recorrida na parte em que declarava o tribunal de première instance de Liège competente e as acções admissíveis e em que afirmava que a análise das pretensões de J.-M. Bosman contra a UEFA e a URBSFA implicava a apreciação da legalidade das regras relativas às transferências. Considerou, além disso, que era necessária a apreciação da legalidade das cláusulas de nacionalidade, uma vez que o pedido de J.-M. Bosman a este propósito se baseava no artigo 18. do code judiciaire belge, que autoriza as acções intentadas "com o objectivo de evitar a violação de um direito gravemente ameaçado". Ora, J.-M. Bosman apresentou diversas provas objectivas que deixam pensar que o prejuízo que receia, ou seja, de que as cláusulas de nacionalidade coloquem entraves à sua carreira, se concretizará efectivamente.
45 O órgão jurisdicional de reenvio considerou, designadamente, que o artigo 48. do Tratado proíbe, do mesmo modo que o artigo 30. , não só as discriminações, mas também os entraves não discriminatórios à livre circulação dos trabalhadores, se não pudessem ser justificados por exigências imperativas.
46 No que respeita ao artigo 85. do Tratado, considerou que as regulamentações da FIFA, da UEFA e da URBSFA constituem decisões de associações de empresas através das quais os clubes limitam a concorrência entre si pela aquisição de jogadores. Em primeiro lugar, as indemnizações de transferência desempenham um papel dissuasivo e têm um efeito redutor em relação às remunerações dos desportistas profissionais. Em seguida, as cláusulas de nacionalidade impedem a obtenção dos serviços oferecidos por jogadores estrangeiros para além de uma certa quota. Finalmente, o comércio entre Estados-Membros é afectado, em especial, pela limitação da mobilidade dos jogadores.
47 Por outro lado, a cour d'appel descortina a existência de uma posição dominante da URBSFA ou de uma posição dominante colectiva dos clubes de futebol, na acepção do artigo 86. do Tratado, podendo as restrições da concorrência detectadas no âmbito do artigo 85. constituir abusos proibidos pelo referido artigo 86.
48 A cour d'appel indeferiu o pedido da UEFA no sentido de se perguntar ao Tribunal de Justiça se a resposta à questão colocada a propósito das transferências seria diferente no caso de uma regulamentação que permitisse ao jogador alinhar livremente pelo seu novo clube, mesmo que este não tivesse pago a indemnização de transferência ao antigo clube. A este propósito, sublinhou nomeadamente a cour d'appel que, devido à ameaça de sanções severas para os clubes que não paguem a indemnização de transferência, a faculdade de o jogador alinhar pelo novo clube depende das relações económicas entre os clubes.
49 Tendo em conta o que antecede, a cour d'appel de Liège decidiu suspender a instância e pedir ao Tribunal de Justiça que se pronunciasse, a título prejudicial, sobre as seguintes questões:
"Os artigos 48. , 85. e 86. do Tratado de Roma, de 25 de Março de 1957, devem ser interpretados no sentido de que proíbem:
° que um clube de futebol exija e receba o pagamento de um montante em dinheiro pela contratação por um novo clube empregador de um dos seus jogadores cujo contrato tenha chegado ao seu termo?
° que as associações ou federações desportivas nacionais e internacionais prevejam, nas respectivas regulamentações, normas limitativas do acesso dos jogadores estrangeiros cidadãos da Comunidade Europeia às competições que organizam?"
50 Em 3 de Junho de 1994, a URBSFA apresentou um recurso de cassação do acórdão da cour d'appel e solicitou que os efeitos do acórdão a proferir fossem declarados extensivos ao RCL, à UEFA e ao clube de Dunkerque. Por carta de 6 de Outubro de 1994, o procurador-geral na Cour de cassation de Belgique informou o Tribunal de Justiça de que, nesta situação, o recurso de cassação não tem efeito suspensivo.
51 Por acórdão de 30 de Março de 1995, a Cour de cassation negou provimento ao recurso e considerou que tal decisão privava de interesse os pedidos de extensão dos efeitos do acórdão. A Cour de cassation transmitiu cópia deste acórdão ao Tribunal de Justiça.
Quanto ao pedido de medidas de instrução
52 Por carta entregue na Secretaria do Tribunal de Justiça em 16 de Novembro de 1995, a UEFA pediu que o Tribunal adoptasse uma medida de instrução nos termos do artigo 60. do Regulamento de Processo, a fim de completar as informações de que dispõe sobre a importância das indemnizações de transferência para o financiamento dos clubes de futebol de pequena ou média dimensão, sobre os mecanismos que regulam a repartição dos rendimentos no interior das actuais estruturas do futebol, bem como sobre a existência ou ausência de mecanismos alternativos se o sistema das indemnizações de transferência vier a desaparecer.
53 Após ter novamente ouvido o advogado-geral, o Tribunal de Justiça considera que este pedido deve ser indeferido. Efectivamente, foi apresentado num momento em que, nos termos do n. 2 do artigo 59. do Regulamento de Processo, a fase oral do processo já tinha sido encerrada. Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça (v. acórdão de 16 de Junho de 1971, Prelle/Comissão, 77/70, Colect., p. 219, n. 7) que tal pedido só pode ser acolhido se se fundar em factos susceptíveis de exercer influência decisiva e que o interessado não pôde invocar antes do encerramento da fase oral.
54 No caso vertente, basta sublinhar que a UEFA poderia ter apresentado o seu pedido antes do encerramento da fase oral. Além disso, a questão de saber se o objectivo de manter o equilíbrio financeiro e desportivo, e especialmente de assegurar o financiamento dos pequenos clubes, poderá ser alcançado através de outros meios, como a redistribuição de uma parte das receitas do futebol, foi evocada designadamente por J.-M. Bosman nas suas observações escritas.
Quanto à competência do Tribunal de Justiça para responder às questões prejudiciais
55 A URBSFA, a UEFA, alguns dos governos que apresentaram observações e, no decurso da fase escrita, a Comissão contestaram, por razões diversas, a competência do Tribunal de Justiça para responder à totalidade ou a parte das questões colocadas pelo órgão jurisdicional de reenvio.
56 Em primeiro lugar, a UEFA e a URBSFA alegaram que os processos principais eram montagens processuais destinadas a obter um acórdão prejudicial do Tribunal de Justiça sobre questões que não respondem a qualquer necessidade objectiva para a solução dos litígios. Efectivamente, o regulamento da UEFA não foi aplicado por ocasião da transferência fracassada de J.-M. Bosman para o clube de Dunkerque e, de resto, se tivesse sido, essa transferência não teria ficado sujeita ao pagamento de uma indemnização de transferência e, portanto, poderia ter-se concretizado. Deste modo, a interpretação do direito comunitário solicitada pelo órgão jurisdicional de reenvio não tem qualquer relação com a realidade ou o objecto dos litígios nos processos principais e, em conformidade com jurisprudência assente, o Tribunal de Justiça não é competente para responder às questões colocadas.
57 Em segundo lugar, a URBSFA e a UEFA, os Governos dinamarquês, francês e italiano, bem como a Comissão, nas respectivas observações escritas, defenderam que as questões sobre as cláusulas de nacionalidade não têm qualquer relação com os litígios, que respeitam unicamente à aplicação das regras relativas às transferências. Efectivamente, os entraves ao desenvolvimento da sua carreira que, segundo J.-M. Bosman, resultam de tais cláusulas, são puramente hipotéticos e não justificam que o Tribunal de Justiça se pronuncie, a este propósito, sobre a interpretação do Tratado.
58 Em terceiro lugar, a URBSFA e a UEFA sublinharam na audiência que, segundo o acórdão da Cour de cassation de Belgique de 30 de Março de 1995, a cour d'appel de Liège rejeitou a admissibilidade dos pedidos de J.-M. Bosman no sentido de as cláusulas de nacionalidade contidas no regulamento da URBSFA lhe serem declaradas inaplicáveis. Nestas condições, os litígios nos processos principais não têm que ver com a aplicação das cláusulas de nacionalidade e o Tribunal de Justiça não tem que responder às questões colocadas a este respeito. O Governo francês aderiu a esta conclusão, na condição, porém, de se verificar o alcance do acórdão da Cour de cassation.
59 A este propósito, importa recordar que, no âmbito da cooperação entre o Tribunal de Justiça e os órgãos jurisdicionais nacionais instituída pelo artigo 177. do Tratado, compete apenas ao juiz nacional, a quem foi submetido o litígio e que deve assumir a responsabilidade pela decisão jurisdicional a tomar, apreciar, tendo em conta as especificidades de cada processo, tanto a necessidade de uma decisão prejudicial para poder proferir a sua decisão, como a pertinência das questões que coloca ao Tribunal de Justiça. Consequentemente, como as questões colocadas pelo juiz nacional são relativas à interpretação do direito comunitário, o Tribunal de Justiça é, em princípio, obrigado a decidir (v., nomeadamente, acórdão de 5 de Outubro de 1995, Aprile, C-125/94, Colect., p. II-0000, n.os 16 e 17).
60 No entanto, o Tribunal considera que lhe compete, a fim de verificar a sua própria competência, apreciar as condições em que foi chamado, pelo juiz nacional, a pronunciar-se sobre as questões. Efectivamente, o espírito de colaboração que deve presidir ao funcionamento do reenvio prejudicial implica que o juiz nacional tenha em atenção a função confiada ao Tribunal de Justiça, que é contribuir para a administração da justiça nos Estados-Membros e não emitir opiniões consultivas sobre questões gerais ou hipotéticas (v., nomeadamente, acórdão de 16 de Julho de 1992, Meilicke, C-83/91, Colect., p. I-4871, n. 25).
61 Foi atendendo a esta missão que o Tribunal considerou não poder pronunciar-se sobre uma questão prejudicial colocada por um órgão jurisdicional nacional, quando é manifesto que a interpretação ou a apreciação da validade de uma regra comunitária, solicitadas pela jurisdição nacional, não têm qualquer relação com a realidade ou com o objecto do litígio nos processos principais (v., nomeadamente, acórdão de 26 de Outubro de 1995, Furlanis costruzioni generali, C-143/94, Colect., p. II-0000, n. 12) ou ainda quando o problema é hipotético e o Tribunal não dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são colocadas (v., nomeadamente, acórdão Meilicke, já referido, n. 32).
62 No caso vertente, importa começar por observar que os litígios nos processos principais, globalmente considerados, não têm carácter hipotético e que o juiz nacional forneceu ao Tribunal de Justiça uma descrição precisa do seu enquadramento factual e regulamentar, bem como das razões que o levaram a considerar que uma decisão sobre as questões colocadas era necessária para proferir a sua decisão.
63 Em seguida, mesmo se, como sustentam a URBSFA e a UEFA, o regulamento desta última não foi aplicado por ocasião da transferência fracassada de J.-M. Bosman para o clube de Dunkerque, a verdade é que ele é objecto das acções preventivas de J.-M. Bosman contra a URBSFA e a UEFA (v. n. 40, supra) e que uma interpretação do Tribunal de Justiça quanto à compatibilidade com o direito comunitário do sistema de transferências instituído pelo regulamento da UEFA poderia ser útil ao órgão jurisdicional de reenvio.
64 No que respeita mais concretamente às questões relativas às cláusulas de nacionalidade, é visível que os pedidos apresentados neste âmbito nos processos principais foram julgados admissíveis com base numa disposição processual nacional que permite intentar uma acção, mesmo declarativa, a fim de evitar a violação de um direito gravemente ameaçado. Como resulta do seu acórdão, o órgão jurisdicional de reenvio considerou que a aplicação das cláusulas de nacionalidade podia efectivamente entravar a carreira de J.-M. Bosman, reduzindo as suas possibilidades de ser contratado ou de alinhar em competição por um clube de outro Estado-Membro. Concluiu que os pedidos apresentados por J.-M. Bosman no sentido de as referidas cláusulas de nacionalidade lhe serem declaradas inaplicáveis respondiam às condições estabelecidas pela referida disposição.
65 Não compete ao Tribunal de Justiça, no âmbito do presente processo, pôr em causa tal apreciação. Embora seja verdade que as acções nos processos principais revestem carácter declarativo e que, tendo por objectivo evitar a violação de um direito ameaçado, devem necessariamente fundar-se em previsões, por natureza incertas, não é menos certo que constituem iniciativas processuais autorizadas pelo direito nacional, conforme interpretado pelo órgão jurisdicional de reenvio. Nestas condições, as questões colocadas por este órgão jurisdicional correspondem a uma necessidade objectiva para a solução dos litígios que foi regularmente chamado a dirimir.
66 Finalmente, não resulta do acórdão da Cour de cassation de 30 de Março de 1995 que as cláusulas de nacionalidade sejam alheias aos litígios nos processos principais. A Cour de cassation apenas considerou que o recurso de cassação da URBSFA contra o acórdão do órgão jurisdicional de reenvio assentava numa errada interpretação deste. Com efeito, nesse recurso, a URBSFA afirmava que o referido órgão jurisdicional julgara admissível o pedido de J.-M. Bosman no sentido de lhe serem declaradas inaplicáveis as cláusulas de nacionalidade constantes dos seus regulamentos. Ora, resulta do acórdão da Cour de cassation que, segundo a cour d'appel, o pedido de J.-M. Bosman tinha como finalidade evitar entraves à sua carreira susceptíveis de decorrer não da aplicação das cláusulas de nacionalidade que figuravam no regulamento da URBSFA, aplicáveis a jogadores sem a nacionalidade belga, mas das cláusulas equivalentes previstas nos regulamentos da UEFA e das outras associações nacionais membros desta confederação, que podiam ser-lhe aplicadas na sua qualidade de jogador belga.
67 De quanto precede, resulta que o Tribunal de Justiça é competente para responder às questões colocadas pela cour d'appel de Liège.
Quanto à interpretação do artigo 48. do Tratado para efeitos de apreciação das regras relativas às transferências
68 Através da primeira questão, o juiz de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 48. do Tratado se opõe à aplicação de regras adoptadas por associações desportivas nos termos das quais um jogador profissional de futebol, nacional de um Estado-Membro, quando termina o contrato que o vincula a um clube, só pode ser contratado por um clube de outro Estado-Membro se este último pagar ao clube de origem uma indemnização de transferência, de formação ou de promoção.
Quanto à aplicação do artigo 48. às regras adoptadas por associações desportivas
69 A este propósito, devem começar por se analisar alguns argumentos que foram avançados quanto à aplicação da referida disposição às regras adoptadas por associações desportivas.
70 A URBSFA defendeu que só os grandes clubes europeus podem ser considerados empresas, ao passo que clubes como o RCL desenvolvem uma actividade económica de reduzidas dimensões. Além disso, a questão colocada pelo juiz nacional sobre as regras das transferências não respeita às relações laborais entre os jogadores e os clubes, mas às relações económicas entre os clubes e às consequências da liberdade de inscrição numa federação desportiva. Por conseguinte, o artigo 48. do Tratado não deveria, segundo a URBSFA, aplicar-se num caso como este.
71 Por seu turno, a UEFA alegou, designadamente, que as instâncias comunitárias sempre respeitaram a autonomia do movimento desportivo, que é extremamente difícil distinguir os aspectos económicos dos aspectos desportivos do futebol e que uma decisão do Tribunal de Justiça relativa à situação dos desportistas profissionais poderia pôr em causa o conjunto da organização do futebol. Assim, mesmo que o artigo 48. do Tratado fosse de aplicar aos jogadores profissionais, atendendo à especificidade do desporto impor-se-ia uma certa flexibilidade.
72 O Governo alemão começou por sublinhar que, na maior parte dos casos, um desporto como o futebol não tem carácter de actividade económica. Defendeu, em seguida, que o desporto em geral apresenta analogias com a cultura e recordou que, por força do n. 1 do artigo 128. do Tratado CE, a Comunidade deve respeitar a diversidade nacional e regional das culturas dos Estados-Membros. Finalmente, evocou a liberdade de associação e a autonomia de que gozam em direito nacional as federações desportivas para concluir que, ao abrigo do princípio da subsidiariedade, considerado como princípio geral, a intervenção das autoridades públicas, designadamente da Comunidade, nesta matéria deve limitar-se ao estritamente necessário.
73 Em resposta a estes argumentos, importa recordar que, tendo presentes os objectivos da Comunidade, a prática de desportos só é abrangida pelo direito comunitário na medida em que constitua uma actividade económica na acepção do artigo 2. do Tratado (v. acórdão de 12 de Dezembro de 1974, Walrave, 36/74, Colect., p. 595, n. 4). É o caso da actividade dos jogadores de futebol, profissionais ou semiprofissionais, uma vez que exercem uma actividade assalariada ou efectuam prestações de serviços remuneradas (v. acórdão de 14 de Julho de 1976, Donà, 13/76, Colect., p. 545, n. 12).
74 Cabe igualmente observar que, de qualquer modo, para efeitos de aplicação das disposições comunitárias relativas à livre circulação dos trabalhadores, não é necessário que a entidade patronal tenha a qualidade de empresa, apenas se exigindo a existência de uma relação de trabalho ou a vontade de estabelecer tal relação.
75 A aplicação do artigo 48. do Tratado tão-pouco está excluída pelo facto de as regras relativas às transferências regularem as relações económicas entre os clubes e não as relações laborais entre clubes e jogadores. Efectivamente, a circunstância de os clubes empregadores serem obrigados a pagar indemnizações por ocasião do recrutamento de um jogador proveniente de outro clube afecta as possibilidades de os jogadores encontrarem emprego, bem como as condições em que esse emprego é oferecido.
76 Quanto à dificuldade em separar os aspectos económicos e os aspectos desportivos do futebol, o Tribunal de Justiça reconheceu, no acórdão Donà, já referido, n.os 14 e 15, que as disposições comunitárias em matéria de livre circulação de pessoas e de serviços não se opõem a regulamentações ou práticas justificadas por motivos não económicos inerentes à natureza e ao contexto específicos de certos encontros. Sublinhou, no entanto, que esta restrição do âmbito de aplicação das disposições em causa deve ser mantida dentro dos limites do seu próprio objecto. Por conseguinte, não pode ser invocada para excluir toda uma actividade desportiva do âmbito de aplicação do Tratado.
77 Quanto às eventuais consequências do presente acórdão sobre a organização do futebol, globalmente considerada, é jurisprudência assente que, embora as consequências práticas de qualquer decisão judicial devam ser cuidadosamente ponderadas, não se pode contudo ir ao ponto de inflectir a objectividade do direito e comprometer a sua aplicação devido às repercussões que uma decisão judicial pode gerar. Tais repercussões poderiam, quando muito, ser tomadas em consideração para eventualmente decidir, a título excepcional, limitar os efeitos de um acórdão no tempo (v., nomeadamente, acórdão de 16 de Julho de 1992, Legros e o., C-163/90, Colect., p. I-4625, n. 30).
78 O argumento resultante da pretensa existência de analogias entre desporto e cultura tão-pouco pode ser acolhido, uma vez que a questão colocada pelo juiz nacional não tem que ver com as condições do exercício de competências comunitárias de extensão limitada, como as que têm por base o n. 1 do artigo 128. , mas com o alcance da livre circulação dos trabalhadores, garantida pelo artigo 48. , que constitui uma liberdade fundamental no sistema da Comunidade (v., nomeadamente, acórdão de 31 de Março de 1993, Kraus, C-19/92, Colect., p. I-1663, n. 16).
79 No que respeita aos argumentos baseados na liberdade de associação, importa reconhecer que este princípio, consagrado no artigo 11. da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e resultante das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, faz parte dos direitos fundamentais que, segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, reafirmada no preâmbulo do Acto Único Europeu e no artigo F, n. 2, do Tratado da União Europeia, são protegidos na ordem jurídica comunitária.
80 No entanto, não se pode considerar que as regras adoptadas por associações desportivas, mencionadas pelo órgão jurisdicional nacional, sejam necessárias para garantir o exercício desta liberdade pelas referidas associações, pelos clubes ou pelos jogadores, ou que constituam uma consequência inelutável dessa liberdade.
81 Finalmente, o princípio da subsidiariedade, na interpretação do Governo alemão ° nos termos do qual a intervenção das autoridades públicas, designadamente comunitárias, na matéria em causa se deve limitar ao estritamente necessário °, não pode ter por efeito que a autonomia de que dispõem as associações privadas para adoptarem regulamentações desportivas limite o exercício dos direitos conferidos pelo Tratado aos particulares.
82 Afastadas as objecções à aplicação do artigo 48. do Tratado a actividades desportivas como as dos jogadores profissionais de futebol, cabe recordar que, como declarou o Tribunal de Justiça no acórdão Walrave, já referido, n. 17, este artigo não regula apenas a actuação das autoridades públicas, mas abrange também as regulamentações de outra natureza destinadas a disciplinar, de forma colectiva, o trabalho assalariado.
83 Efectivamente, o Tribunal de Justiça considerou que a abolição dos obstáculos à livre circulação de pessoas e à livre prestação de serviços entre os Estados-Membros seria comprometida se a abolição das barreiras de origem estatal pudesse ser neutralizada por obstáculos resultantes do exercício da sua autonomia jurídica por associações ou organismos de direito privado (v. acórdão Walrave, já referido, n. 18).
84 Além disso, observou que as condições de trabalho nos diversos Estados-Membros são regidas tanto por via de disposições de carácter legislativo ou regulamentar como por convenções ou outros actos celebrados ou adoptados por pessoas privadas. Por conseguinte, limitar o objecto do artigo 48. do Tratado aos actos das autoridades públicas acarretaria o risco de criar desigualdades quanto à sua aplicação (v. acórdão Walrave, já referido, n. 19). Este risco é ainda mais evidente num caso como o dos processos principais em que, como se sublinhou no n. 24 do presente acórdão, as regras relativas às transferências foram adoptadas por organismos ou segundo técnicas diferentes consoante os Estados-Membros.
85 A UEFA objecta afirmando que esta interpretação leva a transformar o artigo 48. do Tratado numa disposição mais rígida para os particulares do que para os Estados-Membros, só a estes últimos sendo permitido invocar limitações justificadas por razões de ordem pública, de segurança pública e de saúde pública.
86 Esta argumentação assenta em pressupostos inexactos. De facto, nada se opõe a que as justificações de ordem pública, de segurança pública e de saúde pública sejam invocadas por particulares. A natureza pública ou privada da regulamentação em causa não tem qualquer incidência sobre o alcance ou o conteúdo das referidas justificações.
87 Assim, deve concluir-se que o artigo 48. do Tratado se aplica a regras instituídas por associações desportivas como a URBSFA, a FIFA ou a UEFA, que determinam as condições de exercício de uma actividade assalariada por desportistas profissionais.
Quanto à questão de saber se a situação descrita pelo órgão jurisdicional nacional tem carácter puramente interno
88 A UEFA considera que os litígios pendentes no órgão jurisdicional nacional têm por objecto uma situação puramente interna do Estado belga que escapa à aplicação do artigo 48. do Tratado. Efectivamente, dizem respeito a um jogador belga, cuja transferência se malogrou em razão do comportamento de um clube belga e de uma associação belga.
89 É certo que resulta de jurisprudência assente (v., nomeadamente, acórdãos de 28 de Março de 1979, Saunders, 175/78, Recueil, p. 1129, n. 11, de 28 de Junho de 1984, Moser, 180/83, Recueil, p. 2539, n. 15, de 28 de Janeiro de 1992, Steen, C-332/90, Colect., p. I-341, n. 9, e Kraus, já referido, n. 15) que as disposições do Tratado relativas à livre circulação de pessoas, especialmente o artigo 48. , não podem ser aplicadas a situações puramente internas de um Estado-Membro, ou seja, na falta de elementos de conexão com qualquer das situações previstas pelo direito comunitário.
90 No entanto, resulta dos factos apurados pelo órgão jurisdicional de reenvio que J.-M. Bosman tinha celebrado um contrato de trabalho com um clube de outro Estado-Membro a fim de exercer uma actividade assalariada no território desse Estado. Como justamente sublinhou o interessado, ao proceder deste modo, respondeu a uma oferta de emprego efectivamente feita na acepção do artigo 48. , n. 3, alínea a).
91 Não podendo a situação em causa nos processos principais ser qualificada como puramente interna, o argumento da UEFA deve ser rejeitado.
Quanto à existência de um entrave à livre circulação dos trabalhadores
92 Impõe-se portanto verificar se as regras relativas às transferências constituem um entrave à livre circulação dos trabalhadores, proibida pelo artigo 48. do Tratado.
93 Como o Tribunal de Justiça declarou em diversas ocasiões, a livre circulação dos trabalhadores constitui um dos princípios fundamentais da Comunidade e as disposições do Tratado que garantem essa liberdade têm efeito directo desde o termo do período de transição.
94 O Tribunal de Justiça considerou igualmente que o conjunto das disposições do Tratado relativas à livre circulação de pessoas visa facilitar aos nacionais comunitários o exercício de actividades profissionais de qualquer natureza em todo o território da Comunidade e opõem-se a qualquer regulamentação nacional que possa desfavorecer esses nacionais quando desejem exercer uma actividade económica no território de outro Estado-Membro (v. acórdãos de 7 de Julho de 1988, Stanton, 143/87, Colect., p. 3877, n. 13, e de 7 de Julho de 1992, Singh, C-370/90, Colect., p. I-4265, n. 16)
95 Neste contexto, os cidadãos dos Estados-Membros dispõem, muito particularmente, do direito, directamente resultante do Tratado, de abandonarem o seu país de origem para entrarem e permanecerem no território de outro Estado-Membro a fim de aí exercerem uma actividade económica (v., nomeadamente, acórdãos de 5 de Fevereiro de 1991, Roux, C-363/89, Colect., p. I-273, n. 9, e Singh, já referido, n. 17).
96 Assim, disposições que impedem ou dissuadem um cidadão de um Estado-Membro de abandonar o seu país de origem para exercer o seu direito de livre circulação constituem entraves a essa liberdade, mesmo que se apliquem independentemente da nacionalidade dos trabalhadores em causa (v. igualmente o acórdão de 7 de Março de 1991, Masgio, C-10/90, Colect., p. I-1119, n.os 18 e 19).
97 Por outro lado, o Tribunal de Justiça indicou, no acórdão de 27 de Setembro de 1988, Daily Mail and General Trust (81/87, Colect., p. 5483, n. 16), que, embora as disposições do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento visem nomeadamente assegurar o benefício do tratamento nacional no Estado-Membro de acolhimento, impedem igualmente que o Estado de origem coloque obstáculos ao estabelecimento noutro Estado-Membro dos seus nacionais ou de uma sociedade constituída em conformidade com a sua legislação e que, além disso, corresponda à definição do artigo 58. Os direitos garantidos pelo artigo 52. e segs. ficariam vazios de conteúdo se o Estado de origem pudesse proibir que as empresas fossem estabelecer-se noutro Estado-Membro. As mesmas considerações se impõem, no contexto do artigo 48. do Tratado, a propósito das regras que entravam a livre circulação dos nacionais de um Estado-Membro que desejem exercer uma actividade assalariada noutro Estado-Membro.
98 Ora, é certo que as regras relativas às transferências em causa nos litígios nos processos principais se aplicam igualmente às transferências de jogadores entre clubes pertencentes a associações nacionais diferentes dentro do mesmo Estado-Membro, e que as transferências entre clubes pertencentes à mesma associação nacional são reguladas por disposições análogas.
99 No entanto, como observaram J.-M. Bosman, o Governo dinamarquês e o advogado-geral nos pontos 209 e 210 das suas conclusões, estas regras são susceptíveis de restringir a livre circulação dos jogadores que desejem exercer a sua actividade noutro Estado-Membro, ao impedi-los ou ao dissuadi-los de abandonar os seus clubes de origem mesmo após terminarem os contratos de trabalho que os vinculam a estes últimos.
100 Efectivamente, ao preverem que um jogador profissional de futebol não pode exercer a sua actividade num novo clube estabelecido noutro Estado-Membro se esse clube não tiver pago ao anterior a indemnização de transferência cujo montante foi acordado entre os dois clubes ou determinado em conformidade com os regulamentos das associações desportivas, as referidas regras constituem um entrave à livre circulação dos trabalhadores
101 Como justamente sublinhou o órgão jurisdicional nacional, esta conclusão não é afectada pela circunstância de as regras relativas às transferências adoptadas pela UEFA em 1990 preverem que as relações económicas entre os dois clubes não têm influência sobre a actividade do jogador, que poderá jogar livremente pelo seu novo clube. Efectivamente, este último clube continua a ser obrigado a pagar a indemnização em causa, sob pena de sanções que podem ir até à sua exclusão por dívidas, o que o impede, de maneira igualmente eficaz, de contratar um jogador proveniente de um clube de outro Estado-Membro sem pagar o montante da referida indemnização.
102 Esta conclusão tão-pouco é posta em causa pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, invocada pela URBSFA e pela UEFA, de que o artigo 30. do Tratado não se aplica a medidas que limitam ou proíbem determinadas formas de venda, desde que se apliquem a todos os operadores que exerçam a sua actividade no território nacional e desde que afectem da mesma forma, tanto juridicamente como de facto, a comercialização dos produtos nacionais e dos provenientes de outros Estados-Membros (v. acórdão de 24 de Novembro de 1993, Keck e Mithouard, C-267/91 e C-268/91, Colect., p. I-6097, n. 16).
103 Efectivamente, basta sublinhar que, se é verdade que as regras em causa nos processos principais se aplicam igualmente às transferências entre clubes pertencentes a associações nacionais diferentes no seio do mesmo Estado-Membro e são análogas às que regulam as transferências entre clubes pertencentes à mesma associação nacional, não é menos certo que condicionam directamente o acesso dos jogadores ao mercado do trabalho nos outros Estados-Membros, sendo assim susceptíveis de entravar a livre circulação dos trabalhadores. Por conseguinte, não podem ser equiparadas às regulamentações relativas às modalidades de venda das mercadorias que o acórdão Keck e Mithouard considerou que escapam ao domínio de aplicação do artigo 30. do Tratado (v. igualmente, em matéria de livre prestação de serviços, o acórdão de 10 de Maio de 1995, Alpine Investments, C-384/93, Colect., p. I-1141, n.os 36 a 38).
104 Consequentemente, as regras relativas às transferências constituem entraves à livre circulação dos trabalhadores, proibidos, em princípio, pelo artigo 48. do Tratado. Só assim não seria se essas regras prosseguissem um objectivo legítimo compatível com o Tratado e se justificassem por razões imperiosas de interesse geral. Mas, mesmo em tal caso, seria necessário que a aplicação das referidas regras fosse adequada para garantir a realização dos seus objectivos e não ultrapassasse o necessário para os atingir (v., nomeadamente, o acórdão Kraus, já referido, n. 32 e o acórdão de 30 de Novembro de 1995, Gebhard, C-55/94, Colect. p. II-0000, n. 37).
Quanto à existência de justificações
105 Em primeiro lugar, a URBSFA, a UEFA, bem como os Governos francês e italiano, defenderam que as regras relativas às transferências se justificavam pela necessidade de manter o equilíbrio financeiro e desportivo entre os clubes e de apoiar a procura de talentos e a formação de jogadores jovens.
106 Tendo em conta a considerável importância social que reveste a actividade desportiva, mais concretamente o futebol na Comunidade, importa reconhecer que os objectivos que consistem em assegurar a manutenção do equilíbrio entre os clubes, preservando uma certa igualdade de oportunidades e a incerteza dos resultados, bem como em encorajar o recrutamento e a formação de jogadores jovens, são legítimos.
107 Quanto ao primeiro destes objectivos, J.-M. Bosman tem razão ao sublinhar que a aplicação das regras relativas às transferências não constitui um meio adequado para garantir a manutenção do equilíbrio financeiro e desportivo no mundo do futebol. Essas regras não impedem os clubes mais ricos de assegurar os serviços dos melhores jogadores nem que os meios financeiros disponíveis sejam um elemento decisivo na competição desportiva e que o equilíbrio entre os clubes seja com isso consideravelmente alterado.
108 Quanto ao segundo objectivo, há que admitir que a perspectiva de receber indemnizações de transferência, de promoção ou de formação é efectivamente susceptível de encorajar os clubes de futebol a procurar talentos e a assegurar a formação dos jovens jogadores.
109 No entanto, dada a impossibilidade de prever com segurança o futuro desportivo dos jovens jogadores e o número limitado desses jogadores que desenvolvem uma actividade profissional, tais indemnizações caracterizam-se pela sua natureza eventual e aleatória e são, de qualquer modo, independentes dos encargos efectivamente suportados pelos clubes para formar tanto os futuros jogadores profissionais como os que nunca o serão. Nestas condições, a perspectiva de receber tais indemnizações não pode constituir um elemento determinante para encorajar o recrutamento e a formação de jovens jogadores nem um meio adequado de financiar essas actividades, designadamente no caso dos pequenos clubes.
110 Por outro lado, como sublinhou o advogado-geral nos pontos 226 e segs. das suas conclusões, os mesmos objectivos podem ser alcançados de um modo pelo menos tão eficaz através de outros meios que não entravem a livre circulação dos trabalhadores.
111 Em seguida, foi defendido que as regras relativas às transferências são necessárias para proteger a organização mundial do futebol.
112 A este propósito, importa sublinhar que o presente processo tem por objecto a aplicação destas regras no interior da Comunidade e não as relações entre as associações nacionais dos Estados-Membros e as dos países terceiros. Por outro lado, a aplicação de regras diferentes às transferências entre clubes que pertencem às associações nacionais da Comunidade e às transferências entre estes clubes e os clubes inscritos nas associações nacionais dos países terceiros não colocam dificuldades de maior. Efectivamente, como resulta dos n.os 22 e 23 supra, as regras que até agora têm disciplinado as transferências no seio das associações nacionais de certos Estados-Membros são diferentes das aplicáveis no plano internacional.
113 Finalmente, o argumento segundo o qual as referidas regras são necessárias para compensar os encargos suportados pelos clubes para pagar indemnizações por ocasião do recrutamento dos seus jogadores não pode ser acolhido, uma vez que pretende justificar a manutenção de entraves à livre circulação dos trabalhadores pelo simples facto de esses entraves terem existido no passado.
114 Consequentemente, há que responder à primeira questão que o artigo 48. do Tratado se opõe à aplicação de regras adoptadas por associações desportivas nos termos das quais um jogador profissional de futebol nacional de um Estado-Membro, no termo do contrato que o vincula a um clube, só pode ser contratado por um clube de outro Estado-Membro se este último pagar ao clube de origem uma indemnização de transferência, de formação ou de promoção.
Quanto à interpretação do artigo 48. do Tratado para efeitos de apreciação das cláusulas de nacionalidade
115 Através da segunda questão, o juiz nacional pergunta, no essencial, se o artigo 48. do Tratado se opõe à aplicação de regras adoptadas por associações desportivas nos termos das quais, nos encontros das competições por elas organizadas, os clubes de futebol apenas podem fazer alinhar um número limitado de jogadores profissionais nacionais de outros Estados-Membros.
Quanto à existência de um entrave à livre circulação dos trabalhadores
116 Como o Tribunal sublinhou no n. 87 supra, o artigo 48. do Tratado aplica-se às regras instituídas por associações desportivas que determinam as condições de exercício de uma actividade assalariada por desportistas profissionais. Assim, há que apreciar se as cláusulas de nacionalidade constituem um entrave à livre circulação dos trabalhadores, proibido pelo artigo 48.
117 O artigo 48. , n. 2, dispõe expressamente que a livre circulação dos trabalhadores implica a abolição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, entre os trabalhadores dos Estados-Membros, no que diz respeito ao emprego, à remuneração e demais condições de trabalho.
118 A esta disposição foi dada execução, entre outros, pelo artigo 4. do Regulamento (CEE) n. 1612/68 do Conselho, de 15 de Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade (JO L 257, p. 2; EE 05 F1 p. 77), nos termos do qual as disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados-Membros que limitem o emprego de estrangeiros em número ou em percentagem, por empresa, por ramo de actividade, por região ou à escala nacional, não são aplicáveis aos nacionais dos outros Estados-Membros.
119 O mesmo princípio opõe-se a que as cláusulas contidas nos regulamentos das associações desportivas limitem o direito de os nacionais de outros Estados-Membros participarem, como jogadores profissionais, em encontros de futebol (v. acórdão Donà, já referido, n. 19).
120 A este propósito, a circunstância de essas cláusulas não terem por objecto a contratação desses jogadores, que não é limitada, mas a possibilidade de os clubes inscritos nas associações os utilizarem num encontro oficial, é indiferente. Na medida em que a participação nesses encontros constitui o objecto essencial da actividade de um jogador profissional, é evidente que uma regra que a limita restringe igualmente as possibilidades de emprego do jogador em causa.
Quanto à existência de justificações
121 Provada a existência de um entrave, importa verificar se ele se pode justificar face ao artigo 48. do Tratado.
122 A URBSFA, a UEFA, bem como os Governos alemão, francês e italiano alegam que as cláusulas de nacionalidade se justificam por razões não económicas, que têm unicamente que ver com o desporto enquanto tal.
123 Efectivamente, servem, em primeiro lugar, para preservar a ligação que tradicionalmente existe entre cada clube e o seu país, que reveste grande importância para permitir a identificação do público com a sua equipa favorita e garantir que os clubes que participam em competições internacionais representam efectivamente o seu país.
124 Em segundo lugar, as cláusulas são necessárias para criar uma reserva de jogadores nacionais suficiente para colocar as equipas nacionais em condições de alinhar jogadores de alto nível em todos os sectores da equipa.
125 Em terceiro lugar, contribuem para manter o equilíbrio desportivo entre os clubes, impedindo os mais ricos de contratarem os melhores jogadores.
126 Finalmente, a UEFA sublinha que a regra "3 + 2" foi elaborada em conjunto com a Comissão e que deve ser revista regularmente em função da evolução da política comunitária.
127 A este propósito, cabe recordar que no acórdão Donà, já referido, n.os 14 e 15, o Tribunal de Justiça reconheceu que as disposições do Tratado em matéria de livre circulação de pessoas não se opõem a regulamentações ou práticas que excluam os jogadores estrangeiros da participação em determinados encontros, por razões que não sejam económicas mas inerentes à natureza e ao contexto específicos destes encontros, que têm, assim, uma natureza exclusivamente desportiva, como acontece, por exemplo, nos encontros entre equipas nacionais de diferentes países. Sublinhou, porém, que esta restrição do âmbito de aplicação das disposições em causa deve ser mantida dentro dos limites do seu próprio objecto.
128 No caso vertente, as cláusulas de nacionalidade não se aplicam a encontros específicos, opondo equipas representativas de cada país, mas ao conjunto dos encontros oficiais entre clubes e, portanto, ao essencial da actividade exercida pelos jogadores profissionais.
129 Nestas condições, as cláusulas de nacionalidade não podem ser consideradas conformes com o artigo 48. do Tratado, sob pena de se privar esta disposição do seu efeito útil e de reduzir a nada o direito fundamental de aceder livremente a um emprego, que o referido artigo confere individualmente a qualquer trabalhador da Comunidade (v., quanto a este último ponto, o acórdão de 15 de Outubro de 1987, Heylens, 222/86, Colect., p. 4097, n. 14).
130 Nenhum dos argumentos invocados pelas associações desportivas e pelos governos que apresentaram observações é susceptível de pôr em causa tal conclusão.
131 Em primeiro lugar, deve sublinhar-se que a ligação entre um clube de futebol e o Estado-Membro em que se encontra estabelecido não pode ser considerada inerente à actividade desportiva, do mesmo modo que não se pode considerar que reveste essa natureza o nexo entre esse clube e o bairro, cidade, região ou, no caso do Reino Unido, território abrangido por cada uma das quatro federações. Ora, opondo os campeonatos nacionais clubes de diferentes regiões, cidades ou bairros, nenhuma regra limita, em relação a esses encontros, o direito de os clubes fazerem alinhar jogadores provenientes de outras regiões, cidades ou bairros.
132 Por outro lado, nas competições internacionais, a participação é reservada aos clubes que tenham obtido determinados resultados desportivos nos respectivos países, não revestindo a nacionalidade dos seus jogadores papel determinante.
133 Em segundo lugar, importa observar que, se é verdade que as selecções nacionais devem ser compostas por jogadores com a nacionalidade do país em causa, esses jogadores não têm que estar qualificados para clubes desse país. De resto, por força das regulamentações das associações desportivas, os clubes que empregam jogadores estrangeiros são obrigados a autorizá-los a participar em certos encontros da respectiva selecção nacional.
134 Além disso, embora a livre circulação dos trabalhadores, ao abrir o mercado de trabalho de um Estado-Membro aos nacionais dos outros Estados-Membros, tenha por efeito reduzir as oportunidades de os cidadãos nacionais encontrarem emprego no território do Estado de que são originários, em contrapartida abre novas perspectivas de emprego a esses mesmos trabalhadores nos outros Estados-Membros. Tais considerações também se aplicam, evidentemente, aos jogadores profissionais de futebol.
135 Em terceiro lugar, quanto à manutenção do equilíbrio desportivo, deve observar-se que as cláusulas de nacionalidade, que supostamente impedem os clubes mais ricos de contratarem os melhores jogadores estrangeiros, não são adequadas para alcançar este objectivo, uma vez que nenhuma regra limita a possibilidade de esses clubes recrutarem os melhores jogadores nacionais, que de igual modo compromete esse equilíbrio.
136 Finalmente, no que respeita ao argumento assente na participação da Comissão na elaboração da regra "3 + 2", é importante recordar que, para lá dos casos em que tais competências lhe são expressamente atribuídas, a Comissão não está habilitada a dar garantias quanto à compatibilidade com o Tratado de determinado comportamento (v. igualmente o acórdão de 27 de Maio de 1981, Essevi e Salengo, 142/80 e 143/80, Recueil, p. 1413, n. 16). A Comissão não dispõe, em nenhuma circunstância, do poder de autorizar comportamentos contrários ao Tratado.
137 De quanto precede, resulta que o artigo 48. do Tratado se opõe à aplicação de regras adoptadas por associações desportivas nos termos das quais, nos encontros por elas organizados, os clubes de futebol apenas podem fazer alinhar um número limitado de jogadores profissionais nacionais de outros Estados-Membros.
Quanto à interpretação dos artigos 85. e 86. do Tratado
138 Uma vez que os dois tipos de regras que são objecto das questões prejudiciais são contrários ao artigo 48. , o Tribunal entende que não é necessário pronunciar-se sobre a interpretação dos artigos 85. e 86. do Tratado.
Quanto aos efeitos do presente acórdão no tempo
139 Nas suas observações escritas e alegações, a UEFA e a URBSFA chamaram a atenção do Tribunal para as graves consequências que poderiam resultar do seu acórdão para a organização do futebol no seu conjunto, na hipótese de o Tribunal considerar que as regras relativas às transferências e as cláusulas de nacionalidade são incompatíveis com o Tratado.
140 Por seu lado, J.-M. Bosman, embora observando que tal solução não se impõe, evocou a possibilidade de o Tribunal de Justiça limitar os efeitos do seu acórdão no tempo na parte relativa às regras das transferências.
141 Segundo jurisprudência assente, a interpretação que o Tribunal de Justiça faz de uma norma de direito comunitário, no exercício da competência que lhe confere o artigo 177. , esclarece e precisa, quando é necessário, o significado e o alcance dessa norma, tal como deve ou deveria ter sido compreendida e aplicada desde o momento da sua entrada em vigor. Donde se conclui que a norma assim interpretada pode e deve ser aplicada pelo juiz mesmo às relações jurídicas surgidas e constituídas antes de ser proferido o acórdão que decida o pedido de interpretação, se se encontrarem também reunidas as condições que permitam submeter aos órgãos jurisdicionais competentes um litígio relativo à aplicação da referida norma (v., nomeadamente, acórdão de 2 de Fevereiro de 1988, Blaizot, 24/86, Colect., p. 379, n. 27).
142 Só a título excepcional o Tribunal pode, em aplicação do princípio geral da segurança jurídica inerente à ordem jurídica comunitária, ser levado a limitar a possibilidade de qualquer interessado invocar uma disposição que o Tribunal interpretou para pôr em causa relações jurídicas estabelecidas de boa fé. Tal limitação só pode ser admitida no próprio acórdão que decide quanto à interpretação solicitada (v., nomeadamente, acórdão Blaizot, já referido, n. 28, e Legros e o., já referido, n. 30).
143 No presente processo, as especificidades das regras instituídas pelas associações desportivas para as transferências de jogadores entre clubes de diferentes Estados-Membros, bem como a circunstância de as mesmas regras ou regras análogas se aplicarem tanto às transferências entre clubes pertencentes à mesma associação nacional como às que envolvem clubes pertencentes a associações nacionais diferentes dentro do mesmo Estado-Membro, podem ter criado uma situação de incerteza quanto à compatibilidade das referidas regras com o direito comunitário.
144 Nestas condições, considerações imperiosas de segurança jurídica opõem-se a que situações jurídicas que produziram todos os seus efeitos no passado sejam objecto de reavaliação. No entanto, há que prever uma excepção para as pessoas que tenham, em tempo útil, tomado iniciativas para salvaguardar os seus direitos. Finalmente, importa sublinhar que a limitação dos efeitos da referida interpretação só pode ser admitida no que respeita às indemnizações de transferência, de formação ou de promoção que, na data do presente acórdão, já tenham sido pagas ou sejam devidas em execução de uma obrigação nascida antes desta data.
145 Consequentemente, há que decidir que o efeito directo do artigo 48. do Tratado não pode ser invocado em apoio de reivindicações relativas a uma indemnização de transferência, de formação ou de promoção que, na data do presente acórdão, já tenha sido paga ou seja devida em execução de uma obrigação nascida antes desta data, excepto se, antes desta data, já tiver sido proposta acção judicial ou apresentada reclamação equivalente nos termos do direito nacional aplicável.
146 Em contrapartida, no que respeita às cláusulas de nacionalidade, a limitação dos efeitos do presente acórdão no tempo não pode ser admitida. À luz dos acórdãos Walrave e Donà, já referidos, o interessado não podia, de facto, razoavelmente considerar que as discriminações resultantes de tais cláusulas eram compatíveis com o artigo 48. do Tratado.
Quanto às despesas
147 As despesas efectuadas pelos Governos dinamarquês, alemão, francês e italiano e pela Comissão das Comunidades Europeias, que apresentaram observações ao Tribunal, não são reembolsáveis. Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas.
Pelos fundamentos expostos,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
pronunciando-se sobre as questões submetidas pela cour d'appel de Liège, por acórdão de 1 de Outubro de 1993, declara:
1) O artigo 48. do Tratado CEE opõe-se à aplicação de regras adoptadas por associações desportivas nos termos das quais um jogador profissional de futebol nacional de um Estado-Membro, no termo do contrato que o vincula a um clube, só pode ser contratado por um clube de outro Estado-Membro se este último pagar ao clube de origem uma indemnização de transferência, de formação ou de promoção.
2) O artigo 48. do Tratado CEE opõe-se à aplicação de regras adoptadas por associações desportivas nos termos das quais, nos encontros por elas organizados, os clubes de futebol apenas podem fazer alinhar um número limitado de jogadores profissionais nacionais de outros Estados-Membros.
3) O efeito directo do artigo 48. do Tratado CEE não pode ser invocado em apoio de reivindicações relativas a uma indemnização de transferência, de formação ou de promoção que, na data do presente acórdão, já tenha sido paga ou seja devida em execução de uma obrigação nascida antes desta data, excepto se, antes desta data, já tiver sido proposta acção judicial ou apresentada reclamação equivalente nos termos do direito nacional aplicável.