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Advertência jurídica importante

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62000C0208

Conclusões do advogado-geral Ruiz-Jarabo Colomer apresentadas em 4 de Dezembro de 2001. - Überseering BV contra Nordic Construction Company Baumanagement GmbH (NCC). - Pedido de decisão prejudicial: Bundesgerichtshof - Alemanha. - Artigos 43.º CE e 48.º CE - Sociedade constituída em conformidade com a legislação de um Estado-Membro e que neste tem a sua sede social - Sociedade que exerce a liberdade de estabelecimento noutro Estado-Membro - Sociedade que se considera ter transferido a sua sede efectiva para o território do Estado-Membro de acolhimento nos termos do direito deste Estado - Não reconhecimento pelo Estado-Membro de acolhimento da capacidade jurídica e da capacidade judiciária da sociedade - Restrição à liberdade de estabelecimento - Justificação. - Processo C-208/00.

Colectânea da Jurisprudência 2002 página I-09919


Conclusões do Advogado-Geral


Introdução

1. O presente pedido de decisão prejudicial dá oportunidade ao Tribunal de Justiça de esclarecer o significado do acórdão de 9 de Março de 1999, Centros , e de precisar, de maneira geral, a medida em que o direito comunitário influi na definição do estatuto jurídico das pessoas colectivas.

Esta controvérsia deu lugar a um rico debate na doutrina europeia e, em particular, na alemão .

2. Os autos do processo principal suscitam o problema de uma lei que impede uma sociedade validamente constituída num Estado-Membro, que tem a sua sede e exerce a sua actividade em território comunitário - e que, portanto, pode aspirar ao gozo da liberdade de estabelecimento prevista no Tratado -, de fazer valer os seus direitos perante os tribunais de outro Estado-Membro, em que tem a sua sede real .

3. No fundo, trata-se de averiguar se - e até que ponto - o direito comunitário incide directamente na organização das disposições normativas nacionais de direito internacional privado relativas ao estatuto pessoal das sociedades.

Factos e tramitação processual na causa principal

4. Tal como se extraem da decisão de reenvio, os factos e as etapas processuais do litígio principal podem resumir-se da seguinte forma.

5. A demandante, Überseering BV (a seguir «Überseering»), está inscrita desde 1990 no Registo Comercial de Amesterdão e Haarlem, como «Besloten Vennootschap met beperkte aansprakelijkheid» (BV) . No Registo Predial alemão, figura como proprietária de um terreno em Düsseldorf, no qual construiu um grande edifício para parque de estacionamento e um motel.

6. Por contrato de empreitada de 27 de Novembro de 1992, a sociedade demandada, NCC Nordic Construction Company Baumanagement GmbH ( a seguir «NCC»), com sede social na Alemanha, obrigou-se perante a demandante a efectuar a renovação desses dois imóveis. Esses serviços foram prestados, mas a demandante considerou que existiam defeitos nos trabalhos de pintura. Em 1995 pediu à demandada, sem sucesso, que reparasse os referidos defeitos.

7. Em 1 de Janeiro de 1995, dois particulares adquiriram a totalidade das participações sociais da demandante. Conforme apurou o Oberlandesgericht Düsseldorf, órgão jurisdicional de recurso, desde essa aquisição a sociedade tem a sua sede de administração efectiva em Düsseldorf.

8. Em 1996, a Überseering propôs uma acção contra a NCC pela qual reclamava 1 163 657,77 DEM, acrescidos de juros, a título de despesas com a reparação dos defeitos e de subsequentes perdas e danos. O Landgericht declarou inadmissível a acção. O Oberlandesgericht negou provimento ao recurso interposto da sentença de primeira instância, sustentado a tese de que a demandante, como sociedade neerlandesa, não tinha capacidade judiciária na Alemanha. Nos termos do § 50 da Lei de Processo Civil alemã (Zivilprozeßordnung, a seguir «ZPO»), têm capacidade judiciária as pessoas que tenham capacidade jurídica, que, no caso de sociedades, se determina em função do seu estatuto pessoal, regido pelo direito do Estado onde se encontra a sua sede principal de administração. Assim sucede também no caso de uma sociedade validamente constituída nos Países Baixos que transfere a sua sede para a República Federal da Alemanha.

9. A demandante interpôs recurso de revista dessa decisão, em que reiterou o seu pedido de indemnização.

O direito interno pertinente

10. No direito processual civil alemão é de declarar a inadmissibilidade de qualquer recurso interposto por uma pessoa que, por não ter capacidade judiciária, não se pode constituir como parte principal (demandante ou demandada) ou secundária (interveniente) num processo judicial. Segundo o § 50, n.° 1, da ZPO, têm capacidade judiciária as pessoas que gozem de capacidade jurídica. Esta norma aplica-se também às sociedades. Em consequência, a capacidade judiciária depende, para o direito alemão, da questão de saber se se tem capacidade jurídica, que é a susceptibilidade de ser sujeito de direitos e obrigações.

11. De acordo com reiterada jurisprudência do Bundesgerichtshof, a questão de saber se uma sociedade tem capacidade jurídica determina-se tendo em conta o direito aplicável no lugar em que se encontre a sede da sua administração efectiva (a denominada «Sitztheorie», teoria da sede). Assim acontece também quando uma sociedade foi validamente constituída noutro Estado e depois transferida a sede da sua administração efectiva para a República Federal. A capacidade jurídica adquirida através da sua constituição, não se mantém, sem mais, na Alemanha, mas isso depende de saber se a sociedade continua a existir para o direito do Estado de constituição e de saber se, além disso, tem capacidade jurídica segundo o direito alemão. A opinião dominante na doutrina partilha esta posição da jurisprudência.

12. Tomar como elemento de conexão a sede real dá lugar a que uma sociedade validamente constituída no estrangeiro, à qual, em princípio, se reconheça capacidade jurídica na Alemanha, a perca quando transfere a sua sede permanente para a República Federal. Na medida em que esteja sujeita à lei alemã, não poderá ser titular de direitos e obrigações, nem parte num processo judicial. Para participar no tráfico jurídico, deverá dissolver-se e voltar a constituir-se de modo que lhe permita adquirir capacidade jurídica em conformidade com o direito alemão .

13. Segundo reconhece o próprio Bundesgerichtshof, a sua jurisprudência é, não obstante, objecto de controvérsia na doutrina alemã. Distinguem-se principalmente duas tendências:

Para a primeira, as relações jurídicas de uma sociedade e, portanto, também a sua capacidade, devem ser determinados por referência ao direito do Estado em que a sociedade se tenha constituído (teoria da constituição). Este elemento de conexão oferece a vantagem da sua maior precisão e estabilidade, o que redunda em benefício da segurança jurídica. Além disso, favorece a mobilidade transfronteiriça das empresas.

Para outros autores, o estatuto jurídico de uma sociedade não deve ser apreciado a partir de um único ordenamento, mas de forma diferenciada em função de diversos critérios. Deste modo, a existência e a capacidade jurídica da sociedade, tal como as relações jurídicas dos sócios entre si («relações internas») deveriam ser regidas pelo direito do Estado de constituição, ao passo que as actividades da sociedade e a protecção dos seus credores («relações externas») o devem ser pelo direito do Estado em que se encontre a sua sede.

O direito comunitário aplicável

14. O litígio no processo principal suscita dúvidas quanto à interpretação, fundamentalmente, dos artigos 43.° CE e 48.° CE, lidos em conjugação com o artigo 293.° CE, terceiro travessão.

Artigo 43.° CE

No âmbito das disposições seguintes, são proibidas as restrições à liberdade de estabelecimento dos nacionais de um Estado-Membro no território de outro Estado-Membro. Esta proibição abrangerá igualmente as restrições à constituição de agências, sucursais ou filiais pelos nacionais de um Estado-Membro estabelecidos no território de outro Estado-Membro.

A liberdade de estabelecimento compreende tanto o acesso às actividades não assalariadas e o seu exercício, como a constituição e a gestão de empresas e designadamente de sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 48.° , nas condições definidas na legislação do país de estabelecimento para os seus próprios nacionais, sem prejuízo do disposto no capítulo relativo aos capitais.

Artigo 48.° CE

As sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado-Membro e que tenham a sua sede social, administração central ou estabelecimento principal na Comunidade são, para efeitos do disposto no presente capítulo, equiparadas às pessoas singulares, nacionais dos Estados-Membros.

Por «sociedades» entendem-se as sociedades de direito civil ou comercial, incluindo as sociedades cooperativas, e as outras pessoas colectivas de direito público ou privado, com excepção das que não prossigam fins lucrativos.

Artigo 293.°

Os Estados-Membros entabularão entre si, sempre que necessário, negociações destinadas a garantir, em benefício dos seus nacionais:

[...]

- o reconhecimento mútuo das sociedades, na acepção do segundo parágrafo do artigo 48.° , a manutenção da personalidade jurídica em caso de transferência da sede de um país para outro e a possibilidade de fusão de sociedades sujeitas a legislações nacionais diferentes;

[...].

As questões prejudiciais apresentadas

15. Segundo o Bundesgerichtshof, órgão jurisdicional supremo em matéria cível, não se pode deduzir claramente da jurisprudência do Tribunal de Justiça se, em caso de transferência transfronteiriça da sede de uma empresa, a liberdade de estabelecimento garantida nos artigos 43.° CE e 48.° CE se opõe a que, para determinar o seu estatuto pessoal, se tome como elemento de conexão a sede da sua administração efectiva. Nestas circunstâncias, o tribunal a quo decidiu suspender a instância e remeter, a título prejudicial, para o Tribunal de Justiça, as seguintes questões:

1) Devem os artigos 43.° CE e 48.° CE ser interpretados no sentido de que está em oposição à liberdade de estabelecimento das sociedades o facto de a capacidade jurídica e a capacidade judiciária de uma sociedade validamente constituída de acordo com o direito de um Estado-Membro serem apreciadas pelo direito do Estado para o qual a sociedade transferiu a sua sede administrativa efectiva, bem como o facto de deste direito resultar que ela não pode invocar nos tribunais desse Estado direitos resultantes de um contrato?

2) Para o caso de o Tribunal de Justiça responder afirmativamente a esta questão:

A liberdade de estabelecimento das sociedades (artigos 43.° CE e 48.° CE) impõe o reconhecimento da capacidade jurídica e da capacidade judiciária de acordo com o direito do Estado onde a sociedade foi constituída?

Tramitação processual no Tribunal de Justiça

16. O pedido de decisão prejudicial deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 25 de Maio de 2000.

17. Apresentaram observações escritas e alegaram oralmente, além de ambas as partes em litígio no processo principal, os Governos alemão, espanhol e britânico, a Comissão e a Autoridade de Fiscalização da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA). O Governo italiano só formulou alegações por escrito, enquanto o neerlandês unicamente compareceu na audiência, que teve lugar na manhã de 16 de Outubro de 2001.

18. A demandante, juntamente com os Governos britânico e neerlandês e a Comissão, pronunciou-se a favor de uma resposta afirmativa a ambas a questões, ao passo que a Autoridade de Fiscalização da EFTA fez o mesmo em relação à primeira. Os outros interessados propugnaram pela solução contrária.

Análise das questões prejudiciais

19. Deve, em primeiro lugar, delimitar-se o âmbito jurisprudencial em que se enquadram as questões submetidas pelo Bundesgerichtshof. Uma vez determinados os princípios de aplicação geral pertinentes, deve estudar-se a maneira de os pôr em prática relativamente ao presente caso.

A delimitação dos critérios jurisprudenciais aplicáveis

20. Os intervenientes concentraram as suas observações, com razão, a meu ver, nos acórdãos de 27 de Setembro de 1988, Daily Mail and General Trust PLC , e de 9 de Março de 1999, Centros, já referido.

21. O processo Daily Mail tinha um pano de fundo jurídico peculiar. O direito comercial inglês, vigente à época dos autos, previa que uma sociedade constituída em conformidade com a legislação britânica e com sede estatutária (registered office) no Reino Unido podia transferir a sua sede de direcção e administração central para outro país sem perder a sua nacionalidade.

Sujeitos passivos do imposto sobre sociedades eram aquelas empresas cuja sede de direcção (residence) se encontrasse em território britânico. A lei fiscal proibia, portanto, que as sociedades com domicílio, para efeitos tributários, no Reino Unido transferissem a sua sede de direcção para o estrangeiro, sem autorização do Ministro das Finanças.

22. Tendo em vista uma importante operação de reestruturação, a Daily Mail pretendia transferir a sua sede de direcção para os Países Baixos a fim de obter substanciais vantagens fiscais e solicitou, em vão, a autorização regulamentar.

No decurso da impugnação desse indeferimento, suscitou-se a questão prejudicial. O Tribunal de Justiça entendeu que os actuais artigos 43.° CE e 48.° CE não conferiam, no estádio de desenvolvimento em que se encontrava o direito comunitário, a uma sociedade constituída de acordo com a legislação de um Estado-Membro onde tem a sua sede estatutária o direito de transferir o seu centro de direcção para outro Estado-Membro.

23. Para chegar a esta conclusão, o Tribunal de Justiça teve em conta que a liberdade de estabelecimento se opõe a que o Estado de origem crie obstáculos ao estabelecimento, em outro Estado-Membro, dos seus nacionais ou de uma sociedade constituída em conformidade com sua legislação . Considerou, além disso, que, contrariamente às pessoas singulares, as sociedades são entidades criadas por virtude de uma ordem jurídica e só existem através das diversas legislações nacionais que regulam a sua constituição e o seu funcionamento .

24. Depois de verificar que, apesar do convite expresso contido no artigo 293.° CE, não tinha sido adoptada nenhuma disposição comunitária na matéria, o Tribunal de Justiça declarou que o Tratado considera a disparidade das legislações nacionais relativas ao elemento de conexão exigido às suas sociedades (sede social, administração central ou estabelecimento principal), tal como à possibilidade e, tal sendo o caso, às modalidades de transferência da sede, formal ou real, de uma sociedade, constituída em conformidade com a legislação nacional, de um Estado-Membro para outro, como problemas que não são resolvidos pelas normas sobre o direito de estabelecimento, mas que o devem ser por via legislativa ou convencional .

25. Os termos desta última declaração são particularmente claros e incondicionais. Reflectindo, por si sós, o estado actual da jurisprudência, é provável que se tenha de responder de forma negativa à primeira das questões prejudiciais submetidas .

26. Não obstante, vários intervenientes, entre os quais se destaca a Comissão, esforçaram-se por retirar relevância, para efeitos dos presentes autos, às afirmações contidas no acórdão Daily Mail. Apoiando-se nos factos desse litígio principal e num princípio de protecção reforçada da liberdade de estabelecimento por parte do Estado-Membro de acolhimento, pretendem reduzir o seu alcance a um mero reconhecimento de que cabe exclusivamente ao Estado-Membro de origem a faculdade de estabelecer a regulamentação normativa sobre a constituição e a existência jurídica das sociedades em conformidade com as normas de conflitos que sejam aplicáveis.

Trata-se de uma interpretação voluntarista, mas errada: nem do acórdão pode extrair-se a diferente graduação da intensidade de protecção, consoante deva outorgá-la o Estado de origem ou o de acolhimento, nem é fiel ao declarado no seu n.° 23 limitar a sua eficácia ao reconhecimento de uma determinada competência legislativa exclusiva.

Pelo contrário, sempre segundo o que consta do mesmo ponto do acórdão, as normas comunitárias relativas à liberdade de estabelecimento não incidem (ou não incidiam então) na faculdade de os Estados-Membros definirem os critérios de determinação do estatuto jurídico das pessoas colectivas, tal como as questões relativas à transferência da sede, estatutária ou real, de um Estado-Membro para outro.

27. Deve, contudo, recordar-se que o estabelecido no acórdão Daily Mail valia unicamente «no estado (de então) do direito comunitário». Esta reserva contribui para a preocupação pela disparidade normativa, reflectida, pelo primeiro legislador, no que é hoje o artigo 293.° CE que convida os Estados-Membros a reduzi-la «sempre que necessário».

28. Por conseguinte, é preciso analisar se, a partir dessas datas, se produziram modificações substanciais na situação jurídica que permitam uma nova apreciação.

29. Estou de acordo com o conjunto dos intervenientes que se pronunciaram sobre este ponto em que os avanços registados na aproximação das legislações em matéria de sociedades não tiveram incidência sobre os problemas relativos à transferência transfronteiriça da sede, formal ou real, de uma pessoa colectiva. Não houve, pois, evolução legislativa relevante.

30. Não acontece o mesmo em relação à actividade jurisprudencial. Também neste ponto estão de acordo os interessados, ainda que nem todos extraiam as mesmas consequências das modificações que assinalam.

31. Surge com facilidade, como principal referência, o já referido acórdão Centros, de 9 de Março de 1999.

Punha-se então a questão da compatibilidade com as normas relativas à liberdade de estabelecimento da recusa de inscrição no registo competente de um Estado-Membro de uma sucursal de uma sociedade estrangeira comunitária, constituída em conformidade com as leis de outro Estado-Membro e com a finalidade de exercer toda a sua actividade no país do estabelecimento da sucursal. O tribunal a quo dinamarquês considerou, além disso, que o método utilizado se destinava a eludir as obrigações, mais onerosas, para a constituição de sociedades, vigentes na Dinamarca.

32. O Tribunal de Justiça raciocinou em três etapas sucessivas, distinguindo, em princípio, entre a) a questão da aplicação das normas relativas à liberdade de estabelecimento e b) as medidas que um Estado-Membro pode adoptar para impedir que, recorrendo às possibilidades que oferece o Tratado, se contornem, de forma abusiva, as normas nacionais (prevenção do abuso de direito), acrescentando c) algumas considerações sobre a existência das razões alegadas pelas autoridades dinamarquesas (razões imperativas de interesse geral).

33. Assim, primeiramente verificou a existência de um obstáculo a essa liberdade fundamental.

Para o confirmar, bastou-lhe recordar que o direito ao livre estabelecimento se estende às sociedades constituídas em conformidade com a legislação de um Estado-Membro e cuja sede social, administração central ou estabelecimento principal se encontram na Comunidade (estabelecimento primário), de onde se deduz que essas sociedades têm direito a exercer a sua actividade noutro Estado-Membro por intermédio de uma agência, sucursal ou filial (estabelecimento secundário), servindo a localização da sua sede estatutária, da sua administração central ou do seu estabelecimento principal para determinar, à semelhança da nacionalidade das pessoas singulares, a sua sujeição à ordem jurídica de um Estado-Membro .

Rejeitou, depois, que a recusa de inscrição da sucursal pudesse ser uma medida destinada a impedir o abuso do direito de estabelecimento, no sentido da jurisprudência Van Binsbergen . Considerou, pelo contrário, que o direito de constituir uma sociedade de acordo com a legislação de um Estado-Membro, em particular, daquele cujas normas de direito das sociedades sejam menos rigorosas, e de criar sucursais em outros Estados é inerente ao exercício, no mercado único, da liberdade de estabelecimento garantida pelo Tratado .

Finalmente, o Tribunal de Justiça colocou a questão de saber se a prática nacional controvertida podia justificar-se por razões imperativas de interesse geral. As autoridades dinamarquesas tinham invocado duas: a protecção dos credores públicos extracontratuais (como a Fazenda Pública e a Segurança Social) e a protecção geral dos credores mediante a exigência de um capital social inicial mínimo. O Tribunal de Justiça referiu as condições aplicáveis a esse tipo de medidas restritivas, constante do acórdão de 30 de Novembro de 1995, Gebhard e considerou que não estavam preenchidas no caso dos autos .

34. O raciocínio do acórdão Centros é de uma agradável simplicidade: aplica, literalmente, as disposições dos artigos 43.° CE e 48.° CE. Esta postura é conforme com a interpretação tradicional das liberdades fundamentais contidas no Tratado que, uma vez decorrido o período transitório, adquirem eficácia directa e imediata. Do acórdão Centros interessa-me examinar em detalhe os seguintes dois elementos: uma omissão e uma menção.

35. A omissão significativa é a de qualquer referência ao artigo 293.° CE, tal como ao acórdão Daily Mail, que nele se baseou. Tão-pouco o advogado-geral aborda esta questão nas suas conclusões e não parece que os intervenientes o tenham feito nas suas alegações.

36. Existe uma primeira explicação óbvia: no processo Centros a questão em análise era a abertura de uma sucursal e não a transferência de qualquer sede social. Contudo, essa tese pecaria por exagerado formalismo, ignoraria que por sede pode entender-se, não só a estatutária, mas aquele lugar em que se desenrola a administração efectiva e distinguiria, sem fundamento evidente, um direito de estabelecimento primário, muito condicionado, de um direito de estabelecimento secundário ilimitado . Além disso, ao Tribunal de Justiça não pôde passar despercebido que proclamar uma liberdade tão ampla para criar sucursais (que, na verdade, pouco têm de sucursais, no sentido usual do termo, uma vez que podem concentrar a totalidade dos activos sociais) permitia defraudar a legislação em matéria de transferência transfronteiriça da sede, formal ou real, de uma sociedade que é da competência, à falta de harmonização, dos Estados-Membros . O convite das autoridades dinamarquesas para excluir das prerrogativas do direito de estabelecimento as hipóteses em que apenas se procura eludir uma determinada legislação incentivou o Tribunal de Justiça a analisar essa possível forma de elusão, neste caso da sua própria jurisprudência, em relação ao acórdão Daily Mail. Não obstante, o Tribunal de Justiça partiu da hipótese de que, para efeitos do direito comunitário, a Centros pretendia exercer a forma secundária da liberdade de estabelecimento .

37. A segunda explicação consistiria em reafirmar as diferenças entre os pressupostos de facto das respectivas causas principais. Assim, as condições do acórdão Daily Mail só valeriam em relação à capacidade do Estado de origem para restringir a liberdade de estabelecimento das sociedades constituídas em conformidade com o seu direito, ao passo que o acórdão Centros trataria dos obstáculos que poderá levantar o Estado de acolhimento. Ou então, que o primeiro teria como pano de fundo uma controvérsia de direito fiscal, ao passo que o objecto do segundo se enquadraria dentro do direito das sociedades. Essas distinções parecem-me artificiais para justificar soluções jurisprudenciais diversas. Não se apoiam, desde logo, em nenhuma declaração expressa contida nos acórdãos.

38. A terceira explicação possível seria a de considerar que o acórdão Centros supera a doutrina Daily Mail, ainda que no âmbito das consequências jurídicas práticas: a uma sociedade que pretendesse estabelecer a sua sede de administração efectiva noutro Estado-Membro bastar-lhe-ia pedir a inscrição de uma sucursal. Os postulados do acórdão Daily Mail serviriam então unicamente para evitar que o Estado de origem, à luz de cujo direito se constituiu a sociedade, possa perder algum controlo sobre a entidade jurídica, que não deixa de ser uma ficção criada por esse direito. O controlo abarcaria, por exemplo, a determinação do elemento de conexão para a sujeição a uma obrigação tributária, como no caso de Daily Mail, ou, de maneira geral, para o exercício de fiscalização administrativa.

Reconheço que esta interpretação obriga a abstrair de algumas afirmações feitas nesse acórdão em termos muito amplos, particularmente, o que consta do seu n.° 23 .

39. A meu ver, tratar-se-ia antes de completar aquela consideração: as questões relativas à definição do elemento de conexão determinante da lex societatis, tal como os problemas derivados da transferência transfronteiriça da sede de uma sociedade regiam-se e regem-se, à falta de actividade de harmonização, pelas leis dos Estados-Membros, que, não obstante, deverão respeitar o direito material de origem comunitária .

40. Desta perspectiva, o direito europeu continua a não ter directamente incidência na capacidade dos Estados-Membros de organizarem as respectivas normas de conflitos à sua maneira, para além de impor o respeito dos seus princípios.

41. A menção significativa contida no acórdão Centros é a introdução, em matéria de liberdade de estabelecimento de sociedades, dos critérios gerais para se apreciar a compatibilidade das restrições a uma liberdade fundamental com as normas do Tratado, que o Tribunal de Justiça enunciou no acórdão de 31 de Março de 1993, Kraus , e deixou esclarecidos no acórdão Gebhard, já referido.

42. A inclusão deste tipo de análise implica o reconhecimento da eficácia imediata das normas sobre o livre estabelecimento, relativamente ao movimento das sociedades, o que, por sua vez, implica o abandono ou, em todo caso, a relativização da reserva contida no artigo 293.° CE .

Esta opção é acertada do ponto de vista de uma integração europeia dinâmica e encontra apoio na formulação da disposição. Contrariamente ao que prescreve o artigo 295.° CE («o presente Tratado em nada prejudica [...]»), que ressalva da aplicação do Tratado - sem qualquer espécie de dúvidas - o regime relativo à titularidade dos meios de produção , o artigo 293.° CE só contém um convite aos Estados-Membros a que entabulem negociações e, além disso, unicamente na medida do «necessário». Portanto, o artigo 293.° CE não é equiparável a uma verdadeira reserva de legislação e assemelha-se antes a um conselho dirigido aos Estados-Membros para superarem os inevitáveis problemas que surgirem da disparidade de legislações em matéria de reconhecimento mútuo das sociedades, de manutenção da sua personalidade jurídica no caso de transferência transfronteiriça de sede e de fusão. Como tal, esse conselho não pode opor-se à virtualidade de uma das liberdades fundamentais.

43. Considero, pois, que o quadro jurisprudencial existente permite analisar a compatibilidade com o Tratado das restrições que têm por objecto ou por efeito limitar o exercício da liberdade de estabelecimento por parte das pessoas colectivas protegidas pelo artigo 48.° CE, de acordo com critérios gerais que o Tribunal de Justiça definiu, isto é, que não sejam em si mesmas discriminatórias, que se justifiquem por razões imperativas de interesse geral e que sejam adequadas e proporcionadas para alcançar o objectivo prosseguido.

Como acontece com outros regimes jurídicos, este tipo de análise - estritamente comunitário - não pode aspirar a configurar o direito nacional considerado, em particular, o direito internacional privado. Ora bem, a regulamentação nacional existente deve ser interpretada de acordo com o direito comunitário ou, assim não sendo, cumprir os critérios justificativos das restrições exigidas por razões imperiosas de interesse geral.

Análise da primeira questão prejudicial

44. Através da sua primeira questão prejudicial, de âmbito mais restrito que a segunda, o Bundesgerichtshof procura, essencialmente, saber se o direito comunitário se opõe a uma regulamentação normativa nacional que impede uma sociedade validamente constituída em conformidade com a legislação de um Estado-Membro invocar direitos de natureza contratual perante os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro, por ter neste último a sua sede de administração efectiva.

45. Esta privação de legitimidade activa explica-se, segundo o Bundesgerichtshof, porque a capacidade jurídica e a capacidade judiciária da sociedade seriam apreciadas segundo o direito do Estado-Membro em que a sociedade fixou a sua sede de administração efectiva e porque esse direito, ao não conhecer o tipo social estrangeiro, estaria obrigado a recusar-lhe o reconhecimento. À sociedade afectada restar-lhe-ia unicamente a possibilidade de se dissolver e voltar a constituir-se à luz do direito do Estado de acolhimento.

46. Em meu entender, não obstante, é preferível tratar apenas da expressão mais objectiva do problema apresentado, para evitar uma declaração sobre uma matéria cuja interpretação cabe ao direito nacional: a lei alemã nega legitimidade processual às sociedades estrangeiras cuja sede real se localize, em conformidade com esse direito, no seu território.

Com efeito, por um lado, não creio que as normas alemãs se possam enquadrar facilmente numa eventual interpretação autónoma comunitária das noções de capacidade jurídica ou de capacidade judiciária, já que, em vez de negar a legitimidade activa às sociedades cuja verdadeira sede não se encontre no Estado de constituição, aceitam - segundo as explicações da Überseering perante este Tribunal de Justiça - a sua legitimidade passiva para os mesmos casos . Além disso, o próprio tribunal a quo, que define a capacidade jurídica como a susceptibilidade de ser sujeito de direitos e obrigações, admite que a Überseering seja titular de um imóvel . Produzir-se-ia, assim, uma desarticulação conceitual estranha à configuração clássica da capacidade jurídica, e que parece antes corresponder a um mecanismo dissuasor ou de sanção.

Por fim, podem dar-se interpretações divergentes em relação à ordenação precisa do facto que lhe dá origem, isto é, a transferência da sede de administração social , ou aos critérios para apreciar a realidade dessa transferência.

Por outro lado, também não é inconcebível que a utilização da teoria da sede efectiva possa não produzir irremediavelmente as dramáticas consequências que lhe atribui o direito alemão .

Por estas razões, parece mais prudente evitar qualquer qualificação jurídica do direito interno e considerar a legislação nacional em causa como uma hipótese de restrição da capacidade judiciária de uma sociedade que pretende evitar certa actividade social principal num Estado distinto daquele em que foi constituída.

47. Essa restrição é, em princípio, incompatível com a liberdade de estabelecimento proclamada pelo Tratado, sem que do disposto no artigo 293.° CE possa deduzir-se o contrário, segundo o exposto anteriormente.

48. Há, portanto, que averiguar se a restrição cumpre as demais condições enunciadas pela jurisprudência.

49. Ao contrário do que alegaram vários intervenientes, a medida não é discriminatória em si mesma. Uma sociedade constituída segundo o direito alemão, que tivesse transferido para outro Estado-Membro a sua sede de administração, teria sido objecto de tratamento similar. Em todo o caso, essa transferência teria afectado a capacidade jurídica, entendida no sentido do direito alemão .

50. Depreende-se da decisão de reenvio que a teoria da sede, tal como é aplicada na Alemanha, serve para proteger os direitos dos credores (através da necessidade de um capital social mínimo subscrito e com normas relativas às modalidades da sua disposição), das sociedades dependentes e dos accionistas minoritários (reforçando a tomada em consideração dos seus interesses ao exigir maiorias qualificadas, ou prevendo uma indemnização ou compensação em determinadas circunstâncias) e dos trabalhadores (através da imposição da co-gestão empresarial nas condições fixadas na lei). O Governo alemão acrescenta a protecção dos interesses do fisco (por meio da redução dos casos de dupla tributação).

Esses motivos devem considerar-se razões imperativas de interesse geral para efeitos da jurisprudência do Tribunal de Justiça .

51. Resta por averiguar se a medida deve ser considerada adequada e proporcionada aos objectivos que prossegue.

52. Aqui, a resposta deve ser negativa. O expediente consistente em recusar legitimidade activa a uma sociedade validamente constituída noutro Estado-Membro não é adequado para alcançar os objectivos legítimos que pretende prosseguir e, desde logo, vai mais além do que a prossecução desses objectivos exige.

53. O Tribunal de Justiça já teve ocasião de relativizar a protecção que, para os credores de uma sociedade, pode resultar da exigência de um capital mínimo subscrito . De resto, não se analisou se, em concreto, a Überseering oferecia menores garantias para os credores. Por fim, é manifesto que a recusa de legitimidade activa, que a impede de invocar em juízo direitos válidos face a terceiros, mais que em benefício dos credores sociais, parece operar em benefício dos seus devedores.

54. Nenhum dos outros três interesses supostamente protegidos pela medida em questão foi explicitado de forma suficiente para justificar ser tomado em consideração.

Não se precisaram os direitos dos sócios minoritários alegadamente objecto de protecção, nem consta sequer que a Überseering tenha tais participações ou que o direito pelo qual se rege não lhes proporcione um nível equivalente de protecção. Além disso, em relação aos credores, também a recusa de legitimidade activa da sociedade não se traduz num benefício dos sócios minoritários.

Do debate que teve lugar neste Tribunal deduz-se que a co-gestão é aplicável a empresas com mais de dois mil trabalhadores e nada indicia, antes pelo contrário, que a transferência do centro de direcção da demandante no processo principal tenha afectado um número tão importante de assalariados.

O Governo da República Federal não esclareceu que disposições fiscais seriam defraudadas pelo exercício, por parte da Überseering, dos seus direitos nos órgãos jurisdicionais alemães .

55. Por pouco adequada que se considere a medida para se atingir os fins declarados, a sua incompatibilidade com o Tratado verifica-se, com particular clareza, quando se analisa o carácter proporcionado da recusa da legitimidade processual activa.

O Governo alemão, na audiência, insistiu sobre um ponto a que se tinha referido marginalmente nas suas observações escritas: a possibilidade de uma sociedade na situação da Überseering continuar a fazer valer os seus direitos em juízo, apresentando-se como entidade desprovida de personalidade jurídica. A sua exposição, já de si pouco clara, foi contestada pelos advogados das partes do processo principal, que ofereceram, cada um, uma explicação diferente deste mecanismo e das suas consequências jurídicas.

Nestas condições, o Tribunal de Justiça não dispõe de elementos suficientes para apreciar se a Überseering, ou qualquer outra sociedade nas mesmas circunstâncias, pode manter uma pretensão em juízo e em que condições. O que, de facto, parece pacífico é que uma sociedade, na hipótese dos autos, não poderia comparecer em juízo conservando a sua personalidade jurídica separada.

Há, portanto, que tratar apenas dos termos da questão prejudicial, tal como foi apresentada pelo órgão jurisdicional supremo em matéria cível da Alemanha, da qual se deduz que a sanção prevista pelo ordenamento daquele país consiste em que a sociedade afectada «não pode invocar nos tribunais [...] direitos resultantes de um contrato» .

56. Uma medida com estas características implica, na prática, um imenso obstáculo à liberdade de estabelecimento das sociedades.

57. A medida supõe um verdadeiro despojo do acervo jurídico de uma sociedade validamente criada em conformidade com a legislação de um Estado-Membro. Constitui, em todo o caso, uma grave ingerência no direito fundamental à protecção judicial consagrada no artigo 6.° , n.° 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (a seguir «Convenção»). Interpretando esta disposição já no acórdão de 21 de Fevereiro de 1975, Golder c. Reino Unido , o Tribunal Europeu dos Direito do Homem tinha proclamado que o acesso à justiça em matéria cível é corolário do primado do direito, princípio que, por sua vez, faz parte do património espiritual comum dos países europeus . Certo é que, por sua própria natureza e como acontece com tantos outros direitos fundamentais, a tutela judicial efectiva não reveste um carácter absoluto . No acórdão de 28 de Maio de 1985, Ashingdane c. Reino Unido , os juízes de Estrasburgo consideraram, não obstante, que as restrições não podem afectar a própria essência do direito, devem justificar-se em relação com a prossecução de um fim legítimo e encontrar-se numa relação razoável de proporcionalidade relativamente a esses fins .

Assim, as instituições de Estrasburgo admitiram a compatibilidade com a Convenção de medidas que sujeitavam as acções judiciais a um determinado prazo de propositura , ou a um exame sumário das suas probabilidades de ter sucesso , ou que exijam a constituição de uma cautio judicatum solvi . Em nenhum destes casos se viola a essência do princípio, antes se ajusta o seu exercício a modalidades razoáveis. Também se admitiu que a legislação nacional pode aplicar medidas restritivas intuitu personae. Trata-se de hipóteses clássicas nas quais a lei tolera o exercício limitado da capacidade jurídica ou judiciária, como acontece com os menores , os litigantes de má fé , os presos ou os falidos . Nenhuma destas categorias se assemelha à causa dos autos. Note-se, além disso, que, mesmo nessas hipóteses, só se tinha limitado - nunca suprimido - o direito de recorrer a tribunal sujeitando-o, regra geral, à obtenção de uma autorização prévia de um representante do interesse público.

58. Em relação a empresas comerciais, cujo património principal se compõe de pretensões face a terceiros, a privação da legitimidade activa pode igualmente ser constitutiva de uma séria restrição do direito ao livre gozo da propriedade privada, protegido pelo artigo 1.° do Protocolo n.° 1 da Convenção bem como uma recusa de recurso efectivo, em contradição com o previsto no artigo 13.° da Convenção.

59. A mesma ideia se impõe à luz dos artigos 47.° (direito à tutela judicial efectiva e a um juiz imparcial) e 17.° (direito à propriedade) da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em Nice em 7 de Dezembro de 2000, que, sem constituir ius cogens propriamente dito, por não ter «valor vinculativo autónomo» , proporciona uma fonte preciosíssima do denominador comum dos valores jurídicos primordiais nos Estados-Membros, donde emanam, por sua vez, os princípios gerais do direito comunitário.

60. Por último, o Tribunal de Justiça tem reconhecido o carácter capital do direito à tutela judicial no âmbito comunitário .

61. Em consequência pode afirmar-se que a recusa de legitimidade processual activa a uma pessoa colectiva validamente constituída em conformidade com a lei de um dos Estados-Membros constitui uma grave restrição de um direito fundamental. O teste de proporcionalidade exige, para ser ultrapassado, que do outro prato da balança penda um interesse público de imperiosíssima protecção. Pois bem, basta verificar que não são avançados elementos susceptíveis de revelar uma necessidade social desse calibre. Como demonstrei ao realizar o exame de adequação, a lei alemã não prevê, frente a tão grave sanção, qualquer apreciação concreta do risco. Os bens jurídicos que a medida pretende proteger, ou, melhor dizendo, o risco a que podem ficar expostos esses interesses pelo facto de uma sociedade não ter a sua sede de administração central no Estado em que foi constituída, não resistem ao confronto com a magnitude da sanção imposta.

62. Nestas circunstâncias, há que declarar que os artigos 43.° CE e 48.° CE se opõem a uma medida nacional que consista em recusar legitimidade processual activa a uma sociedade, por a sua sede de administração central estar localizada num Estado-Membro distinto daquele em que foi constituída.

Análise da segunda questão prejudicial

63. A segunda questão, formulada pelo Bundesgerichtshof para o caso de a primeira merecer resposta afirmativa, tal como proponho, tem um alcance mais amplo pelo seu carácter abstracto. Trata-se de averiguar se os princípios que regem a liberdade de estabelecimento exigem que a capacidade jurídica e a capacidade judiciária das sociedades sejam apreciadas sempre em conformidade com o direito do Estado da sua constituição.

64. A utilidade adicional que possa ter uma resposta a esta segunda questão prejudicial, na altura de resolver o problema de interpretação do direito comunitário que se apresenta ao órgão jurisdicional a quo, não tem evidência imediata. Se, como sugiro, o Tribunal de Justiça considerar que a sanção consistente na privação da legitimidade activa não é nem adequada, nem proporcionada, aos fins prosseguidos e, portanto, não se justifica por razões imperativas de interesse geral, é indiferente seja qual for o percurso exacto que, na aplicação das diversas normas de conflitos do direito alemão, o juiz nacional seguiu para, dando cumprimento ao seu direito interno, reconhecer a procedência da sanção.

65. Não cabe ao juiz comunitário entrar em investigações próprias do direito nacional. Insisto em que o problema que se deve considerar, do ponto de vista do direito comunitário, é o da justificação de uma medida restritiva de uma liberdade fundamental, à luz das alegadas razões imperativas de interesse geral.

66. Dadas as premissas utilizadas para responder à primeira questão prejudicial, não é necessário, em minha opinião, responder à segunda.

Quer isto dizer que a mesma solução se imporia se a privação de legitimidade processual não fosse consequência da falta de reconhecimento da capacidade jurídica, mas o resultado da aplicação de uma norma imperativa.

67. Esta posição parece-me tanto mais aconselhada quanto permite evitar declarações arriscadas, sem qualquer desprezo pela cooperação que se deve esperar do juiz comunitário na resolução do problema apresentado.

68. Por um lado, responder a esta segunda questão supõe integrar numa teoria autónoma comunitária as particularidades do direito alemão, na medida em que se aceite - o que é, pelo menos, questionável - que a recusa de legitimidade activa se extraia integralmente da falta de reconhecimento da capacidade jurídica e da capacidade judiciária. Creio que seria possível, pelo contrário, subsumir esta recusa às prerrogativas de que a lei dispõe para punir condutas desviantes com o fim de proteger bens jurídicos.

69. Por outro lado, porquanto o Estado-Membro de constituição é também aquele em que a sociedade possui a sua sede estatutária, estar-se-ia a forçar o Tribunal de Justiça a optar por um dos elementos de conexão que, à falta de qualquer avanço legislativo, devem considerar-se igualmente válidos de acordo com o artigo 48.° CE, isto é, o da sede social da entidade considerada, o da sua administração central ou o do seu estabelecimento principal. Se o Tratado não deu preferência a nenhum, não cabe ao julgador fazê-lo . À falta de harmonização, os Estados-Membros continuam a ser livres de adoptar - e os órgãos jurisdicionais nacionais de interpretar - as suas normas de direito internacional privado na matéria, que devem, contudo, quanto aos seus efeitos práticos, respeitar as exigências do direito comunitário.

70. A título subsidiário, para o caso de o Tribunal de Justiça considerar útil dar uma resposta a esta segunda questão prejudicial, ou por entender que facilitaria a adopção de uma solução pelo Tribunal a quo, ou por considerar adequado sublinhar um princípio, proponho que, pelas razões contidas no ponto anterior, lhe seja dada resposta negativa.

Conclusão

71. Por tudo o anteriormente exposto, sugiro ao Tribunal de Justiça que responda à questão prejudicial formulada pelo Bundesgerichtshof da seguinte forma:

«Os artigos 43.° CE e 48.° CE opõem-se a uma regulamentação normativa nacional que conduz à recusa da legitimidade processual activa a uma sociedade validamente constituída à luz do direito de um Estado-Membro cuja sede de administração efectiva foi transferida para outro Estado-Membro.»