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CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

M. POIARES MADURO

apresentadas em 10 de Outubro de 2007 1(1)

Processo C-281/06

Hans-Dieter Jundt

Hedwig Jundt

contra

Finanzamt Offenburg

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Bundesfinanzhof (Alemanha)]





1.     Com o presente pedido de decisão prejudicial, o Bundesfinanzhof (Supremo Tribunal Fiscal Federal) questiona o Tribunal de Justiça, essencialmente, acerca do âmbito de aplicação do artigo 49.° CE, que garante a liberdade de prestação de serviços, e das justificações que os Estados-Membros podem invocar nos casos em que, em consequência das suas normas relativas ao imposto sobre o rendimento, é restringido o direito de os indivíduos exercerem esta liberdade.

I –    Tramitação no tribunal nacional e questões prejudiciais

2.     Os factos deste processo são simples. O recorrente no processo principal (a seguir «H. Jundt»), um nacional alemão, é advogado e vive e trabalha na Alemanha. Para efeitos de aplicação do imposto sobre o rendimento, é tributado conjuntamente com a sua mulher, razão pela qual esta é igualmente parte no processo. Em 1991, H. Jundt leccionou 16 horas na Universidade de Estrasburgo, pelo que recebeu 5 760 FRF; após dedução das contribuições para a segurança social francesa, recebeu um montante líquido de 4 814,79 FRF.

3.     Quando o Finanzamt (Serviço de Finanças alemão) aplicou o imposto sobre o rendimento ao pagamento ilíquido, H. Jundt reclamou alegando que devia ser aplicado o § 3, n.° 26, da Einkommensteuergesetz (lei do imposto sobre o rendimento, a seguir «§ 3, n.° 26, da EStG»). Esta disposição isenta do imposto os rendimentos até 2 400 DEM (1 848 EUR) recebidos a título de «compensação pelas despesas» relativa ao exercício de actividades profissionais a tempo parcial de formador, monitor e educador ou de uma actividade profissional a tempo parcial análoga, de actividades profissionais a tempo parcial artísticas ou de assistência a pessoas idosas, doentes e deficientes, ao serviço ou por conta de uma pessoa colectiva de direito público nacional ou de uma entidade que prossiga fins não lucrativos, caritativos ou religiosos.

4.     A reclamação foi indeferida e H. Jundt interpôs recurso para o Finanzgericht (Tribunal Fiscal), que decidiu a favor do Finanzamt. O Bundesfinanzhof admitiu o recurso limitado a questões de direito. O principal fundamento do recurso consiste no facto de a recusa de as autoridades fiscais lhe concederem a isenção ser incompatível com o direito comunitário, por ser discriminatória relativamente a actividades desenvolvidas a favor de entidades de direito público noutros Estados-Membros.

5.     O Bundesfinanzhof suspendeu a instância e submeteu três questões ao Tribunal de Justiça:

«1.      O artigo 59.° do Tratado CE (actual artigo 49.° CE) deve ser interpretado no sentido de que o seu âmbito de protecção também abrange uma actividade profissional secundária de docente ao serviço ou por conta de uma pessoa colectiva de direito público (Universidade) quando essa actividade, exercida em regime de quase voluntariado, tenha apenas como contrapartida a compensação pelas despesas efectuadas por força dessa actividade?

2.      Em caso de resposta afirmativa à primeira questão: a restrição à liberdade de prestação de serviços, que consiste em apenas conceder benefícios fiscais às compensações pelas despesas efectuadas por pessoas colectivas de direito público nacionais (no presente caso, prevista no § 3, n.° 26, da Einkommensteuergesetz), é justificada pelo facto de o benefício fiscal nacional só ser legítimo quando esteja em causa uma actividade a favor de uma pessoa colectiva de direito público nacional?

3.      Em caso de resposta negativa à segunda questão: o artigo 126.° do Tratado CE (actual artigo 149.° CE) deve ser interpretado no sentido de que uma regulamentação fiscal que contribui a título complementar para a organização do sistema educativo (como, no presente caso, o § 3, n.° 26, da Einkommensteuergesetz) é admissível, tendo em conta a responsabilidade que os Estados-Membros continuam a ter nesta matéria?»

II – Primeira questão: âmbito de aplicação do artigo 49.° CE

6.     É facto assente entre as partes que o regime nacional em questão restringe a liberdade de H. Jundt, tal como garantida pelo artigo 49.° do Tratado, de prestar os seus serviços noutro Estado-Membro, na medida em que o priva de um benefício fiscal de que gozaria se tivesse prestado o mesmo serviço a destinatários no seu próprio país. Claramente, se H. Jundt tivesse recebido o mesmo montante por actividades de docência a tempo parcial numa Universidade pública alemã, o § 3, n.° 26, da EStG teria sido aplicado e ter-lhe-ia sido concedida a isenção fiscal.

7.     O Bundesfinanzhof tem dúvidas sobre se a actividade de H. Jundt é abrangida pelo âmbito do artigo 49.° CE, porquanto o § 3, n.° 26, da EStG se refere à «compensação pelas despesas». Segundo o artigo 50.° do Tratado, «para efeitos do disposto no presente Tratado, consideram-se ‘serviços’ as prestações realizadas normalmente mediante remuneração […]». Por conseguinte, para que uma actividade possa ser qualificada de «serviço» e beneficiar da protecção do artigo 49.° CE, o particular envolvido na prestação desse serviço tem de receber uma remuneração. Se o prestador do serviço só receber uma compensação para cobrir as despesas associadas às suas actividades, mas não realizar lucro, o Bundesfinanzhof pergunta se ainda estamos perante o conceito de «serviços» na acepção do Tratado. Ora, posta a questão noutros termos, uma «compensação pelas despesas» constitui uma «remuneração», integrando assim a actividade respectiva no âmbito de aplicação dos artigos 49.° e 50.°?

8.     Em primeiro lugar, o Tribunal de Justiça adoptou uma visão ampla do que constitui «remuneração» para efeitos do Tratado, centrando a sua atenção na natureza económica da actividade em causa. No acórdão Bond van Adverteerders (2), que dizia respeito à transmissão transfronteiriça de programas de rádio e de televisão, o Tribunal de Justiça entendeu que o facto de as entidades emissoras, no Estado de onde é feita a emissão, não pagarem aos operadores das redes de cabo no Estado de recepção para transmitirem os seus programas não significava que o serviço fosse desprovido de «remuneração», uma vez que este era pago pelos seus assinantes e o artigo 60.° do Tratado (actual artigo 50.° CE) não exige que o serviço seja pago por aqueles a quem é prestado.

9.     No acórdão Steymann (3), o recorrente executava diversos serviços manuais, tais como trabalhos de canalizador e tarefas domésticas para a comunidade religiosa de que era membro, a qual, em contrapartida, provia às suas necessidades materiais. O Tribunal de Justiça declarou que este trabalho, que era parte essencial da participação naquela comunidade, podia constituir uma «actividade económica» e que os serviços que ele recebia da comunidade podiam constituir uma «contrapartida indirecta» do seu trabalho. Este acórdão torna claro que a remuneração não tem de assumir a forma de uma prestação pecuniária, podendo ser feita em espécie e ter apenas uma ligação indirecta com o serviço prestado.

10.   Mais recentemente, o conceito de remuneração foi debatido pelo Tribunal de Justiça no acórdão Geraets-Smits and Peerbooms (4), em relação à prestação de serviços médicos. Vários Estados-Membros alegaram que não há remuneração quando um paciente recebe tratamento médico num hospital sem o pagar directamente, ou quando é reembolsado por um sistema de seguro de saúde. O Tribunal de Justiça, no entanto, rejeitou esta opinião e considerou que o facto de o tratamento ser pago directamente pelo segurador e a uma taxa fixa não significa que o mesmo não esteja abrangido pelo direito comunitário. Ao esclarecer o correcto entendimento do conceito de remuneração, o Tribunal de Justiça reiterou o princípio de que «a característica essencial da remuneração reside no facto de esta constituir a contrapartida económica da prestação em causa» e concluiu que «os pagamentos efectuados pelas caixas de seguro de doença […], ainda que forfetários, constituem efectivamente a contrapartida económica das prestações hospitalares e possuem, indubitavelmente, carácter remuneratório relativamente ao estabelecimento hospitalar que dela beneficia e que está comprometido numa actividade de tipo económico» (o sublinhado é meu) (5).

11.   Além disso, não há nada – nem no Tratado nem na jurisprudência do Tribunal de Justiça – que implique que seja necessário obter lucros para que um particular possa beneficiar da liberdade de prestação de serviços garantida no Tratado. A Comissão observa acertadamente nas suas observações que «remuneração» e «lucro» são dois conceitos diferentes e que o artigo 50.° CE apenas se refere ao primeiro como indício da existência de uma actividade económica. Com efeito, alguns Estados-Membros alegaram no processo Geraets-Smits e Peerbooms que um serviço só pode ser abrangido pelo âmbito de aplicação do artigo 50.° CE se a pessoa que o prestar pretender obter um lucro, mas este argumento foi rejeitado pelo Tribunal de Justiça. Como afirmado pelo advogado-geral F. G. Jacobs, «uma actividade não deixa, necessariamente, de ser económica simplesmente porque não tem fins lucrativos» (6). A inexistência de fim lucrativo, por si só, não exclui uma actividade do âmbito de aplicação do artigo 50.° CE.

12.   O factor decisivo para que uma actividade seja abrangida pelo âmbito de aplicação das disposições do Tratado sobre a livre prestação de serviços é o seu carácter económico: a actividade não pode ser prestada sem contrapartida, mas não é necessário que o prestador vise a obtenção de lucro.

13.   Finalmente, a Comissão alega que, no caso em apreço, os pagamentos feitos pela Universidade de Estrasburgo a H. Jundt não se limitaram às suas despesas reais. Esta é uma questão de facto que deve ser decidida pelo tribunal nacional. De qualquer modo, dada a anterior discussão do conceito de «remuneração», não é necessário analisar esta questão separadamente.

14.   Proponho que o Tribunal responda da seguinte forma à primeira questão: «O artigo 49.° CE abrange as actividades a tempo parcial de docência, prestadas a favor de uma entidade pública, pelas quais o docente receba uma compensação pelas despesas.»

III – Segunda questão: justificações da restrição da livre prestação de serviços

15.   Os Estados-Membros podem adoptar medidas restritivas da livre prestação de serviços se tais medidas forem justificadas por razões de interesse público e forem proporcionadas ao objectivo legítimo prosseguido (7). O Bundesfinanzhof pergunta se o facto de a isenção fiscal em apreço se aplicar apenas quando as prestações são realizadas a favor de entidades públicas nacionais constitui uma dessas razões. O centro da sua análise é a necessidade de preservar a coerência do sistema fiscal. Além disso, o Governo alemão alega que a legislação fiscal nacional em causa pode ser justificada como uma medida que visa promover a educação, a investigação e o desenvolvimento nas Universidades públicas alemãs.

A –    Promoção da educação, investigação e desenvolvimento

16.   A essência do argumento avançado pelo Governo alemão é que o objectivo do § 3, n.° 26, da EStG é promover a educação e a investigação, o que, segundo o Tribunal de Justiça, pode constituir uma razão imperiosa de interesse geral (8). Essa disposição permite às Universidades públicas atrair docentes que aceitem ensinar a tempo parcial auferindo honorários modestos que ficam isentos de imposto sobre o rendimento. Assim, funciona como um incentivo para que pessoas qualificadas desenvolvam actividades, como a docência universitária e a investigação, que são benéficas para o interesse geral, recebendo em contrapartida honorários que cobrem as suas despesas profissionais. Desta forma, as Universidades podem desenvolver as suas funções sem terem de competir entre si por docentes qualificados, usando os seus recursos limitados para lhes oferecerem incentivos financeiros. A Alemanha, segundo o mesmo argumento, tem o direito de usar o seu sistema fiscal para apoiar as suas próprias Universidades nacionais, mas não tem a obrigação de proporcionar o mesmo apoio a Universidades de outros Estados-Membros, isentando de imposto sobre o rendimento as importâncias pagas a docentes tributados na Alemanha. Trata-se de uma consequência do facto de que tanto a tributação directa como a organização do sistema de ensino são domínios que ainda são primacialmente regulados pelo direito nacional e relativamente aos quais os Estados-Membros detêm uma ampla margem de discricionariedade na aprovação das disposições nacionais respectivas.

17.   Este argumento deve ser rejeitado. Embora os Estados-Membros possam adoptar políticas e medidas de promoção da educação e da investigação nas suas instituições académicas, devem fazê-lo de forma que seja compatível com o direito comunitário. O artigo 149.°, n.° 1, CE estabelece que «[a] Comunidade contribuirá para o desenvolvimento de uma educação de qualidade, incentivando a cooperação entre Estados-Membros e, se necessário, apoiando e completando a sua acção […]», e o artigo 149.°, n.° 2, CE estabelece que «[a] acção da Comunidade tem por objectivo […] incentivar a mobilidade dos estudantes e dos professores». A legislação nacional em causa é claramente contrária a estes objectivos e desincentiva os professores de exercerem a sua liberdade fundamental de oferecerem os seus serviços num Estado-Membro diferente do seu, ao negar-lhes um benefício fiscal de que usufruiriam se tivessem permanecido no seu próprio país. Obviamente, quando um docente tributado na Alemanha é confrontado com a opção de ficar na Alemanha e receber honorários isentos, ou ir para França e pagar impostos sobre os mesmos honorários, o/a docente tenderá a ficar na Alemanha. No acórdão Comissão/Áustria (9), num processo relativo à mobilidade dos estudantes e ao acesso ao ensino superior, o Tribunal de Justiça expressou a sua desaprovação deste tipo de medida nacional, nos seguintes termos: «os direitos conferidos pelo Tratado em matéria de livre circulação não produzem a plenitude dos seus efeitos se uma pessoa for penalizada pelo simples facto de os exercer. Esta consideração é particularmente importante no domínio da educação, tendo em conta os objectivos prosseguidos pelo artigo 3.°, n.° 1, alínea q), CE e pelo artigo 149.°, n.° 2, segundo travessão, CE, isto é, incentivar a mobilidade dos estudantes e dos professores» (n.° 44). No presente caso, a disposição da lei nacional em causa só poderia ser justificada por razões imperativas que tornassem essa medida concreta indispensável para a promoção da educação e da investigação em Universidades alemãs. Contudo, verifica-se que é possível atingir esse objectivo, usando meios alternativos que não distorcem artificialmente a escolha, pelos professores, do lugar onde oferecem os seus serviços, e o Governo alemão não apresentou argumentos para demonstrar que, se a medida fiscal em questão não for permitida, o objectivo legítimo prosseguido não poderá ser atingido.

18.   O Tribunal de Justiça teve recentemente a oportunidade de discutir o efeito desta justificação relativamente a instituições de investigação, no acórdão Laboratoires Fournier (10). A lei nacional em causa atribuía um crédito de imposto a empresas industriais e comerciais para despesas de investigação, desde que a investigação fosse realizada em França. Uma das justificações avançadas pelo Governo francês era a necessidade de promover a investigação e o desenvolvimento. O Tribunal de Justiça, embora reconhecendo que esta pode ser uma razão de interesse público legítima, considerou que a mesma não podia justificar a medida em questão, por ser incompatível com os objectivos da política comunitária consagrados no artigo 163.° CE, que, como o artigo 149.° CE, relativo à educação, acentua a necessidade de cooperação entre Estados-Membros com vista a explorar plenamente as potencialidades do mercado interno (11). O Governo alemão alegou que o presente caso deve ser distinguido daquele que deu origem ao acórdão Laboratoires Fournier porque, neste último, o direito nacional afectava as decisões de investimento das empresas, ao passo que aqui o efeito do § 3, n.° 26, da EStG é dar uma vantagem objectiva às Universidades alemãs, sem com isso de modo algum afectar o funcionamento das Universidades estrangeiras que pretendam contratar docentes alemães. Na minha perspectiva, este argumento reflecte uma incompreensão do que está em causa no presente processo. Como já expliquei, o problema da disposição do direito nacional em causa é que ela prossegue um objectivo que é em princípio legítimo, distorcendo embora as opções dos docentes de uma forma que não pode ser conciliada com o Tratado. Ao exercer uma influência similar à da legislação nacional em causa no processo Laboratoires Fournier, o § 3, n.° 26, da EStG afecta as decisões dos docentes sobre a escolha do local na Comunidade Europeia onde pretendem prestar os seus serviços.

19.   Finalmente, deve observar-se que o Governo alemão tem razão ao afirmar que nenhum Estado-Membro tem a obrigação de subsidiar as Universidades ou quaisquer outras instituições de ensino dos outros Estados-Membros. Contudo, isto não é uma razão válida para interferir no exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado. Uma coisa é um Estado-Membro não ter obrigação de subsidiar determinadas actividades noutro Estado-Membro; outra completamente diferente é recusar determinados benefícios financeiros aos seus próprios nacionais ou a nacionais de outros Estados-Membros, apenas pelo facto de eles terem exercido o seu direito de livre circulação. Num projecto como a União Europeia, e, sobretudo, como consequência do exercício de direitos decorrentes de disposições do Tratado relativas à livre circulação, é inevitável que alguns recursos dos Estados-Membros também beneficiem pessoas ou instituições de outros Estados-Membros. Como o Tribunal de Justiça explicou no acórdão Grzelczyk, deve haver «uma determinada solidariedade financeira dos nacionais desse Estado-Membro com os dos outros Estados-Membros […]» (12). A ideia subjacente a esta análise é a de que, embora os governos nacionais mantenham competência exclusiva para regulamentar sectores como a segurança social ou a política educativa, não podem restringir o exercício dos direitos garantidos pelo Tratado para assegurar que os fundos e recursos respectivos beneficiem apenas os seus próprios nacionais (13).

B –    Coerência do sistema fiscal

20.   No acórdão Bachmann (14), o Tribunal de Justiça analisou a compatibilidade com as disposições relativas à livre circulação de trabalhadores de uma lei nacional que permitia deduzir os seguros de reforma e de vida do rendimento colectável, se tivessem sido pagos na Bélgica, mas não se tivessem sido pagos noutro Estado-Membro. O Tribunal de Justiça decidiu que essa disposição podia ser justificada pela necessidade de garantir a coerência do sistema fiscal, uma vez que existia um nexo directo entre a dedutibilidade das contribuições e a sujeição a imposto dos montantes a pagar pelas seguradoras, visto que a perda de receitas resultante da dedução das contribuições para os seguros ao rendimento colectável era compensada pela tributação das pensões, anuidades ou capitais pagos pelas seguradoras.

21.   Casos posteriores tornaram claro que o requisito da existência de um nexo directo entre o crédito de imposto em causa e a sua compensação por uma tributação específica é uma condição bastante onerosa que não pode ser facilmente satisfeita. Os Estados-Membros invocaram, em diversas ocasiões, a necessidade de preservar a coerência fiscal, mas o Tribunal de Justiça rejeitou este argumento ao constatar que esse nexo não existia (15). Mesmo nos muito poucos casos em que o Tribunal de Justiça declarou que, em princípio, podia haver um nexo, rejeitou a alegada justificação por os governos em causa não terem demonstrado que essa medida nacional era necessária (16).

22.   No pedido de decisão prejudicial objecto do presente processo, o Bundesfinanzhof refere que o objectivo do § 3, n.° 26, da EStG é libertar o Estado alemão de determinadas responsabilidades, através de uma medida fiscal: por um lado, os docentes beneficiam de uma isenção fiscal se ensinarem em Universidades públicas; por outro, o Estado alemão usufrui de um benefício correspondente porque pode prover às necessidades de docência e de investigação dessas Universidades a um custo moderado. Assim, conclui o tribunal de reenvio, existe um nexo directo entre a isenção fiscal e a actividade docente a favor de uma instituição do Estado.

23.   Contudo, não vejo como é que pode ser este o caso à luz da jurisprudência posterior ao acórdão Bachmann. Ao analisar a legislação nacional que interferia com o exercício de liberdades fundamentais, o Tribunal de Justiça tem reiteradamente considerado que deve haver um nexo claro e inequívoco entre o benefício fiscal e uma tributação específica que o compensa. No presente caso, é sugerido que a isenção do imposto sobre o rendimento é compensada pelo benefício obtido pelo Estado alemão com a actividade de docência e de investigação de docentes a tempo parcial. Contudo, um nexo tão genérico, vago e remoto entre o benefício do particular e a vantagem para o Estado está muito aquém da doutrina estabelecida no acórdão Bachmann (17).

24.   Em conformidade, penso que o § 3, n.° 26, da EStG não pode ser justificado pela necessidade de assegurar a coerência do sistema fiscal.

25.   Proponho, assim, que o Tribunal responda da seguinte forma à segunda questão: «O facto de o benefício fiscal estatal se aplicar apenas quando a actividade é exercida em benefício de uma pessoa colectiva de direito público nacional não pode justificar a restrição à livre prestação de serviços.»

IV – Terceira questão: organização do sistema educativo

26.   O artigo 149.°, n.° 1, CE estabelece: «[ a] Comunidade contribuirá para o desenvolvimento de uma educação de qualidade, incentivando a cooperação entre Estados-Membros e, se necessário, apoiando e completando a sua acção, respeitando integralmente a responsabilidade dos Estados-Membros pelo conteúdo do ensino e pela organização do sistema educativo, bem como a sua diversidade cultural e linguística». O Bundesfinanzhof pergunta se o § 3, n.° 26, da EStG pode ser validado enquanto expressão da competência dos Estados-Membros para decidir sobre a organização dos seus sistemas de ensino. O Bundesfinanzhof considera que esta competência inclui a faculdade de limitar a concessão de um benefício fiscal a actividades desenvolvidas em ou a favor de Universidades públicas nacionais. Segundo o Bundesfinanzhof, o objectivo do § 3, n.° 26, da EStG não é restringir a liberdade de prestar serviços mas incentivar as pessoas a contribuir a título gratuito para o ensino prestado por instituições públicas.

27.   Há apenas duas observações a acrescentar a esta questão. Em primeiro lugar, como acertadamente alega a Comissão, o § 3, n.° 26, da EStG não é uma medida relativa aos conteúdos do ensino ou à organização do sistema educativo. É antes uma medida fiscal de carácter geral que prevê uma isenção fiscal sempre que uma pessoa desenvolva actividades em benefício do interesse público. Sem dúvida, o ensino e a investigação, cujos beneficiários são instituições públicas de ensino, são claramente abrangidos pelo seu âmbito; porém, o mesmo é válido para muitas outras actividades (desde a participação em projectos artísticos à assistência a idosos) e instituições (desde obras de caridade até organizações religiosas). Esta disposição não é, evidentemente, a expressão da competência dos Estados-Membros para organizarem o seu sistema de ensino; se assim fosse, todas as leis nacionais que pudessem ter alguma relação com a educação ficariam abrangidas pelo artigo 149.° CE.

28.   Em segundo lugar, é consabido que sempre que um Estado-Membro regula uma matéria da sua competência exclusiva, deve fazê-lo de forma compatível com as regras do Tratado e, especialmente, com as liberdades fundamentais (18). O Tribunal de Justiça teve, recentemente, a oportunidade de reiterar este princípio relativamente à organização do sistema de ensino, no acórdão Comissão/Áustria (19). Já expliquei, na minha análise da segunda questão, que a disposição em causa da lei nacional levanta obstáculos artificiais às opções dos docentes relativamente ao lugar onde pretendem prestar os seus serviços. Por conseguinte, mesmo que essa disposição fosse uma medida relacionada com a organização do sistema de ensino, seria sempre incompatível com o Tratado.

29.   Proponho, assim, que o Tribunal responda da seguinte forma à terceira questão: «O artigo 149.° CE, que estabelece que os Estados-Membros mantêm a responsabilidade pela organização dos seus sistemas de ensino, não pode ser interpretado no sentido de que o § 3, n.° 26, da EStG não está abrangido pelo âmbito de aplicação das disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços, ou no sentido de que é legal a recusa de conceder a isenção fiscal em causa aos docentes que ensinam em Universidades noutros Estados-Membros.»

V –    Conclusão

30.   Por estas razões, proponho ao Tribunal de Justiça que responda da seguinte forma às questões submetidas pelo Bundesfinanzhof:

«1)      O artigo 49.° CE abrange as actividades a tempo parcial de docência, prestadas a favor de uma entidade pública, pelas quais o docente receba uma compensação pelas despesas.

2)      O facto de o benefício fiscal estatal se aplicar apenas quando a actividade é exercida em benefício de uma pessoa colectiva de direito público nacional não pode justificar a restrição à livre prestação de serviços.

3)      O artigo 149.° CE, que estabelece que os Estados-Membros mantêm a responsabilidade pela organização dos seus sistemas de ensino, não pode ser interpretado no sentido de que o § 3, n.° 26, da Einkommensteurgesetz não está abrangido pelo âmbito de aplicação das disposições do Tratado relativas à livre prestação de serviços, ou no sentido de que é legal a recusa de conceder a isenção fiscal em causa aos docentes que ensinam em Universidades noutros Estados-Membros.»


1 – Língua original: inglês.


2 – Acórdão de 26 de Abril de 1988 (352/85, Colect., p. 2085, n.° 16). V., também, acórdão de 11 de Abril de 2000, Deliège (C-51/96 e C-191/97, Colect., p. I-2549).


3 – Acórdão de 5 de Outubro de 1988 (196/87, Colect., p. 6159).


4 – Acórdão de 12 de Julho de 2001 (C-157/99, Colect., p. I-5473).


5 – Ibidem, n.° 58.


6 – Conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs apresentadas em 1 de Dezembro de 2005 no processo Joustra (acórdão de 23 de Novembro de 2006, C-5/05, Colect., pp. I-11075, I-11077, n.° 84). Eu próprio analisei esta matéria nas minhas conclusões de 10 de Novembro de 2005 no processo FENIN (acórdão de 11 de Julho de 2006, C-205/03 P, Colect., pp. I-6295, I-6297), que tinha por objecto a definição do conceito de «empresa» para efeitos do direito da concorrência. Como aí expliquei, «mesmo que não seja prosseguido nenhum objectivo lucrativo, pode existir uma participação no mercado susceptível de pôr em causa os objectivos do direito da concorrência».


7 – V., por exemplo, acórdão de 9 de Novembro de 2006, Comissão/Bélgica (C-433/04, Colect., p. I-10653, n.° 33 e jurisprudência citada).


8 – Acórdão de 10 de Março de 2005, Laboratoires Fournier (C-39/04, Colect., p. I-2057, n.° 23).


9 – Acórdão de 7 de Julho de 2005 (C-147/03, Colect., p. I-5969).


10 – Já referido na nota 8.


11 – O artigo 163.°, n.° 1, CE estabelece que «[a] Comunidade tem por objectivo reforçar as bases científicas e tecnológicas da indústria comunitária», e o artigo 163.°, n.° 2, CE estabelece que, «[p]ara o efeito, a Comunidade incentivará, em todo o seu território, as empresas […], os centros de investigação e as universidades nos seus esforços de investigação e de desenvolvimento tecnológico de elevada qualidade; apoiará os seus esforços de cooperação, tendo especialmente por objectivo dar às empresas a possibilidade de explorarem plenamente as potencialidades do mercado interno, através, nomeadamente, […] da eliminação dos obstáculos jurídicos e fiscais a essa cooperação».


12 – Acórdão do Tribunal de Justiça de 20 de Setembro de 2001 (C-184/99, Colect., p. I-6193, n.° 44). V., também, acórdão de 15 de Março de 2005, Bidar (C-209/03, Colect., p. 2119, n.° 56), e n.° 53 das conclusões do advogado-geral F. G. Jacobs no processo Comissão/Áustria, já referido na nota 9 (C-147/03, Colect. 2005, p. I-5972).


13 – V. Giubboni, S. – «Free Movement of Persons and European Solidarity», European Law Journal, vol. 13 (2007), n.° 3, pp. 360-379.


14 – Acórdão do Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 1992 (C-204/90, Colect., p. I-249). V., também, acórdão do Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 1992, Comissão/Bélgica (C-300/90, Colect., p. I-305).


15 – V., por exemplo, acórdãos do Tribunal de Justiça de 29 de Março de 2007, Rewe Zentralfinanz (C-347/04, ainda não publicado na Colectânea, n.os 62 a 64), e de 14 de Setembro de 2006, Centro di Musicologia Walter Stauffer (C-386/04, Colect., p. I-8203, n.° 53 e jurisprudência citada).


16 – V. acórdãos do Tribunal de Justiça de 14 de Fevereiro de 1995, Schumacker (C-279/93, Colect., p. I-225); de 7 de Setembro de 2004, Manninen (C-319/02, Colect., p. I-7477); e de 6 de Março de 2007, Meilicke e o. (C-292/04, ainda não publicado na Colectânea).


17 – No processo Marks & Spencer (acórdão de 13 de Dezembro de 2005, C-446/03, Colect., pp. I-10837, I-10839), defendi que o critério estabelecido no acórdão Bachmann é demasiado restritivo e devia ser flexibilizado por forma a erigir o objectivo da lei nacional em critério de aceitação da coerência fiscal. A advogada-geral J. Kokott fez igualmente uma proposta semelhante nas suas conclusões no processo Manninen, já referido. O Tribunal de Justiça, porém, não se afastou da orientação adoptada no acórdão Bachmann. De qualquer modo, o § 3, n.° 26, da EStG também não corresponde a esse critério menos exigente, porquanto, mesmo que, em princípio, se aceitasse que o seu objectivo e a sua lógica são compatíveis com o direito comunitário, não se demonstrou que a interferência no direito de H. Jundt prestar os seus serviços noutro Estado-Membro é necessária para atingir esse objectivo.


18 – V., por exemplo, acórdãos Manninen, já referido na nota 16 (impostos directos); de 15 de Janeiro de 2002, Gottardo (C-55/00, Colect., p. I-413) (segurança social); e de 7 de Dezembro de 2000, Teleaustria e Telefonadress (C-324/98, Colect., p. I-10745) (contratos públicos excluídos do âmbito das directivas sobre contratos públicos).


19 – Já referido na nota 9.