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Processo C-293/06

Deutsche Shell GmbH

contra

Finanzamt für Großunternehmen in Hamburg

(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Finanzgericht Hamburg)

«Liberdade de estabelecimento – Imposto sobre as sociedades – Efeitos monetários do repatriamento da dotação de capital feita por uma sociedade estabelecida num Estado-Membro para o seu estabelecimento estável situado noutro Estado-Membro»

Sumário do acórdão

Livre circulação de pessoas – Liberdade de estabelecimento – Legislação fiscal – Imposto sobre as sociedades – Dedução dos prejuízos

[Tratado CE, artigo 52.° (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE) e 58.° (actual artigo 48.° CE)]

As disposições conjugadas dos artigos 52.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE) e 58.° do Tratado CE (actual artigo 48.° CE) opõem-se a que um Estado-Membro, na determinação da matéria colectável, exclua as perdas cambiais sofridas por uma sociedade com sede social no território deste Estado, por ocasião do repatriamento da dotação de capital que tinha realizado para o seu estabelecimento estável situado noutro Estado-Membro. Estas disposições opõem-se também a que as perdas cambiais em causa só possam ser deduzidas como despesas de exploração de um empresa com sede num Estado-Membro na medida em que o seu estabelecimento estável situado noutro Estado-Membro não tenha realizado quaisquer lucros exonerados de tributação.

Efectivamente, este regime fiscal aumenta os riscos económicos em que incorre uma sociedade estabelecida num Estado-Membro que pretenda criar uma entidade noutro Estado-Membro, quando se utiliza uma moeda diferente da do Estado de origem e constitui assim um entrave à liberdade de estabelecimento. Este último não é justificado pela necessidade de preservar a coerência do sistema fiscal, dado que não existe qualquer relação directa entre as perdas cambiais, por um lado, e os ganhos cambiais, por outro. Este entrave não pode, por outro lado, ser justificado pela existência de uma convenção para evitar a dupla tributação. É certo que a liberdade de estabelecimento não pode ser entendida no sentido de que um Estado-Membro é obrigado a estabelecer as suas regras fiscais em função das de outro Estado-Membro a fim de garantir, em todas as situações, uma tributação que elimine qualquer disparidade decorrente das regulamentações fiscais nacionais, uma vez que as decisões adoptadas por uma sociedade quanto ao estabelecimento de estruturas comerciais no estrangeiro podem, conforme o caso, ser mais ou menos vantajosas ou desvantajosas para essa sociedade. Mas a desvantagem fiscal em causa é relativa a uma circunstância operacional particular que apenas pode ser tida em conta pelas autoridades fiscais da empresa principal.

No que respeita à limitação da imputação das perdas cambiais sofridas pelo referido estabelecimento estável em função dos seus resultados, a mesma também não pode ser justificada com o argumento relativo à possibilidade de a empresa que possui esse estabelecimento poder beneficiar de uma vantagem dupla a título das perdas cambiais. Com efeito, um Estado-Membro que renunciou a exercer as suas competências de tributação ao celebrar uma convenção para evitar a dupla tributação não pode invocar a falta de competência tributária em relação aos resultados de um estabelecimento estável que pertence a uma sociedade estabelecida no território desse Estado para justificar a recusa de dedução das despesas efectuadas por esta sociedade que, pela sua natureza, não são susceptíveis de ser tidas em conta no Estado-Membro em que está situado esse estabelecimento.

(cf. n.os 30, 32, 40, 43-45, 47, 50,51, 53, disp. 1, 2)







ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção)

28 de Fevereiro de 2008 (*)

«Liberdade de estabelecimento – Imposto sobre as sociedades – Efeitos monetários do repatriamento da dotação de capital feita por uma sociedade estabelecida num Estado-Membro para o seu estabelecimento estável situado noutro Estado-Membro»

No processo C-293/06,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Finanzgericht Hamburg (Alemanha), por decisão de 8 de Junho de 2006, entrado no Tribunal de Justiça em 3 de Julho de 2006, no processo

Deutsche Shell GmbH

contra

Finanzamt für Großunternehmen in Hamburg,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quarta Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, G. Arestis, R. Silva de Lapuerta (relatora), J. Malenovský e T. von Danwitz, juízes,

advogada-geral: E. Sharpston,

secretário: C. Strömholm, administradora,

vistos os autos e após a audiência de 13 de Setembro de 2007,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Deutsche Shell GmbH, por A. Raupach e D. Pohl, Rechtsanwälte,

–        em representação do Finanzamt für Großunternehmen in Hamburg, por M. Fromm, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo alemão, por M. Lumma e C. Blaschke, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo neerlandês, por H. G. Sevenster, M. de Mol e M. de Grave, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por R. Lyal e G. Wilms, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada-geral na audiência de 8 de Novembro de 2007,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 52.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE) e 58.° do Tratado CE (actual artigo 48.° CE).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre a Deutsche Shell GmbH (a seguir «Deutsche Shell») e o Finanzamt für Großunternehmen in Hamburg (a seguir «Finanzamt») a propósito do tratamento fiscal, pelas autoridades da República Federal da Alemanha, da desvalorização monetária de uma dotação de capital (a seguir «dotação de capital»), feita para um estabelecimento estável da referida sociedade situado noutro Estado-Membro por ocasião do repatriamento desse capital.

 Quadro jurídico

 Convenção para evitar a dupla tributação

3        Nos termos do artigo 3.° da Convenção para evitar a dupla tributação, celebrada em 31 de Outubro de 1925 entre a Alemanha e a Itália (RGBl. 1925 II, p. 1146, a seguir «convenção»):

«1.      Os impostos reais que incidem sobre os rendimentos resultantes da exploração do comércio, da indústria ou de qualquer outra actividade profissional, independentemente da sua natureza, são cobrados apenas pelo Estado em cujo território a empresa tem o seu estabelecimento estável; […]

[…]

3.      Se a empresa tem estabelecimentos estáveis nos dois Estados contratantes, cada um destes Estados cobrará impostos reais sobre a parte dos rendimentos resultantes da actividade dos estabelecimentos estáveis que se encontrem no seu território. […]»

4        O artigo 11.° da convenção prevê:

«Os impostos pessoais que incidem sobre o rendimento global do contribuinte são cobrados por cada um dos Estados contratantes em conformidade com as seguintes disposições:

(1)      Os rendimentos

[…]

c)      provenientes do exercício de uma actividade comercial, industrial ou de qualquer outra actividade profissional, incluindo os rendimentos da exploração de uma empresa de navegação marítima,

[…]

estão sujeitos às mesmas disposições que são previstas para estes rendimentos nos artigos correspondentes.

[…]»

 A legislação fiscal alemã aplicável à data dos factos do processo principal

5        O § 1 da lei alemã relativa ao imposto sobre as sociedades (Körperschaftsteuergesetz), de 11 de Março de 1991 (BGBl. 1991 I, p. 637, a seguir «KStG»), dispõe:

«1.      Estão sujeitas a imposto sobre as sociedades pelo rendimento global as seguintes empresas […] com o centro de administração ou a sede no território nacional:

1)      As sociedades de capitais (sociedades por acções, sociedades por quotas);

[…]

2.      A obrigação de imposto sobre as sociedades tributadas pelo rendimento global abrange todos os rendimentos.»

6        Nos termos do § 12 da Abgabenordnung (código tributário):

«1.      Considera-se estabelecimento qualquer instalação ou implantação comercial fixa utilizada para a actividade de uma empresa.

2.      Em especial, devem considerar-se estabelecimentos:

[…]

–        as sucursais.»

7        O § 2 a, n.° 3, da lei relativa ao imposto sobre o rendimento (Einkommensteuergesetz), de 7 de Setembro de 1990 (BGBl. 1990 I, p. 1898, a seguir «EStG»), tem a seguinte redacção:

«Quando, nos termos de uma convenção para evitar a dupla tributação, os rendimentos de um contribuinte tributado pelo rendimento global provenientes da actividade comercial ou industrial de um estabelecimento estável situado no estrangeiro devam ser exonerados do imposto sobre as sociedades, as perdas sofridas nos termos do direito fiscal nacional, em relação com estes rendimentos, devem, a pedido do contribuinte, ser deduzidas ao calcular-se o montante total dos rendimentos, na medida em que o contribuinte pudesse compensá-las ou deduzi-las se os rendimentos não devessem ser exonerados do imposto sobre o rendimento, e na medida em que essas perdas sejam superiores aos rendimentos positivos que devem ser exonerados nos termos desta convenção, resultantes da actividade comercial ou industrial de outros estabelecimentos estáveis situados no mesmo país estrangeiro. […] Na medida em que, durante um dos períodos de tributação posteriores, seja positivo o resultado global dos rendimentos provenientes da actividade industrial ou comercial dos estabelecimentos estáveis situados nesse Estado estrangeiro, rendimentos esses que devem ser exonerados em conformidade com esta convenção, o montante deduzido nos termos da primeira e segunda frases deve ser novamente tido em conta no cálculo do montante global dos rendimentos em relação ao respectivo período de tributação. […]»

8        O § 3 c, n.° 1, da EStG prevê :

«As despesas que tenham uma relação económica directa com proveitos exonerados, não podem ser deduzidas como despesas gerais da empresa ou despesas com a obtenção, protecção e preservação dos rendimentos.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

9        A Deutsche Shell, que é uma sociedade de capitais com sede e direcção na Alemanha, criou em Itália, em 1974, um estabelecimento estável para exploração e produção de jazidas de gás natural e de petróleo (a seguir «estabelecimento estável»). Entre 1974 e 1991, realizou para o referido estabelecimento contribuições financeiras sob a forma de dotações de capital.

10      Os lucros do estabelecimento estável repatriados para a Alemanha foram deduzidos da dotação de capital por um valor calculado com base na cotação do marco alemão (DEM) e da lira italiana (ITL) em vigor à data de cada pagamento efectuado por este estabelecimento à Deutsche Shell.

11      A desvalorização monetária do valor da dotação de capital feita para o estabelecimento estável não foi tida em conta em Itália no âmbito da tributação dos lucros do referido estabelecimento, dado que a matéria colectável foi calculada em liras italianas.

12      Na Alemanha, a Deutsche Shell é tributada pelos seus rendimentos mundiais, por força do § 1, n.° 1, ponto 1, da KStG.

13      Em 28 de Fevereiro de 1992, a Deutsche Shell transferiu os activos do seu estabelecimento estável para uma filial italiana, a saber, a Sierra Gas Srl, operação para a qual foi obrigada a revelar as suas reservas ocultas. Com a transferência desses activos, o estabelecimento estável deixou de existir. A Deutsche Shell cedeu no mesmo dia as suas participações na sociedade Sierra Gas Srl à sociedade Edison Gas SpA.

14      O montante em liras italianas obtido em razão das operações supramencionadas foi pago à Deutsche Shell em 17 de Julho de 1992 a título de reembolso da dotação de capital.

15      Convertido em marcos alemães à taxa de câmbio aplicável à referida data, que era de 1 000 ITL para 1,3372 DEM, o montante da dotação de capital assim reembolsado, que se elevava a 83 658 896 927 ITL, deu como resultado o montante de 111 868 677 DEM.

16      A Deutsche Shell considerou que o saldo negativo de 122 698 502 DEM, resultante da comparação entre o montante de 111 868 677 DEM e o da dotação de capital, constituía uma «perda cambial».

17      No cálculo do montante dos rendimentos tributáveis da Deutsche Shell no exercício de 1992, o Finanzamt recusou tomar em consideração a referida perda na liquidação que notificou a esta sociedade em 19 de Setembro de 1997 em sede de imposto sobre as sociedades.

18      Em 2 de Outubro de 1997, a Deutsche Shell apresentou reclamação da referida liquidação.

19      Após ter efectuado, em 16 de Novembro de 2001 e em 5 de Agosto de 2003, correcções da referida liquidação, por motivos destituídos de pertinência para o processo principal, o Finanzamt indeferiu a referida reclamação por decisão de 7 de Agosto de 2003. Considerou, designadamente, que a Deutsche Shell não tinha sofrido uma verdadeira perda financeira, que a desvalorização monetária do valor da dotação de capital representava apenas uma parte dos resultados do estabelecimento estável e que, mesmo tendo em conta a referida desvalorização, esta sociedade tinha atingido um resultado positivo durante o exercício fiscal em causa.

20      Em 14 de Agosto de 2003, a Deutsche Shell interpôs recurso para o Finanzgericht Hamburg da decisão do Finanzamt que indeferiu a sua reclamação.

21      Neste tribunal, a Deutsche Shell alegou que o facto de não ter podido deduzir, em sede de imposto sobre as sociedades, a perda cambial que sofreu é incompatível com a liberdade de estabelecimento. Afirma, designadamente que se encontra, no caso em apreço, numa situação mais desfavorável do que estaria se o capital investido na dotação tivesse sido investido numa sociedade estabelecida na Alemanha.

22      Nestas condições, o Finanzgericht, considerando que a resolução do litígio que lhe compete decidir depende da interpretação das disposições do Tratado relativas à liberdade de estabelecimento, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Os artigos 52.° e 58.° do Tratado […], lidos em conjugação, opõem-se a que a República Federal da Alemanha, na sua qualidade de Estado de origem, considere as perdas cambiais sofridas pela sociedade-mãe nacional, por ocasião do repatriamento das dotações de capital que tinha feito para um estabelecimento estável italiano, como se se tratasse de parte dos lucros deste último e exclua essas perdas da matéria colectável do imposto alemão, com fundamento na exoneração prevista no artigo 3.°, n.° 1 e n.° 3, e no artigo 11.°, ponto 1, alínea c), da convenção […], apesar de essas perdas cambiais não poderem ser imputadas nos lucros do estabelecimento estável calculados para efeitos da tributação italiana e, deste modo, não serem tidas em conta no Estado de origem nem no Estado do estabelecimento estável?

2)      Em caso de resposta afirmativa a esta questão [ou seja, se as perdas cambiais referidas deverem ser consideradas no cálculo da matéria colectável do imposto na Alemanha], os artigos 52.° e 58.° do Tratado […], lidos em conjugação, opõem-se a que as referidas perdas cambiais (embora devam ser tidas em conta no cálculo da matéria colectável do imposto alemão) só possam ser deduzidas como despesas gerais de exploração desde que não sejam obtidos quaisquer lucros exonerados no estabelecimento estável italiano?»

 Quanto ao recurso

 Quanto à primeira questão

23      Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se as disposições conjugadas dos artigos 52.° e 58.° do Tratado se opõem a que um Estado-Membro, na determinação da matéria colectável do imposto nacional, exclua as perdas cambiais sofridas por uma sociedade com sede social no território deste Estado por ocasião do repatriamento da dotação de capital que tinha feito para o seu estabelecimento estável, situado noutro Estado-Membro.

24      Quanto à situação factual de que emerge o litígio que originou o reenvio prejudicial, o Finanzamt e o Governo alemão alegam que, no caso em apreço, não ocorreu uma verdadeira perda económica decorrente da taxa de câmbio aplicável à data da cessão do estabelecimento estável e do repatriamento da dotação de capital deste. Afirmam também que a Deutsche Shell e o estabelecimento estável formavam uma entidade económica indivisível e que, no balanço do grupo, existiam permanentemente flutuações financeiras ligadas à evolução da taxa de câmbio.

25      Quanto a este aspecto, importa assinalar que compete ao órgão jurisdicional de reenvio determinar se as flutuações monetárias alegadas no processo principal provocaram uma perda cambial que tivesse constituído uma verdadeira perda económica e afectado os resultados da Deutsche Shell no exercício respectivo.

26      Ao invés, cabe ao Tribunal de Justiça responder ao pedido de decisão prejudicial, baseando-se nas apreciações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio e dar-lhe todas as indicações úteis que lhe permitam decidir o litígio que lhe foi submetido.

27      Nestas condições, o Tribunal de Justiça é chamado a determinar se, no caso de existir uma perda cambial que constitua uma verdadeira perda económica, a decisão adoptada pelo Finanzamt de excluir esta perda do cálculo da matéria colectável da referida sociedade é susceptível de constituir um obstáculo ao exercício da liberdade de estabelecimento.

28      Importa recordar que, em conformidade com jurisprudência assente, devem ser consideradas obstáculos todas as medidas que proíbem, perturbam ou tornam menos atractivo o exercício desta liberdade (v. acórdãos de 30 de Novembro de 1995, Gebhard, C-55/94, Colect., p. I-4165, n.° 37, e de 5 de Outubro de 2004, CaixaBank France, C-442/02, Colect., p. I-8961, n.° 11).

29      O Tribunal de Justiça já declarou designadamente que estes efeitos restritivos se podem produzir porque, em razão de uma regulamentação fiscal, uma sociedade pode ser dissuadida de criar entidades subordinadas, como o estabelecimento estável, noutros Estados-Membros e de exercer a sua actividade por intermédio destas entidades (v. acórdãos de 13 de Dezembro de 2005, Marks & Spencer, C-446/03, Colect., p. I-10837, n.os 32 e 33, e de 23 de Fevereiro de 2006, Keller Holding, C-471/04, Colect., p. I-2107, n.° 35).

30      Como assinalou o advogado-geral nos n.os 43 e 44 das suas conclusões, o regime fiscal em causa no processo principal aumenta os riscos económicos em que incorre uma sociedade estabelecida num Estado-Membro que pretenda criar uma entidade noutro Estado-Membro, quando se utiliza uma moeda diferente da do Estado de origem. Nesta situação, o estabelecimento principal deve fazer face não apenas aos riscos normais associados à criação desta entidade, mas terá também que suportar um risco suplementar de natureza fiscal ao realizar a dotação de capital correspondente.

31      Quanto ao processo principal, importa observar que, em razão do exercício da liberdade de estabelecimento, a Deutsche Shell sofreu uma perda financeira que não foi tida em consideração pelas autoridades fiscais nacionais para efeitos da determinação da matéria colectável do imposto sobre as sociedades na Alemanha e que também não foi tida em conta no âmbito da tributação em Itália do seu estabelecimento estável.

32      Há que concluir que o regime fiscal em causa no processo principal constitui um obstáculo à liberdade de estabelecimento.

33      Quanto à eventual justificação deste obstáculo, o Finanzamt e o Governo alemão alegam, a título subsidiário, que esta assenta em razões relativas, por um lado, à coerência do sistema fiscal e, por outro, à repartição das competências de tributação entre os dois Estados-Membros em causa.

34      No que diz respeito ao primeiro argumento justificativo, alega-se que a hipótese de a perda cambial ser considerada para fins de determinação da matéria colectável da Deutsche Shell na Alemanha conduziria a um sistema fiscal incoerente, na medida em que um eventual ganho cambial obtido numa situação comparável não seria tido em conta. Assim, a desvantagem resultante do facto de não se tomar em consideração uma perda cambial é o corolário da vantagem decorrente do facto de um ganho cambial ser igualmente excluído da referida matéria colectável.

35      Quanto ao segundo argumento justificativo, este consiste na afirmação de que a repartição das competências de tributação entre a República Federal da Alemanha e a República Italiana, operada pela convenção, é um objectivo legítimo. Com efeito, os Estados-Membros podem fixar os critérios de repartição da soberania fiscal, seja de modo unilateral seja através de convenções bilaterais. Mediante a referida convenção, os dois Estados-Membros em causa decidiram exonerar do imposto sobre o rendimento os estabelecimentos estáveis situados no território do Estado co-contratante, o que implica que a perda cambial em causa não possa ser considerada.

36      Estes dois argumentos não podem ser acolhidos.

37      Em primeiro lugar, no que diz respeito à coerência do sistema fiscal, importa lembrar que o Tribunal de Justiça admitiu que a necessidade de preservar essa coerência pode justificar uma restrição ao exercício das liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado (v. acórdãos de 28 de Janeiro de 1992, Bachmann, C-204/90, Colect., p. I-249, n.° 28; Comissão/Bélgica, C-300/90, Colect., p. I-305, n.° 21; Keller Holding, já referido, n.° 40, e de 8 de Novembro de 2007, Amurta, C-379/05, ainda não publicado na Colectânea, n.° 46).

38      O Tribunal de Justiça decidiu, contudo, que, para que um argumento baseado nessa justificação possa proceder, há que estabelecer a existência de uma ligação directa entre o benefício fiscal em causa e a compensação desse benefício através de uma determinada tributação (v. acórdãos de 14 de Novembro de 1995, Svensson e Gustavsson, C-484/93, Colect., p. I-3955, n.° 18; de 21 de Novembro de 2002, X e Y, C-436/00, Colect., p. I-10829, n.° 52; Keller Holding, já referido, n.° 40, e de 14 de Setembro de 2006, Centro di Musicologia Walter Stauffer, C-386/04, Colect., p. I-8203, n.os 54 a 56).

39      Além disso, o carácter directo desta ligação deve ser estabelecido, à luz do objectivo prosseguido pela regulamentação fiscal em causa, ao nível dos contribuintes em causa, através de uma correlação rigorosa entre o elemento da dedutibilidade e o da tributação (v., neste sentido, acórdão de 11 de Agosto de 1995, Wielockx, C-80/94, Colect., p. I-2493, n.° 24).

40      Quanto ao regime fiscal em causa no processo principal, importa assinalar que a comparação entre as perdas cambiais, por um lado, e os ganhos cambiais, por outro, não é relevante, dado que não existe entre estes dois elementos uma relação directa na acepção da jurisprudência recordada nos dois números precedentes. Com efeito, o facto de uma perda cambial não ser considerada para fins de determinação da matéria colectável da Deutsche Shell a título do exercício fiscal de 1992 não é compensada por nenhuma vantagem fiscal no Estado-Membro em que esta sociedade tem a sua sede nem no Estado-Membro em que está situado o seu estabelecimento estável.

41      Em segundo lugar, quanto ao argumento relativo à existência da convenção, que procede a uma repartição das competências tributárias entre os dois Estados-Membros em causa, importa recordar que, segundo jurisprudência assente, na ausência de medidas de unificação ou de harmonização comunitária, os Estados-Membros continuam a ser competentes para determinar os critérios de tributação dos rendimentos e do património com vista a eliminar, eventualmente por via convencional, as duplas tributações (v. acórdãos de 3 de Outubro de 2006, FKP Scorpio Konzertproduktionen, C-290/04, Colect., p. I-9461, n.° 54; de 12 de Dezembro de 2006, Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, C-374/04, Colect., p. I-11673, n.° 52, e de 18 de Julho de 2007, Oy AA, C-231/05, ainda não publicado na Colectânea, n.° 52).

42      A referida competência implica igualmente que um Estado-Membro não possa ser obrigado a ter em conta, para fins de aplicação da sua legislação fiscal, os resultados negativos de um estabelecimento estável situado noutro Estado-Membro e pertencente à sociedade cuja sede se situa no território do primeiro Estado pela simples razão de que estes resultados não são susceptíveis de serem tomados em consideração, no plano fiscal, no Estado-Membro em que o estabelecimento estável está situado.

43      Com efeito, a liberdade de estabelecimento não pode ser entendida no sentido de que um Estado-Membro é obrigado a estabelecer as suas regras fiscais em função das de outro Estado-Membro a fim de garantir, em todas as situações, uma tributação que elimine qualquer disparidade decorrente das regulamentações fiscais nacionais, uma vez que as decisões adoptadas por uma sociedade quanto ao estabelecimento de estruturas comerciais no estrangeiro podem, conforme o caso, ser mais ou menos vantajosas ou desvantajosas para essa sociedade (v., por analogia, acórdão de 12 de Julho de 2005, Schempp, C-403/03, Colect., p. I-6421, n.° 45).

44      Em relação ao caso do processo principal, importa assinalar que a desvantagem fiscal em causa é relativa a uma circunstância operacional particular que apenas pode ser tida em conta pelas autoridades fiscais alemãs. Embora caiba a qualquer Estado-Membro que celebre uma convenção para evitar a dupla tributação executar esta convenção através da aplicação do seu próprio direito fiscal e determinar assim os rendimentos atribuíveis a um estabelecimento estável, não se pode admitir que um Estado-Membro exclua as perdas cambiais da determinação da matéria colectável do estabelecimento principal que, pela sua própria natureza, nunca poderão ser suportadas pelo estabelecimento estável.

45      Consequentemente, há que responder à primeira questão que as disposições conjugadas dos artigos 52.° e 58.° do Tratado se opõem a que um Estado-Membro, na determinação da matéria colectável, exclua as perdas cambiais sofridas por uma sociedade com sede social no território deste Estado, por ocasião do repatriamento da dotação de capital que tinha realizado para o seu estabelecimento estável situado noutro Estado-Membro.

 Quanto à segunda questão

46      Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no caso de ser dada resposta afirmativa à primeira questão, se as disposições conjugadas dos artigos 52.° e 58.° do Tratado se opõem também a que as perdas cambiais em causa só possam ser deduzidas como despesas de exploração de um empresa com sede num Estado-Membro na medida em que o seu estabelecimento estável situado noutro Estado-Membro não tenha realizado quaisquer lucros exonerados da tributação.

47      Como decorre das considerações enunciadas nos n.os 30 e 31 do presente acórdão, uma limitação da imputação das perdas cambiais sofridas pelo referido estabelecimento estável em função dos seus resultados é igualmente susceptível de dissuadir uma sociedade de prosseguir as suas actividades transfronteiriças no âmbito da Comunidade Europeia através desta entidade e deve, por conseguinte, ser considerada um obstáculo à liberdade de estabelecimento.

48      Quanto a uma eventual justificação desta restrição, o Finanzamt e o Governo alemão reiteraram a sua posição segundo a qual o regime fiscal se justifica por razões relativas à coerência das regras tributárias e à repartição das competências de tributação entre os dois Estados-Membros em causa, aproximando-se as explicações apresentadas a este respeito das mencionadas nos n.os 34 e 35 do presente acórdão.

49      O Finanzamt e o Governo alemão consideram igualmente que o regime fiscal em causa no processo principal, ao excluir a dedução de despesas efectuadas com o fim de obter rendimentos no estrangeiro, na medida em que estes são exonerados ao abrigo da convenção, se destina a evitar que as perdas sejam duplamente tomadas em consideração. Com efeito, se a perda cambial devesse ser tida em conta a título de despesas de exploração da empresa na Alemanha, a Deutsche Shell beneficiaria de uma dupla vantagem fiscal, uma vez que o resultado positivo do seu estabelecimento estável é exonerado de imposto na Alemanha ao abrigo desta convenção, sem que a perda cambial pudesse ser tomada em consideração no âmbito da tributação italiana. Por outras palavras, um único processo económico seria cindido de forma artificial em favor da sociedade Deutsche Shell, dado que os rendimentos do estabelecimento estável estão exonerados de imposto ao abrigo da convenção e a perda cambial é tratada como despesa de exploração da empresa, distinta das outras despesas efectuadas por esta.

50      Na medida em que dois dos argumentos invocados pelo Finanzamt e pelo Governo alemão reproduzem, no essencial, as considerações formuladas por estes a propósito da primeira questão, basta remeter para os n.os 37 a 44 do presente acórdão, dos quais resulta que o facto de se excluir o computo das perdas cambiais não pode ser justificado pelos motivos mencionados no n.° 48.

51      No que diz respeito ao argumento específico relativo à possibilidade de a Deutsche Shell beneficiar de uma vantagem dupla a título das perdas cambiais, importa assinalar que um Estado-Membro que renunciou a exercer as suas competências de tributação ao celebrar uma convenção fiscal bilateral como a aplicável no processo principal não pode invocar a falta de competência tributária em relação aos resultados de um estabelecimento estável que pertence a uma sociedade estabelecida no território desse Estado para justificar a recusa de dedução das despesas efectuadas por esta sociedade que, pela sua natureza, não são susceptíveis de ser tidas em conta no Estado-Membro em que está situado esse estabelecimento.

52      Importa acrescentar que o facto de o estabelecimento estável ter realizado lucros não tem relevância em relação ao direito da Deutsche Shell de deduzir, na sua totalidade, as perdas cambiais resultantes do repatriamento da dotação de capital realizada para esse estabelecimento como despesa de exploração da empresa. Se assim não fosse, as perdas cambiais não poderiam ser tidas em conta nem pelo Estado-Membro da sede da sociedade nem pelo Estado-Membro em que está situado o estabelecimento estável, uma vez que a contabilidade deste, efectuada na moeda nacional, não poderia revelar a desvalorização monetária da dotação de capital.

53      Por conseguinte, há que responder à segunda questão que as disposições conjugadas dos artigos 52.° e 58.° do Tratado se opõem também a que as perdas cambiais em causa só possam ser deduzidas como despesas de exploração de um empresa com sede num Estado-Membro na medida em que o seu estabelecimento estável situado noutro Estado-Membro não tenha realizado quaisquer lucros exonerados de tributação.

 Quanto às despesas

54      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quarta Secção) declara:

1)      As disposições conjugadas dos artigos 52.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE) e 58.° do Tratado CE (actual artigo 48.° CE) opõem-se a que um Estado-Membro, na determinação da matéria colectável, exclua as perdas cambiais sofridas por uma sociedade com sede social no território deste Estado, por ocasião do repatriamento da dotação de capital que tinha realizado para o seu estabelecimento estável situado noutro Estado-Membro.

2)      As disposições conjugadas dos artigos 52.° do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 43.° CE) e 58.° do Tratado CE (actual artigo 48.° CE) opõem-se também a que as perdas cambiais em causa só possam ser deduzidas como despesas de exploração de um empresa com sede num Estado-Membro na medida em que o seu estabelecimento estável situado noutro Estado-Membro não tenha realizado quaisquer lucros exonerados de tributação.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.