Processo C-425/06
Ministero dell’Economia e delle Finanze, anteriormente Ministero delle Finanze
contra
Part Service Srl, sociedade em liquidação, anteriormente Italservice Srl
(pedido de decisão prejudicial apresentado pela Corte suprema di cassazione)
«Sexta Directiva IVA – Artigos 11.°, A, n.° 1, alínea a), e 13.°, B, alíneas a) e d) – Locação financeira – Fraccionamento artificial da prestação em vários elementos – Efeitos – Redução da matéria colectável – Isenções – Prática abusiva – Condições»
Sumário do acórdão
1. Disposições fiscais – Harmonização das legislações – Impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado – Sexta Directiva – Operações constitutivas de uma prática abusiva
(Directiva 77/388 do Conselho)
2. Disposições fiscais – Harmonização das legislações – Impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado – Sexta Directiva – Operações constitutivas de uma prática abusiva
[Directiva 77/388 do Conselho, artigos 11.°, A, n.° 1, e 13.°, B, alíneas a) e d)]
1. A Sexta Directiva 77/388, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios, deve ser interpretada no sentido de que se pode considerar que existe uma prática abusiva quando o objectivo de obter uma vantagem fiscal constitui o fim essencial da operação ou das operações em causa.
(cf. n.° 45, disp. 1)
2. Compete ao órgão jurisdicional nacional determinar se, para efeitos da aplicação do imposto sobre o valor acrescentado, se pode considerar que operações de locação financeira que se caracterizam pelos seguintes elementos constituem uma prática abusiva à luz da Sexta Directiva 77/388, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios:
– as duas sociedades que participam na operação de locação financeira fazem parte do mesmo grupo;
– a própria prestação da sociedade de locação financeira é objecto de um fraccionamento, estando o elemento característico de financiamento confiado a outra sociedade para ser decomposto em prestações de crédito, de seguro e de intermediação;
– a prestação da sociedade de locação financeira fica, assim, reduzida a uma prestação de locação do veículo;
– as rendas pagas pelo locatário elevam-se no total a um montante pouco superior ao custo de aquisição do bem;
– esta prestação, considerada isoladamente, parece, assim, desprovida de rentabilidade económica, de modo que a viabilidade da empresa não pode ser assegurada unicamente através dos contratos celebrados com os locatários;
– a sociedade de locação financeira só recebe a contrapartida da operação de locação financeira graças ao cúmulo das rendas pagas pelo locatário e dos montantes pagos pela outra sociedade do mesmo grupo.
Compete igualmente ao órgão jurisdicional nacional apreciar se os elementos que lhe são submetidos caracterizam a existência de uma operação única, independentemente da sua articulação contratual. Neste contexto, pode ser levado a alargar a sua análise mediante a procura de indícios que revelem a existência de uma prática abusiva. Para esse fim, deve verificar, antes de mais, se o resultado visado é uma vantagem fiscal cuja concessão seria contrária a um ou a vários objectivos da Sexta Directiva e, seguidamente, se o mesmo constituiu o objectivo essencial da solução contratual adoptada.
No que respeita ao primeiro critério, o referido órgão jurisdicional pode ter em conta que o resultado pretendido é a obtenção de uma vantagem fiscal decorrente da isenção, em virtude do artigo 13.°, B, alíneas a) e d), da Sexta Directiva, das prestações confiadas à sociedade co-contratante da sociedade de locação financeira. Tal resultado afigura-se contrário ao objectivo do artigo 11.°, A, n.° 1, da Sexta Directiva, ou seja, a tributação de tudo o que constitua a contrapartida recebida ou a receber do locatário. Com efeito, uma vez que a locação de veículos mediante contratos de locação financeira constitui uma prestação de serviços na acepção dos artigos 6.° e 9.° da Sexta Directiva, tal operação está normalmente sujeita a imposto sobre o valor acrescentado, cuja matéria colectável deve ser determinada em conformidade com o referido artigo 11.°, A, n.° 1.
No que respeita ao segundo critério, o órgão jurisdicional nacional, na apreciação que lhe compete efectuar, pode ter em consideração o carácter puramente artificial das operações, bem como as relações de natureza jurídica, económica e/ou pessoal entre os operadores em causa, uma vez que esses elementos são susceptíveis de demonstrar que a obtenção da vantagem fiscal constitui o objectivo essencial prosseguido, sem prejuízo da eventual existência, para além deste, de objectivos económicos inspirados em considerações, por exemplo, de marketing, de organização e de garantia.
(cf. n.os 54, 55, 57-63, disp. 2)
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção)
21 de Fevereiro de 2008 (*)
«Sexta Directiva IVA – Artigos 11.°, A, n.° 1, alínea a), e 13.°, B, alíneas a) e d) – Locação financeira – Fraccionamento artificial da prestação em vários elementos – Efeitos – Redução da matéria colectável – Isenções – Prática abusiva – Condições»
No processo C-425/06,
que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pela Corte suprema di cassazione (Itália), por decisão de 10 de Março de 2006, entrado no Tribunal de Justiça em 16 de Outubro de 2006, no processo
Ministero dell’Economia e delle Finanze, anteriormente Ministero delle Finanze,
contra
Part Service Srl, sociedade em liquidação, anteriormente Italservice Srl,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Segunda Secção),
composto por: C. W. A. Timmermans, presidente de secção, L. Bay Larsen (relator), K. Schiemann, J. Makarczyk e C. Toader, juízes,
advogado-geral: M. Poiares Maduro,
secretário: L. Hewlett, administradora principal,
vistos os autos e após a audiência de 25 de Outubro de 2007,
vistas as observações apresentadas:
– em representação da Part Service Srl, por S. Taverna, avvocato,
– em representação do Governo italiano por I. M. Braguglia, na qualidade de agente, assistido por G. Lancia e S. Fiorentino, avvocati dello Stato,
– em representação do Governo grego, por M. Apessos, M. Papida e I. Pouli, na qualidade de agentes,
– em representação da Irlanda, por D. O’Hagan, na qualidade de agente, assistido por D. McDonald, SC, B. Conway, BL, e G. Clohessy, BL,
– em representação do Governo português, por L. Fernandes e C. Lança, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo do Reino Unido, por T. Harris, na qualidade de agente, assistida por R. Hill, barrister,
– em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por A. Aresu e M. Afonso, na qualidade de agentes,
vista a decisão tomada, ouvido o advogado-geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação da Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54; a seguir «Sexta Directiva»).
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio entre o Ministero dell’Economia e delle Finanze (Ministério da Economia e Finanças) e a Part Service Srl (a seguir «Part Service»), anteriormente Italservice Srl (a seguir «Italservice»), a propósito de uma liquidação adicional do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA») notificada, no âmbito do exercício de 1987, relativamente a operações de locação financeira (leasing) tendo por objecto, na sua maioria, veículos automóveis.
Quadro jurídico
Regulamentação comunitária
3 O artigo 11.°, A, n.° 1, da Sexta Directiva, relativo à matéria colectável do IVA, dispõe:
«A matéria colectável é constituída:
a) No caso de entregas de bens e de prestações de serviços que não sejam as referidas nas alíneas b), c) e d), por tudo o que constitui a contrapartida que o fornecedor ou o prestador recebeu ou deve receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções directamente relacionadas com o preço de tais operações;
[…]»
4 O artigo 13.°, B, da Sexta Directiva prevê a isenção de diferentes operações nos seguintes termos:
«Sem prejuízo de outras disposições comunitárias, os Estados-Membros isentarão, nas condições por eles fixadas com o fim de assegurar a aplicação correcta e simples das isenções a seguir enunciadas e de evitar qualquer possível fraude, evasão e abuso:
a) As operações de seguro e de resseguro, incluindo as prestações de serviços relacionadas com essas operações efectuadas por corretores e intermediários de seguros;
[…]
d) As seguintes operações:
1. A concessão e a negociação de créditos, e bem assim a gestão de créditos efectuada por parte de quem os concedeu;
2. A negociação e a aceitação de compromissos, fianças e outras garantias, e bem assim a gestão de garantias de crédito efectuada por parte de quem concedeu esses créditos;
3. As operações, incluindo a negociação relativa a depósitos de fundos, contas-correntes, pagamentos, transferências, créditos, cheques e outros efeitos de comércio, com excepção da cobrança de dívidas;
[…]»
Legislação nacional
5 O artigo 3.° do Decreto n.° 633 do Presidente da República, de 26 de Outubro de 1972, que institui e regulamenta o imposto sobre o valor acrescentado (suplemento ordinário n.° 1 à GURI n.° 292, de 11 de Novembro de 1972, p. 2), alterado por diversas vezes (a seguir «DPR n.° 633/72»), define como se segue as prestações de serviços:
«Constituem prestações de serviços as prestações efectuadas mediante contrapartida no âmbito de contratos de empreitada de mão-de-obra, de empreitada, de transporte, de mandato, de expedição, de agência, de mediação, de depósito e, em geral, no quadro de obrigações de fazer ou de não fazer, ou de permitir, qualquer que seja a sua fonte.
Constituem igualmente prestações de serviços, quando efectuadas mediante contrapartida:
1) a locação de bens, o arrendamento, o leasing e prestações similares;
[…]»
6 O artigo 10.° do DPR n.° 633/72 isenta do IVA diferentes operações nos seguintes termos:
«Estão isentas de imposto:
1) as prestações de serviços relativas à concessão e à negociação de créditos, à gestão de créditos efectuada por parte de quem os concedeu e a operações de financiamento; a negociação e a aceitação de compromissos, fianças e outras garantias, e bem assim a gestão de garantias de crédito efectuada por parte de quem concedeu esses créditos; os prazos de pagamento, as operações, incluindo a negociação, relativas a depósitos de fundos, contas-correntes, pagamentos, transferências, créditos, cheques e outros efeitos de comércio, com excepção da cobrança de dívidas; a gestão de fundos comuns de investimento e de fundos de pensão visada no decreto legislativo n.° 124 de 21 de Abril de 1993, os prazos e gestões similares e os serviços financeiros e postais (banco – correio);
2) as operações de seguro e de resseguro, as operações de renda vitalícia;
[…]
9) as prestações de mandato, de mediação e de intermediação relativas às operações visadas nos n.os 1 a 7, bem como as prestações relativas a ouro e divisas estrangeiras, incluindo os depósitos, também em conta-corrente, efectuadas em relação a operações executadas pelo Banco de Itália e pelo Gabinete de câmbios italiano, na acepção do artigo 4.°, quinto parágrafo, do presente decreto.»
7 O artigo 13.°, primeiro parágrafo, do DPR n.° 633/72 define nos termos que se seguem a matéria colectável do IVA:
«A matéria colectável das entregas de bens e das prestações de serviços é constituída pelo montante total das contrapartidas obtidas ou a obter pelo fornecedor ou pelo prestador nos termos das condições contratuais, incluindo as despesas e encargos inerentes à execução e as dívidas ou outras obrigações para com terceiros a cargo do cessionário ou do comitente, acrescido dos complementos directamente ligados às contrapartidas devidas por outras pessoas.»
Litígio no processo principal e questões prejudiciais
8 Durante o ano de 1987, a Italservice e a sociedade de locação financeira IFIM Leasing Sas (a seguir «IFIM»), sociedades pertencentes ao mesmo grupo financeiro, participaram conjuntamente em operações de locação financeira tendo principalmente como objecto veículos automóveis.
9 Estas operações eram realizadas nas condições a seguir descritas.
10 A IFIM concluía com um utilizador um contrato tendo por objecto o uso de um veículo automóvel e uma opção de compra do mesmo, mediante o pagamento de rendas, a constituição de um depósito de garantia correspondente ao custo do bem não coberto pelas rendas e a prestação de uma caução ilimitada.
11 A Italservice concluía com esse utilizador um contrato em virtude do qual assegurava o bem contra riscos diferentes da responsabilidade civil e garantia, mediante o financiamento do depósito de garantia e a prestação da caução ilimitada, o respeito dos compromissos assumidos pelo utilizador face à IFIM. Em contrapartida, o utilizador pagava antecipadamente à Italservice um montante que implicava uma diminuição do total das rendas estipuladas entre o mesmo e a IFIM, até reduzir esse total, na maioria dos casos, a um montante pouco superior ao custo do bem, além de uma comissão de 1% a pagar a um consultor.
12 O utilizador encarregava a Italservice de pagar o montante financiado à IFIM, por sua conta, a título do depósito de garantia previsto pelo contrato de uso.
13 A Italservice confiava à IFIM a execução do contrato com o utilizador.
14 A IFIM recebia da Italservice um complemento de retribuição na qualidade de intermediária e, em caso de incumprimento por parte do utilizador, um montante equivalente ao prometido a este pela Italservice, a título de estorno, em caso de cumprimento da sua obrigação de pagamento das rendas.
15 Em aplicação do artigo 3.° do DPR n.° 633/72, a IFIM aplicava o IVA às rendas pagas pelo utilizador.
16 Por outro lado, com base no artigo 10.° do DPR n.° 633/72, as contrapartidas pagas pelo utilizador à Italservice e por esta à IFIM eram facturadas com isenção de IVA.
17 Na sequência de inspecções efectuadas à Italservice, a Administração Fiscal considerou que os diversos compromissos assumidos pelas partes interessadas, apesar de contidos em contratos distintos, constituíam no seu conjunto um contrato único concluído entre três partes. Em seu entender, a contrapartida paga pelo utilizador pela locação financeira tinha sido artificialmente fraccionada para reduzir a matéria colectável, sendo o papel de locador partilhado pela Italservice e pela IFIM.
18 Por conseguinte, a Administração Fiscal notificou à Italservice, em 1 de Setembro de 1992, um aviso de liquidação adicional de IVA correspondente ao ano de 1987 no montante de 3 169 519 000 ITL, acrescido de juros e de multas no montante de 9 496 469 000 ITL.
19 A Italservice impugnou essa liquidação adicional na Commissione tributaria di primo grado di Modena. Alegou que não se tratava de um contrato único, mas de uma pluralidade de contratos conexos, não tendo essa forma sido adoptada para fins de evasão fiscal, mas por razões económicas válidas relacionadas com o marketing (lançamento de um novo produto financeiro com prémios reduzidos), com a organização (separação das funções de gestão de risco: seguros, cauções e financiamentos confiados à Italservice; gestão do parque automóvel confiada às sociedades operacionais) e com a garantia (financiamento que funciona como depósito de garantia para o cumprimento das obrigações do utilizador).
20 A Commissione tributaria di primo grado di Modena deu provimento a esse recurso.
21 A Administração Fiscal recorreu desta decisão para a Commissione tributaria di secondo grado di Modena, que negou provimento ao seu recurso.
22 A mesma Administração recorreu então para a Corte d’appello di Bologna, que negou provimento ao recurso por acórdão de 13 de Novembro de 1998 – 12 de Janeiro de 1999.
23 A Administração Fiscal interpôs recurso de cassação desse acórdão para a Corte suprema di cassazione.
24 Este órgão jurisdicional considera que a decisão a proferir pressupõe que seja decidida a questão de saber se os comportamentos das partes em causa, tendo em conta as suas relações recíprocas, podem ser considerados um abuso de direito ou formas jurídicas segundo a definição dada pela jurisprudência comunitária, em particular pelo acórdão do Tribunal de Justiça de 21 de Fevereiro de 2006, Halifax e o. (C-255/02, Colect., p. I-1609).
25 Salienta que o fraccionamento dos contratos tem por efeito reduzir a matéria colectável do IVA a um montante inferior ao que resulta de um contrato de locação financeira comum, visto que apenas está sujeita a imposto a cessão do uso do bem, cujo custo corresponde na prática ao preço de compra desse bem.
26 Cumpre, pois, determinar se, para efeitos de cobrança do IVA, há que considerar os contratos como um conjunto único, à luz do objectivo económico prosseguido, ou se cada contrato conserva o seu carácter autónomo e, consequentemente, o regime fiscal que lhe é próprio.
27 Para resolver esta questão, há que perguntar se pode constituir um abuso a circunstância de uma operação de financiamento, considerada na prática económica e na jurisprudência nacional como uma componente essencial de um contrato de locação financeira, ser regulada por um contrato separado do contrato que tem por objecto a cessão do uso do bem.
28 O órgão jurisdicional de reenvio considera que são necessários esclarecimentos neste ponto, em particular, quanto ao alcance das condições impostas pelo acórdão Halifax e o., já referido, para se concluir pela existência de um abuso.
29 Salienta que, no n.° 86 desse acórdão, o Tribunal de Justiça exigiu, para além da condição de que a operação em causa tenha por resultado uma vantagem fiscal contrária ao objectivo das disposições pertinentes da Sexta Directiva, que essa operação tenha «por finalidade essencial a obtenção de uma vantagem fiscal».
30 Observa que, no n.° 60 e no dispositivo do mesmo acórdão, o Tribunal de Justiça se referiu, além disso, a operações «efectuadas com o único objectivo de obter uma vantagem fiscal, sem outro objectivo económico».
31 Questiona-se, consequentemente, se o limite do abuso do direito opera quando as razões económicas diferentes da obtenção de uma vantagem fiscal são absolutamente marginais ou sem importância, e não um explicação alternativa possível.
32 Neste contexto, a Corte suprema di cassazione decidiu suspender a instância e colocar ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) O conceito de abuso do direito, definido no acórdão [Halifax e o., já referido,] como operação essencialmente realizada com o objectivo de obter uma vantagem fiscal, é coincidente, mais amplo ou mais restritivo que o de operação que tem por únicas razões económicas obter uma vantagem fiscal?
2) Para efeitos de aplicação do IVA, pode ser considerada abuso do direito (ou de formas jurídicas), com a consequente falta de cobrança de recursos próprios da Comunidade resultantes do imposto sobre o valor acrescentado, a celebração separada de contratos de locação financeira (leasing), de financiamento, de seguro e de intermediação, com a consequência de só a retribuição [pela cessão] do [uso] do bem ficar sujeita a IVA, quando a celebração de um contrato único de leasing, segundo a prática e a interpretação da jurisprudência nacionais, incluiria também o financiamento e implicaria, portanto, a sujeição a IVA de toda a retribuição?»
Quanto às questões prejudiciais
Quanto à admissibilidade
33 A Part Service sustenta que o presente pedido de decisão prejudicial é inadmissível. Em seu entender, as questões colocadas não têm qualquer relação com a realidade ou o objecto do litígio no processo principal. O problema apresentado é de natureza puramente hipotética e não tem relação com disposições e/ou princípios comunitários.
34 A este respeito, importa recordar que, segundo jurisprudência assente, uma recusa por parte do Tribunal de Justiça de se pronunciar sobre uma questão prejudicial submetida por um órgão jurisdicional nacional só é possível quando for manifesto que a interpretação do direito comunitário solicitada não tem qualquer relação com a realidade ou com o objecto do litígio no processo principal, quando o problema for de natureza hipotética ou quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para responder utilmente às questões que lhe são submetidas (v., designadamente, acórdãos de 19 de Fevereiro de 2002, Arduino, C-35/99, Colect., p. I-1529, n.° 25, e de 11 de Julho de 2006, Chacón Navas, C-13/05, Colect., p. I-6467, n.° 33).
35 Todavia, no caso vertente nenhuma dessas condições está preenchida.
36 Com efeito, na decisão de reenvio, o órgão jurisdicional nacional, chamado a decidir um litígio em matéria de IVA, descreve de forma detalhada o quadro factual e jurídico do litígio no processo principal.
37 Em seguida, questiona o Tribunal de Justiça sobre o direito comunitário aplicável ao IVA, em particular, sobre o conceito comunitário de «prática abusiva», por forma a estar em condições de apreciar se a operação que é objecto do litígio no processo principal deve ser considerada uma prática dessa natureza e, consequentemente, estar sujeita a IVA.
38 A interpretação solicitada do direito comunitário apresenta, assim, uma relação com a realidade e o objecto do litígio no processo principal, sem ser hipotética.
39 Consequentemente, as questões colocadas são admissíveis.
Quanto à primeira questão
40 Através da sua primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Sexta Directiva deve ser interpretada no sentido de que se pode considerar que existe uma prática abusiva quando o objectivo de obter uma vantagem fiscal constituir o fim essencial da operação ou das operações em causa, ou se só se pode considerar que tal existe se a obtenção dessa vantagem fiscal constituir o único objectivo prosseguido, com exclusão de outros objectivos económicos.
41 Importa salientar que, no âmbito do litígio no processo principal, se questionam isenções de IVA e que, no que respeita precisamente a essas isenções, o artigo 13.° da Sexta Directiva prevê que os Estados-Membros devem «evitar qualquer possível fraude, evasão e abuso».
42 Nos n.os 74 e 75 do acórdão Halifax e o., já referido, o Tribunal de Justiça decidiu em primeiro lugar, no âmbito da interpretação da Sexta Directiva, que se pode considerar que existe uma prática abusiva quando:
– as operações em causa, apesar da aplicação formal das condições previstas nas disposições pertinentes da Sexta Directiva e da legislação nacional que transponha essa directiva, tenham por resultado a obtenção de uma vantagem fiscal cuja concessão seja contrária ao objectivo prosseguido por essas disposições;
– segundo um conjunto de elementos objectivos, a finalidade essencial das operações em causa seja a obtenção de uma vantagem fiscal.
43 Quando, em seguida, dirigiu ao órgão jurisdicional de reenvio indicações destinadas a orientar a sua interpretação no processo principal, o Tribunal de Justiça referiu-se novamente, no n.° 81 do acórdão, a operações cujo objectivo essencial consiste na obtenção de uma vantagem fiscal.
44 Por conseguinte, quando observou, no n.° 82 do mesmo acórdão, que, em todo o caso, as operações em causa no processo principal tiveram o único objectivo de obter uma vantagem fiscal, o Tribunal de Justiça não elevou essa circunstância à categoria de condição da existência de uma prática abusiva, tendo simplesmente sublinhado que, no litígio submetido ao órgão jurisdicional de reenvio, o limiar mínimo que permite qualificar uma prática de abusiva tinha sido ultrapassado.
45 Há, pois, que responder à primeira questão colocada que a Sexta Directiva deve ser interpretada no sentido de que se pode considerar que existe uma prática abusiva quando o objectivo de obter uma vantagem fiscal constitui o fim essencial da operação ou das operações em causa.
Quanto à segunda questão
46 Através da sua segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se, para efeitos da aplicação do IVA, se pode considerar que operações como as que estão em causa no processo principal constituem uma prática abusiva à luz da Sexta Directiva.
47 A título liminar, importa recordar que a opção, por parte de um empresário, entre operações isentas e operações tributáveis se pode basear num conjunto de elementos, designadamente em considerações de natureza fiscal relativas ao regime objectivo do IVA. Quando o sujeito passivo pode optar entre duas operações, a Sexta Directiva não o obriga a escolher a que implica o pagamento do montante de IVA mais elevado. Ao contrário, o sujeito passivo tem o direito de escolher a estrutura da sua actividade de forma a limitar a sua dívida fiscal (acórdão Halifax e o., já referido, n.° 73).
48 Contudo, quando uma operação compreende várias prestações, coloca-se a questão de saber se deve ser considerada como uma operação única ou como várias prestações distintas e independentes que devem ser apreciadas separadamente.
49 Esta questão reveste uma importância particular, na perspectiva do IVA, designadamente para a aplicação da taxa de tributação ou das disposições relativas à isenção previstas pela Sexta Directiva (v. acórdãos de 25 de Fevereiro de 1999, CPP, C-349/96, Colect., p. I-973, n.° 27, e de 27 de Outubro de 2005, Levob Verzekeringen e OV Bank, C-41/04, Colect., p. I-9433, n.° 18).
50 A este respeito, decorre do artigo 2.° da Sexta Directiva que cada operação deve normalmente ser considerada distinta e independente (v. acórdãos, já referidos, CPP, n.° 29, e Levob Verzekeringen e OV Bank, n.° 20).
51 Todavia, em determinadas circunstâncias, várias prestações formalmente distintas, susceptíveis de serem realizadas separadamente e de dar assim lugar, em cada caso, a tributação ou a isenção, devem ser consideradas como uma operação única quando não sejam independentes.
52 Tal sucede, por exemplo, quando, no termo de uma análise ainda que meramente objectiva, se verifica que uma ou várias prestações constituem uma prestação principal e que a ou as outras prestações constituem uma ou várias prestações acessórias que partilham do destino fiscal da prestação principal (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, CPP, n.° 30, e Levob Verzekeringen e OV Bank, n.° 21). Em particular, uma prestação deve ser considerada acessória em relação a uma prestação principal quando não constitua para a clientela um fim em si, mas um meio de beneficiar nas melhores condições do serviço principal do prestador (acórdão CPP, já referido, n.° 30, e as circunstâncias do processo principal que deu lugar a este acórdão).
53 Pode igualmente considerar-se que se está em presença de uma prestação única quando dois ou vários elementos ou actos fornecidos pelo sujeito passivo estão tão estreitamente ligados que formam, objectivamente, uma única prestação económica indissociável cuja decomposição teria natureza artificial (v., neste sentido, acórdão Levob Verzekeringen e OV Bank, já referido, n.° 22).
54 É ao órgão jurisdicional nacional que compete apreciar se os elementos que lhe são submetidos caracterizam a existência de uma operação única, independentemente da sua articulação contratual.
55 Neste contexto, pode ser levado a alargar a sua análise mediante a procura de indícios que revelem a existência de uma prática abusiva, a cujo conceito respeita a questão prejudicial.
56 Sendo caso disso, o Tribunal de Justiça, decidindo a título prejudicial, pode fornecer dados que permitam guiá-lo na sua interpretação (acórdão Halifax e o., já referido, n.° 77).
57 No presente processo, cumpre salientar que as operações em causa no processo principal, conforme foram descritas pelo órgão jurisdicional de reenvio, se caracterizam pelos seguintes elementos:
– as duas sociedades que participam na operação de locação financeira fazem parte do mesmo grupo;
– a própria prestação da sociedade de locação financeira (IFIM) é objecto de um fraccionamento, estando o elemento característico de financiamento confiado a outra sociedade (Italservice) para ser decomposto em prestações de crédito, de seguro e de intermediação;
– a prestação da sociedade de locação financeira fica, assim, reduzida a uma prestação de locação do veículo;
– as rendas pagas pelo locatário elevam-se no total a um montante pouco superior ao custo de aquisição do bem;
– esta prestação, considerada isoladamente, parece, assim, desprovida de rentabilidade económica, de modo que a viabilidade da empresa não pode ser assegurada unicamente através dos contratos celebrados com os locatários;
– a sociedade de locação financeira só recebe a contrapartida da operação de locação financeira graças ao cúmulo das rendas pagas pelo locatário e dos montantes pagos pela outra sociedade do mesmo grupo.
58 A fim de apreciar se estas operações podem ser consideradas constitutivas de uma prática abusiva, o órgão jurisdicional nacional deve verificar, antes de mais, se o resultado visado é uma vantagem fiscal cuja concessão seria contrária a um ou a vários objectivos da Sexta Directiva e, seguidamente, se o mesmo constituiu o objectivo essencial da solução contratual adoptada (v. n.° 42 do presente acórdão).
59 No que respeita ao primeiro critério, o referido órgão jurisdicional pode ter em conta que o resultado pretendido é a obtenção de uma vantagem fiscal decorrente da isenção, em virtude do artigo 13.°, B, alíneas a) e d), da Sexta Directiva, das prestações confiadas à sociedade co-contratante da sociedade de locação financeira.
60 Tal resultado afigura-se contrário ao objectivo do artigo 11.°, A, n.° 1, da Sexta Directiva, ou seja, a tributação de tudo o que constitua a contrapartida recebida ou a receber do locatário.
61 Com efeito, uma vez que a locação de veículos mediante contratos de locação financeira constitui uma prestação de serviços na acepção dos artigos 6.° e 9.° da Sexta Directiva (v., designadamente, acórdãos de 21 de Março de 2002, Cura Anlagen, C-451/99, Colect., p. I-3193, n.° 19, e de 11 de Setembro de 2003, Cookies World, C-155/01, Colect., p. I-8785, n.os 44 e 45), tal operação está normalmente sujeita a IVA, cuja matéria colectável deve ser determinada em conformidade com o artigo 11.°, A, n.° 1, da Sexta Directiva.
62 No que respeita ao segundo critério, o órgão jurisdicional nacional, na apreciação que lhe compete efectuar, pode ter em consideração o carácter puramente artificial das operações, bem como as relações de natureza jurídica, económica e/ou pessoal entre os operadores em causa (acórdão Halifax e o., já referido, n.° 81), uma vez que esses elementos são susceptíveis de demonstrar que a obtenção da vantagem fiscal constitui o objectivo essencial prosseguido, sem prejuízo da eventual existência, para além deste, de objectivos económicos inspirados em considerações, por exemplo, de marketing, de organização e de garantia.
63 Há, pois, que responder à segunda questão colocada que compete ao órgão jurisdicional de reenvio determinar, à luz dos elementos de interpretação fornecidos pelo presente acórdão, se, para efeitos da aplicação do IVA, se pode considerar que operações como as que estão em causa no processo principal constituem uma prática abusiva à luz da Sexta Directiva.
Quanto às despesas
64 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Segunda Secção) declara:
1) A Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme, deve ser interpretada no sentido de que se pode considerar que existe uma prática abusiva quando o objectivo de obter uma vantagem fiscal constitui o fim essencial da operação ou das operações em causa.
2) Compete ao órgão jurisdicional de reenvio determinar, à luz dos elementos de interpretação fornecidos pelo presente acórdão, se, para efeitos da aplicação do imposto sobre o valor acrescentado, se pode considerar que operações como as que estão em causa no processo principal constituem uma prática abusiva à luz da Sexta Directiva 77/388.
Assinaturas
* Língua do processo: italiano.