Processo C-128/08
Jacques Damseaux
contra
Estado belga
(pedido de decisão prejudicial apresentado pelo tribunal de première instance de Liège)
«Livre circulação de capitais – Tributação de rendimentos mobiliários – Convenção para evitar a dupla tributação – Obrigação dos Estados-Membros por força do artigo 293.° CE»
Sumário do acórdão
1. Questões prejudiciais – Competência do Tribunal de Justiça – Limites
(Artigo 234.° CE)
2. Livre circulação de capitais – Restrições – Legislação fiscal – Tributação dos dividendos
(Artigo 56.° CE)
1. O Tribunal de Justiça não é competente, no âmbito do artigo 234.° CE, para se pronunciar sobre a eventual violação, por um Estado-Membro contratante, das disposições de Convenções bilaterais concluídas pelos Estados-Membros para eliminar ou atenuar os efeitos negativos decorrentes da coexistência de sistemas fiscais nacionais. O Tribunal de Justiça também não pode examinar a relação entre uma medida nacional e as disposições de uma Convenção para evitar a dupla tributação, uma vez que esta questão não é relativa à interpretação do direito comunitário.
(cf. n.° 22)
2. Na medida em que o direito comunitário, no seu estado actual, não prescreve critérios gerais para a repartição das competências entre os Estados-Membros no respeitante à eliminação da dupla tributação no interior da Comunidade Europeia, o artigo 56.° CE não se opõe a uma Convenção fiscal bilateral em virtude da qual os dividendos distribuídos por uma sociedade com sede num Estado-Membro a um accionista residente noutro Estado-Membro podem ser tributados nos dois Estados-Membros, e que não prevê que se estabeleça, para o Estado-Membro de residência do accionista, uma obrigação incondicional de evitar a dupla tributação jurídica que daí resulta.
Com efeito, os dividendos distribuídos por uma sociedade com sede num Estado-Membro a um accionista residente noutro Estado-Membro podem ser objecto de dupla tributação jurídica sempre que os dois Estados-Membros decidam exercer a sua competência fiscal e sujeitar os referidos dividendos a tributação na esfera do accionista. Os inconvenientes que podem resultar do exercício paralelo das competências fiscais dos diferentes Estados-Membros, desde que esse exercício não seja discriminatório, não constituem restrições proibidas pelo Tratado
A este propósito, numa situação em que tanto o Estado-Membro da fonte dos dividendos como o Estado-Membro de residência do accionista podem tributar os referidos dividendos, considerar que compete necessariamente ao Estado-Membro de residência evitar a referida dupla tributação equivaleria a conferir prioridade ao Estado-Membro da fonte na tributação desse tipo de rendimentos. Embora essa repartição de competências estivesse conforme, nomeadamente, com a prática jurídica internacional, nos termos em que se reflecte no modelo de Convenção fiscal relativa ao rendimento e património elaborado pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económicos (OCDE), é ponto assente que o direito comunitário, no seu estado actual e numa tal situação, não prescreve critérios gerais para a repartição das competências entre os Estados-Membros no respeitante à eliminação da dupla tributação no interior da Comunidade. Por consequência, embora um Estado-Membro não possa invocar uma Convenção bilateral a fim de escapar às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado, o facto de tanto o Estado-Membro da fonte dos dividendos como o Estado-Membro de residência do accionista poderem tributar os referidos dividendos não significa que o Estado-Membro de residência esteja obrigado, por força do direito comunitário, a evitar os inconvenientes que possam resultar do exercício da competência assim repartida pelos dois Estados-Membros.
(cf. n.os 26-27, 32-35 e disp.)
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)
16 de Julho de 2009 (*)
«Livre circulação de capitais – Tributação de rendimentos mobiliários – Convenção para evitar a dupla tributação – Obrigação dos Estados-Membros por força do artigo 293.° CE»
No processo C-128/08,
que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo tribunal de première instance de Liège (Bélgica), por decisão de 20 de Março de 2008, entrado no Tribunal de Justiça em 28 de Março de 2008, no processo
Jacques Damseaux
contra
État belge,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),
composto por: P. Jann, presidente de secção, M. Ilešič, A. Borg Barthet, E. Levits (relator) e J.-J. Kasel, juízes,
advogado-geral: P. Mengozzi,
secretário: R. Şereş, administradora,
vistos os autos e após a audiência de 5 de Fevereiro de 2009,
vistas as observações apresentadas:
– em representação de J. Damseaux, por E. Traversa, avocat,
– em representação do Governo belga, por J.-C. Halleux, na qualidade de agente,
– em representação do Governo alemão, por M. Lumma e C. Blaschke, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo francês, por G. de Bergues e J.-C. Gracia, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo italiano, por I. Bruni, na qualidade de agente, assistida por P. Gentili, avvocato dello Stato,
– em representação do Governo neerlandês, por M. Noort, C. Wissels e Y. de Vries, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo do Reino Unido, por L. Seeboruth e S. Ford, na qualidade de agentes,
– em representação da Comissão das Comunidades Europeias, por R. Lyal e J.-P. Keppenne, na qualidade de agentes,
vista a decisão tomada, ouvido o advogado-geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação dos artigos 56.° CE e 293.° CE.
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe J. Damseaux à Administração Fiscal belga a respeito da tributação, na Bélgica, de dividendos que este recebeu de uma sociedade com sede em França e relativamente aos quais já tinha sido tributado neste último Estado.
Quadro jurídico
3 A Convenção de 10 de Março de 1964 celebrada entre a Bélgica e a França para evitar a dupla tributação e instituir a cooperação administrativa e jurídica recíproca em matéria de impostos sobre o rendimento, conforme alterada pelo protocolo assinado em Bruxelas, em 8 de Fevereiro de 1999 (a seguir «Convenção franco-belga»), dispõe no artigo 15.°:
«1. Os dividendos com origem num Estado contratante que são pagos a um residente do outro Estado contratante são tributados nesse outro Estado.
2. Esses dividendos podem, no entanto, sem prejuízo das disposições do n.° 3, ser tributados no Estado contratante em que a sociedade que paga os dividendos tem a sua sede, e de acordo com a legislação desse Estado, mas o imposto assim liquidado não pode exceder:
[…]
b) 15% do montante bruto dos dividendos […]
Este parágrafo não abrange a tributação da sociedade relativamente aos lucros que estão na base do pagamento dos dividendos.
[…]
4. Salvo se beneficiar do pagamento previsto no n.° 3, um residente na Bélgica que recebe dividendos de uma sociedade com sede em França pode requerer o reembolso da retenção na fonte relativa a esses dividendos que tenha sido efectuada, se for o caso, pela sociedade distribuidora. A França pode cobrar, sobre o montante das quantias reembolsadas, a retenção na fonte prevista no n.° 2 do presente artigo à taxa aplicável aos dividendos a que correspondem as quantias reembolsadas.
[…]»
4 O artigo 19.°, A, da Convenção franco-belga enuncia:
«A dupla tributação é evitada da seguinte maneira:
A. No que diz respeito à Bélgica:
1. Os rendimentos de valores mobiliários aos quais seja aplicável o regime estabelecido no artigo 15.°, n.os 2 a 4, que suportaram efectivamente a retenção na fonte em França e que são auferidos por sociedades com sede na Bélgica sujeitas ao imposto sobre as sociedades, são, em contrapartida pela retenção na fonte à taxa normal sobre o seu montante líquido após a retenção do imposto francês, isentos do imposto sobre as sociedades e do imposto sobre os dividendos nas condições previstas na legislação belga.
Relativamente aos rendimentos referidos no parágrafo anterior que são auferidos por outros residentes na Bélgica […], que suportaram efectivamente a retenção na fonte em França, o imposto devido na Bélgica sobre o seu montante líquido após a retenção francesa será reduzido, por um lado, da retenção na fonte efectuada à taxa normal e, por outro, da quota fixa a título do imposto estrangeiro que é dedutível nas condições estabelecidas pela legislação belga, não podendo esta quota ser inferior a 15% do referido montante líquido.
No que diz respeito aos dividendos aos quais seja aplicável o regime estabelecido no artigo 15.°, n.os 2 e 3, e que são auferidos por uma pessoa singular residente na Bélgica, esta pode, em vez da dedução da parte fixa do imposto estrangeiro acima referida, obter, relativamente a esses rendimentos, um crédito de imposto à taxa e de acordo com as modalidades previstas pela legislação belga a favor dos dividendos distribuídos por sociedades com sede na Bélgica, desde que o pedido seja feito por escrito o mais tardar no prazo previsto para a apresentação da sua declaração anual.
[…]»
5 O Código dos Impostos sobre o Rendimento (code des impôts sur les revenus), codificado pelo Decreto Real de 10 de Abril de 1992 e aprovado pela Lei de 12 de Junho de 1992 (suplemento ao Moniteur belge de 30 de Julho de 1992, a seguir «CIR 1992»), prevê no artigo 171.°:
«Em derrogação aos artigos 130.° a 168.°, são tributáveis separadamente, salvo se o imposto assim calculado, acrescido do imposto relativo aos outros rendimentos, for superior ao que resultaria da aplicação dos referidos artigos à totalidade dos rendimentos tributáveis:
[…]
2.° bis à taxa de 15%:
[…]
b) os dividendos referidos no artigo 269.°, segundo parágrafo, n.° 2, terceiro e décimo primeiro parágrafos.»
Litígio no processo principal e questões prejudiciais
6 J. Damseaux, residente na Bélgica, recebeu durante os anos de 2005 a 2007 dividendos da sociedade anónima Total, com sede em França, na qual detinha 5 463 acções.
7 Esses dividendos foram inicialmente sujeitos, em França, a uma retenção na fonte de 25%. Nos termos do artigo 15.°, n.° 2, da Convenção franco-belga, J. Damseaux pôde requerer o reembolso de uma parte dessa retenção, de modo que os mencionados dividendos só foram objecto, em França, de uma retenção de 15%.
8 A quantia restante após a referida tributação foi sujeita a uma retenção na fonte de 15% na Bélgica.
9 Considerando que os seus dividendos de origem francesa são tributados de forma mais gravosa do que os dividendos de origem belga e que, tendo aceitado que a República Francesa proceda a uma retenção na fonte, o Reino da Bélgica, na qualidade de Estado-Membro de residência, deveria permitir deduzir o imposto francês da retenção na fonte belga ou renunciar a essa retenção na fonte para suprimir a dupla tributação, J. Damseaux apresentou reclamações contra as liquidações efectuadas pela Administração Fiscal belga relativamente aos dividendos auferidos.
10 Tendo a Administração Fiscal belga indeferido as referidas reclamações com o fundamento de que o artigo 15.° da Convenção franco-belga prevê a tributação de dividendos tanto na França como na Bélgica, J. Damseaux intentou uma acção no tribunal de première instance de Liège.
11 O referido órgão jurisdicional considera que, ainda que as suas situações sejam objectivamente comparáveis, os residentes belgas estão sujeitos a regimes de tributação diferentes consoante recebam dividendos de uma sociedade com sede na Bélgica ou de uma sociedade com sede noutro Estado-Membro. Com efeito, embora os dividendos pagos por uma sociedade estrangeira a um residente belga estejam sujeitos a uma dupla tributação jurídica internacional, os dividendos pagos pelas sociedades belgas a um residente belga são unicamente tributados à taxa de 15%, nos termos do artigo 171.°, 2.° bis, alínea b), do CIR 1992, e não estão sujeitos a dupla tributação.
12 O tribunal de première instance de Liège, que sublinhou que a Convenção franco-belga não foi objecto do pedido de decisão prejudicial no processo que deu origem ao acórdão de 14 de Novembro de 2006, Kerckhaert e Morres (C-513/04, Colect., p. I-10967), indica que a referida Convenção faz parte da legislação fiscal belga e deve, por consequência, ser conforme com o direito comunitário. O referido órgão jurisdicional sublinhou igualmente que o Reino da Bélgica não tomou nenhuma medida para eliminar a dupla tributação dos dividendos em causa.
13 Nestas condições, o tribunal de première instance de Liège decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) O artigo 56.° CE deve ser interpretado no sentido de que proíbe uma restrição, decorrente da [Convenção franco-belga], que mantém uma dupla tributação parcial dos dividendos das acções de sociedades com sede em França e que torna a tributação desses dividendos mais gravosa do que a simples retenção na fonte belga aplicada aos dividendos distribuídos por uma sociedade belga a um accionista residente na Bélgica?
2) O artigo 293.° CE deve ser interpretado no sentido de que [o Reino da] Bélgica deve ser responsabilizado por não ter renegociado com a [República Francesa] uma nova forma de eliminar a dupla tributação dos dividendos de acções de sociedades com sede em França?»
Quanto às questões prejudiciais
Quanto à primeira questão
14 Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta se o artigo 56.° CE se opõe a uma Convenção fiscal bilateral em virtude da qual os dividendos distribuídos por uma sociedade com sede num Estado-Membro a um accionista residente noutro Estado-Membro podem ser tributados nos dois Estados-Membros, sem que o Estado-Membro de residência do accionista evite a dupla tributação daí resultante.
15 No presente caso, nos termos do artigo 15.° da Convenção franco-belga, os dividendos com origem num Estado contratante, que são pagos a um residente do outro Estado contratante, são tributados nesse outro Estado, mas podem estar sujeitos, no Estado contratante onde a sociedade que paga os dividendos tem a sua sede, a um imposto que não pode exceder 15% do montante bruto dos dividendos.
16 Embora os dividendos distribuídos por uma sociedade com sede em França a um accionista residente na Bélgica possam assim ser tributados nos dois Estados-Membros, resulta da Convenção franco-belga, como, de resto, expõe o órgão jurisdicional de reenvio, que esta também contém disposições para evitar a dupla tributação.
17 Com efeito, nos termos do disposto no artigo 19.°, A, n.° 1, segundo parágrafo, da Convenção franco-belga, no que se refere aos dividendos que são auferidos por accionistas residentes na Bélgica e que suportaram a retenção na fonte em França, o imposto devido na Bélgica sobre o seu montante líquido após a retenção francesa é reduzido, por um lado, da retenção na fonte efectuada à taxa normal e, por outro, da quota fixa a título do imposto estrangeiro que é dedutível nas condições estabelecidas pela legislação belga, não podendo esta quota ser inferior a 15% do referido montante líquido. Em conformidade com o disposto no terceiro parágrafo do referido artigo 19.°, A, n.° 1, no que diz respeito aos dividendos previstos no artigo 15.°, n.os 2 e 3, da referida Convenção e que são auferidos por uma pessoa singular residente na Bélgica, esta pode, em vez da dedução da parte fixa do imposto estrangeiro acima referida, obter, relativamente a esses rendimentos, um crédito de imposto à taxa e de acordo com as modalidades previstas pela legislação belga a favor dos dividendos distribuídos por sociedades estabelecidas na Bélgica, desde que o pedido seja feito por escrito o mais tardar no prazo previsto para a apresentação da sua declaração anual.
18 A este respeito, o Governo francês alegou que, na medida em que a Convenção franco-belga tem por objectivo e efeito eliminar a dupla tributação de que são objecto os dividendos pagos por uma sociedade com sede em França a um accionista residente na Bélgica, não há que responder à primeira questão.
19 O demandante no processo principal considera também que a aplicação correcta pelo Reino da Bélgica do artigo 19.°, A, da Convenção franco-belga tem por efeito evitar a dupla tributação dos dividendos franceses recebidos por um accionista residente na Bélgica. Todavia, o Reino da Bélgica não aplica o referido artigo 19.°, A, na medida em que a legislação belga já não estabelece as modalidades para a dedução da quota fixa a título do imposto estrangeiro, o que constitui não só uma violação da Convenção franco-belga mas também uma discriminação proibida pelo artigo 56.° CE.
20 No âmbito do processo iniciado ao abrigo do artigo 234.° CE, não compete ao Tribunal de Justiça interpretar o artigo 19.°, A, da Convenção franco-belga e determinar as obrigações que dele decorrem, sendo tal interpretação da competência dos órgãos jurisdicionais nacionais.
21 Se, no âmbito dessa interpretação, o referido órgão jurisdicional nacional considerar que o artigo 19.°, A, da Convenção franco-belga inclui a obrigação de o Reino da Bélgica evitar a dupla tributação através da dedução da quota fixa a título do imposto estrangeiro ou de um crédito de imposto, competirá também a esse órgão jurisdicional retirar, em conformidade com o seu direito nacional, as consequências decorrentes da não aplicação do referido artigo 19.°, A.
22 Com efeito, resulta da jurisprudência que o Tribunal de Justiça não é competente, no âmbito do artigo 234.° CE, para se pronunciar sobre a eventual violação, por um Estado-Membro contratante, das disposições de Convenções bilaterais concluídas pelos Estados-Membros para eliminar ou atenuar os efeitos negativos decorrentes da coexistência de sistemas fiscais nacionais (v., neste sentido, acórdão de 6 de Dezembro de 2007, Columbus Container Services, C-298/05, Colect., p. I-10451, n.° 46). O Tribunal de Justiça também não pode examinar a relação entre uma medida nacional e as disposições de uma Convenção para evitar a dupla tributação, como a Convenção fiscal bilateral em causa no processo principal, uma vez que esta questão não é relativa à interpretação do direito comunitário (v., neste sentido, acórdãos de 14 de Dezembro de 2000, AMID, C-141/99, Colect., p. I-11619, n.° 18, e acórdão Columbus Container Services, já referido, n.° 47).
23 Decorre, porém, da formulação da primeira questão que o órgão jurisdicional de reenvio se baseia na presunção de que a Convenção franco-belga permite que se mantenha a dupla tributação jurídica dos dividendos distribuídos por uma sociedade com sede em França a um accionista residente na Bélgica. Por conseguinte, importa compreender a primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio no sentido de que pretende saber se o artigo 56.° CE se opõe a uma Convenção fiscal bilateral, como a que está em causa no processo principal, em virtude da qual os dividendos distribuídos por uma sociedade com sede num Estado-Membro a um accionista residente noutro Estado-Membro podem ser tributados nos dois Estados-Membros, e que não prevê que se estabeleça, para o Estado-Membro de residência do accionista, uma obrigação incondicional de evitar a dupla tributação que daí resulta.
24 A este respeito, importa lembrar que, embora a fiscalidade directa seja da competência dos Estados-Membros, estes últimos devem contudo exercer essa competência no respeito do direito comunitário (v., designadamente, acórdãos de 13 de Dezembro de 2005, Marks & Spencer, C-446/03, Colect., p. I-10837, n.° 29; de 12 de Setembro de 2006, Cadbury Schweppes e Cadbury Schweppes Overseas, C-196/04, Colect., p. I-7995, n.° 40; de 12 de Dezembro de 2006, Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, C-374/04, Colect., p. I-11673, n.° 36; e de 8 de Novembro de 2007, Amurta, C-379/05, Colect., p. I-9569, n.° 16).
25 Compete nomeadamente a cada Estado-Membro organizar, com observância do direito comunitário, o seu sistema de tributação de lucros distribuídos e definir, nesse quadro, a matéria colectável e a taxa de tributação aplicáveis ao accionista beneficiário (v., designadamente, acórdãos Test Claimants in Class IV of the ACT Group Litigation, já referido, n.° 50; de 12 de Dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C-446/04, Colect., p. I-11753, n.° 47; e de 20 de Maio de 2008, Orange European Smallcap Fund, C-194/06, Colect., p. I-3747, n.° 30).
26 Daqui decorre, por um lado, que os dividendos distribuídos por uma sociedade com sede num Estado-Membro a um accionista residente noutro Estado-Membro podem ser objecto de dupla tributação jurídica sempre que os dois Estados-Membros decidam exercer a sua competência fiscal e sujeitar os referidos dividendos a tributação na esfera do accionista.
27 Por outro lado, o Tribunal de Justiça já declarou que os inconvenientes que podem resultar do exercício paralelo das competências fiscais dos diferentes Estados-Membros, desde que esse exercício não seja discriminatório, não constituem restrições proibidas pelo Tratado CE (v., neste sentido, acórdãos, já referidos, Kerckhaert e Morres, n.os 19, 20 e 24, e Orange European Smallcap Fund, n.os 41, 42 e 47).
28 Embora a eliminação da dupla tributação no interior da Comunidade Europeia figure entre os objectivos do Tratado, há, no entanto, que observar que, até hoje, com excepção da Convenção de 23 de Julho de 1990, relativa à eliminação da dupla tributação em caso de correcção de lucros entre empresas associadas (JO L 225, p. 10), os Estados-Membros não celebraram, nos termos do artigo 293.° CE, qualquer Convenção multilateral para esse efeito (v. acórdão de 12 de Maio de 1998, Gilly, C-336/96, Colect., p. I-2793, n.° 23).
29 De igual modo, com excepção da Directiva 90/435/CEE do Conselho, de 23 de Julho de 1990, relativa ao regime fiscal comum aplicável às sociedades-mãe e sociedades afiliadas de Estados-Membros diferentes (JO L 225, p. 6), e da Directiva 2003/48/CE do Conselho, de 3 de Junho de 2003, relativa à tributação dos rendimentos da poupança sob a forma de juros (JO L 157, p. 38), não foi adoptada, até hoje, no quadro do direito comunitário, nenhuma medida de unificação ou de harmonização visando eliminar as situações de dupla tributação (v., designadamente, acórdão Orange European Smallcap Fund, já referido, n.° 32).
30 Na falta de medidas de unificação ou de harmonização comunitária, os Estados-Membros continuam a ser competentes para determinar, por via convencional ou unilateral, os critérios de repartição do seu poder tributário de modo a, nomeadamente, eliminarem a dupla tributação (acórdãos Gilly, já referido, n.os 24 e 30; de 21 de Setembro de 1999, Saint-Gobain ZN, C-307/97, Colect., p. I-6161, n.° 57; Amurta, já referido, n.° 17; e Orange European Smallcap Fund, já referido, n.° 32). Compete-lhes tomar as medidas necessárias para evitar situações de dupla tributação, utilizando, nomeadamente, os critérios de repartição seguidos na prática fiscal internacional (v. acórdão Kerckhaert e Morres, já referido, n.° 23).
31 Como foi indicado no n.° 15 do presente acórdão, no caso vertente, em conformidade com a repartição das competências fiscais acordada pela República Francesa e pelo Reino da Bélgica, os dividendos distribuídos por uma sociedade com sede em França a um residente belga podem ser tributados nos dois Estados-Membros.
32 Numa situação em que tanto o Estado-Membro da fonte dos dividendos como o Estado-Membro de residência do accionista podem tributar os referidos dividendos, considerar que compete necessariamente ao Estado-Membro de residência evitar a referida dupla tributação equivaleria a conferir prioridade ao Estado-Membro da fonte na tributação desse tipo de rendimentos.
33 Embora essa repartição de competências estivesse conforme, nomeadamente, com a prática jurídica internacional, nos termos em que se reflecte no modelo de Convenção fiscal relativa ao rendimento e património elaborado pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económicos (OCDE), designadamente do seu artigo 23.°-B, é ponto assente que o direito comunitário, no seu estado actual e numa situação como a que está em causa no processo principal, não prescreve critérios gerais para a repartição das competências entre os Estados-Membros no respeitante à eliminação da dupla tributação no interior da Comunidade (v. acórdãos, já referidos, Kerckhaert e Morres, n.° 22, e Columbus Container Services, n.° 45).
34 Por consequência, embora um Estado-Membro não possa invocar uma Convenção bilateral a fim de escapar às obrigações que lhe incumbem por força do Tratado (v. acórdãos de 14 de Dezembro de 2006, Denkavit Internationaal e Denkavit France, C-170/05, Colect., p. I-11949, n.° 53, e Amurta, já referido, n.° 55), o facto de tanto o Estado-Membro da fonte dos dividendos como o Estado-Membro de residência do accionista poderem tributar os referidos dividendos não significa que o Estado-Membro de residência esteja obrigado, por força do direito comunitário, a evitar os inconvenientes que possam resultar do exercício da competência assim repartida pelos dois Estados-Membros.
35 Nestas condições e dado que só a Convenção franco-belga é objecto da primeira questão do órgão jurisdicional de reenvio, há que responder-lhe que, na medida em que direito comunitário, no seu estado actual e numa situação como a que está em causa no processo principal, não prescreve critérios gerais para a repartição das competências entre os Estados-Membros no respeitante à eliminação da dupla tributação no interior da Comunidade, o artigo 56.° CE não se opõe a uma Convenção fiscal bilateral, como a que está em causa no processo principal, em virtude da qual os dividendos distribuídos por uma sociedade com sede num Estado-Membro a um accionista residente noutro Estado-Membro podem ser tributados nos dois Estados-Membros, e que não prevê que se estabeleça, para o Estado-Membro de residência do accionista, uma obrigação incondicional de evitar a dupla tributação jurídica que daí resulta.
Quanto à segunda questão
36 Tendo em consideração a resposta dada à primeira questão, não há que responder à segunda questão.
Quanto às despesas
37 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:
Na medida em que o direito comunitário, no seu estado actual e numa situação como a que está em causa no processo principal, não prescreve critérios gerais para a repartição das competências entre os Estados-Membros no respeitante à eliminação da dupla tributação no interior da Comunidade Europeia, o artigo 56.° CE não se opõe a uma Convenção fiscal bilateral, como a que está em causa no processo principal, em virtude da qual os dividendos distribuídos por uma sociedade com sede num Estado-Membro a um accionista residente noutro Estado-Membro podem ser tributados nos dois Estados-Membros, e que não prevê que se estabeleça, para o Estado-Membro de residência do accionista, uma obrigação incondicional de evitar a dupla tributação jurídica que daí resulta.
Assinaturas
* Língua do processo: francês.