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Processo C-70/09

Alexander Hengartner

e

Rudolf Gasser

contra

Landesregierung Vorarlberg

[pedido de decisão prejudicial apresentado pelo

Verwaltungsgerichtshof (Áustria)]

«Acordo entre a Comunidade Europeia e os seus Estados-Membros, por um lado, e a Confederação Suíça, por outro, sobre a livre circulação de pessoas – Locação de uma coutada – Imposto regional – Conceito de actividade económica – Princípio da igualdade de tratamento»

Sumário do acórdão

1.        Livre prestação de serviços – Serviços – Conceito

2.        Acordos internacionais – Acordo CE-Suíça sobre a livre circulação de pessoas – Livre prestação de serviços

(Acordo CE-Suíça sobre a livre circulação de pessoas, artigos 1.º, 2.º e 15.º e anexos I, II e III)

1.        Quando uma obrigação contratual consista na disponibilização pelas partes, mediante remuneração e sob determinadas condições, de uma circunscrição territorial situada num Estado-Membro para aí praticar caça, o contrato de locação tem por objecto uma prestação de serviços. Reveste, além disso, um carácter transfronteiriço quando os locatários tenham nacionalidade suiça. Tais locatários devem ser considerados destinatários de um serviço, que consiste na cessão, mediante remuneração, do gozo de um direito de caça no referido espaço territorial e limitado no tempo.

(cf. n.os 31 a 33)

2.        As disposições do Acordo entre a Comunidade Europeia e os seus Estados-Membros, por um lado, e a Confederação Suíça, por outro, sobre a livre circulação de pessoas, não se opõem a que um nacional de uma das Partes Contratantes seja sujeito, no território da outra parte, enquanto destinatário de serviços, a um tratamento diferente daquele que é concedido às pessoas que tenham a sua residência principal no referido território, aos cidadãos da União e às pessoas que a estes são equiparadas por força do direito da União, no que se refere à cobrança de um imposto devido por uma prestação de serviços, como é a disponibilização de um direito de caça.

Com efeito, embora o artigo 2.° do Acordo diga respeito ao princípio da não discriminação, este artigo não proíbe, em contrapartida, de forma geral e absoluta, todas as discriminações dos nacionais de uma das Partes Contratantes que residam no território da outra parte, mas apenas as discriminações em razão da nacionalidade e desde que a situação desses nacionais esteja abrangida pelo âmbito de aplicação material das disposições dos Anexos I a III desse Acordo. O Acordo e os seus Anexos não contêm nenhuma norma específica que tenha por objecto fazer com que os destinatários de serviços beneficiem do princípio da não discriminação no âmbito da aplicação de regulamentações fiscais relativas às transacções comerciais que tenham por objecto uma prestação de serviços. Por outro lado, não tendo a Confederação Suíça aderido ao mercado interno da Comunidade que pretende eliminar todos os obstáculos para criar um espaço de liberdade de circulação total análogo ao oferecido por um mercado nacional e que abrange, entre outras, a livre prestação de serviços e a liberdade de estabelecimento, a interpretação dada às disposições do direito da União relativas ao mercado interno não pode ser automaticamente transposta para a interpretação do Acordo, salvo disposições expressas para o efeito previstas no próprio Acordo.

(cf. n.os 39 a 43 e disp.)







ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)

15 de Julho de 2010 (*)

«Acordo entre a Comunidade Europeia e os seus Estados-Membros, por um lado, e a Confederação Suíça, por outro, sobre a livre circulação de pessoas – Locação de uma coutada – Imposto regional – Conceito de actividade económica – Princípio da igualdade de tratamento»

No processo C-70/09,

que tem por objecto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 234.° CE, apresentado pelo Verwaltungsgerichtshof (Áustria), por decisão de 21 de Janeiro de 2009, entrado no Tribunal de Justiça em 17 de Fevereiro de 2009, no processo

Alexander Hengartner,

Rudolf Gasser

contra

Landesregierung Vorarlberg,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),

composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta (relator), G. Arestis, J. Malenovský e T. von Danwitz, juízes,

advogado-geral: N. Jääskinen,

secretário: K. Malacek, administrador,

vistos os autos e após a audiência de 27 de Janeiro de 2010,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação de A. Hengartner e R. Gasser, por A. Wittwer, Rechtsanwalt,

–        em representação do Vorarlberger Landesregierung, por J. Müller, na qualidade de agente,

–        em representação do Governo austríaco, por E. Riedl, E. Pürgy e W. Hämmerle, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por W. Mölls e T. Scharf, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 20 de Maio de 2010,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objecto a interpretação de disposições do Anexo I do Acordo entre a Comunidade Europeia e os seus Estados-Membros, por um lado, e a Confederação Suíça, por outro, sobre a livre circulação de pessoas, assinado no Luxemburgo, em 21 de Junho de 1999 (JO 2002, L 114, p. 6).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe A. Hengartner e R. Gasser, cidadãos suíços, ao Landesregierung Vorarlberg (Governo do Land do Vorarlberg), a respeito da cobrança de um imposto sobre a caça, por o Landesregierung Vorarlberg lhes ter aplicado uma taxa de imposto mais elevada do que aquela a que estão sujeitos, nomeadamente, os cidadãos da União Europeia.

 Quadro jurídico

 Acordo sobre a livre circulação de pessoas

3        A Comunidade Europeia e os seus Estados-Membros, por um lado, e a Confederação Suíça, por outro, assinaram, em 21 de Junho de 1999, sete acordos, entre os quais o Acordo sobre a Livre Circulação de Pessoas (a seguir «Acordo»). Por meio da Decisão 2002/309/CE, Euratom do Conselho e da Comissão, de 4 de Abril de 2002 (JO L 114, p. 1), estes sete acordos foram aprovados em nome da Comunidade, tendo entrado em vigor em 1 de Junho de 2002.

4        Em conformidade com o disposto no seu artigo 1.°, alíneas a) e b), o Acordo tem designadamente por objectivo conceder, a favor dos nacionais dos Estados-Membros da Comunidade Europeia e da Confederação Suíça, um direito de entrada, de residência, de acesso a uma actividade económica assalariada e de estabelecimento enquanto independente, bem como o direito de residir no território das Partes Contratantes, e ainda facilitar a prestação de serviços no território das Partes Contratantes, nomeadamente a prestação de serviços de curta duração.

5        O artigo 2.° do referido Acordo, intitulado «Não discriminação», prevê:

«Os nacionais de uma Parte Contratante que permaneçam legalmente no território de uma outra Parte Contratante não serão discriminados devido à sua nacionalidade, em conformidade com a aplicação das disposições dos Anexos I, II e III do presente Acordo.»

6        O artigo 4.° do Acordo, intitulado «Direito de residência e de acesso a uma actividade económica», enuncia:

«O direito de residência e de acesso a uma actividade económica é garantido sob reserva das disposições do artigo 10.° e de acordo com as disposições do Anexo I.»

7        O artigo 5.° do Acordo contém disposições relativas à prestação de serviços. Em conformidade com o disposto no seu n.° 3, as «pessoas singulares, nacionais de um Estado-Membro da Comunidade Europeia ou da Suíça, que se desloquem ao território de uma das Partes Contratantes apenas na qualidade de destinatários de serviços, gozam do direito de entrada e de residência». O n.° 4 do referido artigo precisa que os direitos abrangidos por este artigo 5.° são garantidos nos termos das disposições dos Anexos I a III do Acordo.

8        Nos termos do artigo 15.° do Acordo, os Anexos e protocolos do Acordo fazem parte integrante dele.

9        O artigo 16.° do Acordo, intitulado «Referência ao direito comunitário», tem a seguinte redacção:

«1.      Para alcançar os objectivos do presente Acordo, as Partes Contratantes adoptarão todas as medidas necessárias para que os direitos e obrigações equivalentes aos contidos nos actos jurídicos da Comunidade Europeia aos quais se faz referência sejam aplicados nas suas relações.

2.      Na medida em que a aplicação do presente Acordo implique conceitos de direito comunitário, ter-se-á em conta a jurisprudência pertinente do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias anterior à data da sua assinatura. A partir desta data, a Suíça será informada da evolução dessa jurisprudência. Com vista a assegurar o bom funcionamento do Acordo, o Comité Misto determinará, a pedido de uma das Partes Contratantes, as implicações dessa jurisprudência.»

10      O artigo 17.° do Anexo I do Acordo proíbe, nos casos previstos no artigo 5.° do Acordo, qualquer restrição a uma prestação de serviços transfronteiriça no território de uma Parte Contratante, que não exceda um período de 90 dias de trabalho efectivo por ano civil, bem como, em determinadas condições, qualquer restrição ao direito de entrada e de residência.

11      O artigo 23.° do Anexo I do Acordo tem a seguinte redacção:

«1.      Os destinatários dos serviços referidos no n.° 3 do artigo 5.° do presente Acordo não necessitam de uma autorização de residência para períodos não superiores a três meses. Para períodos [superiores] a três meses, os destinatários dos serviços receberão uma autorização de residência com uma duração igual à da prestação dos serviços. Durante a sua residência, podem ser excluídos da assistência social.

2.      A autorização de residência é válida para todo o território do Estado que a emitiu.»

 Legislação nacional

12      O § 2 da Lei do Land do Vorarlberg relativa à caça (Vorarlberger Gesetz über das Jagdwesen, LGBl. 32/1988), na sua versão aplicável aos factos do processo principal (LGBl. 54/2008), prevê:

«Conteúdo e exercício do direito de caça

1.      O direito de caça constitui o fundamento de todo o exercício da caça. Está associado à propriedade da terra e engloba o direito de gerir a caça, de caçar e de se apropriar das espécies cinegéticas.

2.      O proprietário fundiário só pode dispor do seu direito de caça quando as suas terras formarem um território de caça privado (titular de um direito de caça privada). Às associações venatórias pertence a capacidade para dispor do direito de caça referente a todas as outras terras.

3.      Os titulares do direito de caça (n.° 2) devem fazer eles próprios a utilização cinegética dos seus territórios de caça ou transferir o gozo desse direito para locatários (titulares do gozo do direito de caça).»

13      O § 20 da referida lei tem a seguinte redacção:

«Locação de uma coutada

1.      A locação de uma coutada pode ser efectuada por acordo, por adjudicação pública ou em hasta pública. No âmbito da locação de uma coutada, os titulares do direito de caça devem diligenciar para que o referido direito seja exercido em conformidade com os princípios definidos no § 3.

2.      A locação de uma coutada é feita por um período de seis anos, para a coutada de uma associação venatória, e de seis ou doze anos, para as coutadas privadas. Caso a locação da coutada cesse antes do termo previsto no contrato, o termo final da nova locação da coutada não pode exceder o termo previsto no primeiro contrato de locação.

3.      O contrato de locação de uma coutada tem de ser celebrado por escrito. Tem de conter todas as estipulações relativas ao exercício do direito de caça, incluindo as eventuais disposições acessórias, como sejam as relativas à constituição de uma caução, a montantes mínimos de indemnização pelos danos causados pelas espécies cinegéticas, ou à construção, utilização ou reparação de instalações de caça. São tidas por inexistentes as convenções que não constem do contrato de locação de uma coutada. Têm de constar necessariamente do contrato de locação de uma coutada os nomes do titular do direito de caça e do locatário, a descrição, a localização e a superfície da coutada, o início e o termo da locação bem como o montante da renda.

4.      Antes de ser celebrado o contrato da locação de uma coutada privada que abranja terras de outro proprietário que tenham uma superfície superior a 10 hectares, o titular do direito de caça privada tem de consultar o proprietário dessas terras.

5.      O titular do direito de caça tem de apresentar, para análise, o contrato de locação da coutada à autoridade competente, entre um ano e um mês antes do início da locação. O contrato de locação da coutada produzirá efeitos a partir da data acordada entre as partes quando a autoridade competente não tiver formulado objecções no prazo de um mês ou quando os problemas que motivaram essas objecções tiverem sido sanados no prazo razoável que for fixado. Estas disposições aplicam-se igualmente às alterações dos contratos de locação de coutadas que estejam em vigor.

6.      O Governo do Land adoptará, mediante despacho, as disposições reguladoras do procedimento de locação de uma coutada.»

14      Em conformidade com o disposto no § 1 da Lei do Land do Vorarlberg relativa à cobrança de um imposto sobre a caça (Vorarlberger Gesetz über die Erhebung einer Jagdabgabe, LGBl. 28/2003, a seguir «Vlbg. JagdAbgG»), é devido um imposto pelo exercício do direito de caça. Por força do § 2 da referida lei, o sujeito passivo deste imposto é o titular do direito de caça e, em caso de cessão desse direito a favor de um locatário, a pessoa que goza do direito de caça.

15      O § 3 da Vlbg. JagdAbgG preceitua que a matéria colectável do imposto é determinada do seguinte modo:

«1.      No caso de coutadas locadas, o imposto é calculado em função da renda anual, acrescida, se for o caso, das prestações acessórias convencionadas contratualmente. As despesas com a vigilância e as relativas aos danos resultantes da caça ou causados pelas espécies cinegéticas não são consideradas prestações acessórias.

2.      No caso de coutadas não locadas, o imposto é calculado em função do montante que, em caso de locação, poderia ser obtido como renda anual.

3.      Se, no caso de coutadas locadas, a renda anual, acrescida, se for caso disso, das prestações acessórias contratualmente convencionadas, for manifestamente inferior ao montante que poderia ser normalmente obtido pela sua locação, o cálculo do imposto é feito de acordo com as regras aplicáveis às coutadas não locadas.

[…]»

16      Segundo o § 4, n.° 1, da Vlbg. JagdAbgG, a taxa do imposto é de 15% da matéria colectável para as pessoas que tenham a sua residência principal na Áustria, para os cidadãos da União e para as pessoas singulares ou colectivas que lhes sejam equiparadas por força do direito da União. Nos termos do § 4, n.° 2, da mesma lei, a taxa do imposto é de 35% da matéria colectável para todas as outras pessoas.

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

17      Em 8 de Janeiro de 2002, A. Hengartner e R. Gasser, cidadãos suíços, celebraram com uma associação venatória um contrato de locação de uma coutada situada na Áustria, por um período de seis anos, entre 1 de Abril de 2002 e 31 de Março de 2008. A renda anual foi fixada em 10 900 euros e a coutada locada tem uma superfície de 1 598 hectares.

18      Decorre dos autos submetidos ao Tribunal de Justiça que os recorrentes do processo principal se deslocam regularmente ao território do Land do Vorarlberg, para caçar.

19      Por decisão de 16 de Abril de 2002, a Administração competente do referido Land aprovou a nomeação de duas pessoas para exercer a função de autoridade de protecção da caça durante a vigência do contrato de locação aos referidos recorrentes.

20      Por decisão de 1 de Abril de 2007 da Administração Fiscal do Land de Vorarlberg, foi aplicado aos recorrentes no processo principal um imposto sobre a caça, no valor de 35% da matéria colectável, ou seja, 4 359 euros pela época de caça que decorreu de 1 de Abril de 2007 a 31 de Março de 2008. Estes reclamaram dessa decisão.

21      Por decisão de 17 de Outubro de 2007, a referida Administração Fiscal indeferiu aquela reclamação, tendo alegado que a aplicação da taxa de imposto mais elevada respeitava a legislação nacional. Nessa decisão, foi mencionado que as disposições do Acordo não eram aplicáveis ao exercício da caça nem aos impostos que lhe estão associados.

22      Os recorrentes no processo principal interpuseram recurso para o Verwaltungsgerichtshof, invocando, essencialmente, a violação do direito à liberdade de estabelecimento e à igualdade de tratamento com os cidadãos da União. Afirmaram que, à semelhança da pesca ou da agricultura, a caça constitui uma actividade económica, nomeadamente nas condições do processo principal, em que as peças de caça abatidas são vendidas na Áustria. Por conseguinte, a Administração Fiscal do Land do Vorarlberg devia ter aplicado uma taxa de tributação de 15%, para evitar uma discriminação em razão da nacionalidade.

23      A referida Administração Fiscal defendeu que a caça deve ser considerada um desporto que não tem por objectivo a obtenção duradoura de receitas.

24      O Verwaltungsgerichtshof decidiu então suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«Quando o titular de um direito de caça vende no território nacional as peças de caça que abateu, o exercício da caça constitui uma actividade não assalariada na acepção do artigo 43.° CE, mesmo que, no seu todo, essa actividade não vise produzir lucro?»

 Quanto à questão prejudicial

 Quanto à aplicabilidade do artigo 43.° CE

25      A título preliminar, há que precisar que, embora, através da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio evoque explicitamente o artigo 43.° CE (actual artigo 49.° TFUE), as normas do Tratado CE em matéria de liberdade de estabelecimento só podem ser invocadas por um nacional de um Estado-Membro da União que pretenda estabelecer-se no território de outro Estado-Membro, ou por um nacional desse mesmo Estado que se encontre numa situação que apresente um factor de conexão com uma das situações previstas no direito da União (v., neste sentido, acórdão de 25 de Junho de 1992, Ferrer Laderer, C-147/91, Colect., p. I-4097, n.° 7).

26      Nestas condições, as normas do Tratado em matéria de liberdade de estabelecimento não podem ser aplicadas a um nacional de um Estado terceiro, como a Confederação Suíça.

27      Todavia, para fornecer ao órgão jurisdicional de reenvio elementos de interpretação que lhe possam ser úteis, o Tribunal de Justiça pode tomar em consideração normas do ordenamento jurídico da União a que o órgão jurisdicional de reenvio não se referiu no enunciado da sua questão prejudicial (v. acórdãos de 12 de Dezembro de 1990, SARPP, C-241/89, Colect., p. I-4695, n.° 8, e de 26 de Fevereiro de 2008, Mayr, C-506/06, Colect., p. I-1017, n.° 43).

28      Atendendo ao quadro factual e jurídico do litígio no processo principal, há que analisar a questão colocada, na perspectiva das disposições do Acordo.

 Quanto à interpretação do Acordo

29      Através da sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se as disposições do Acordo se opõem a que um Estado-Membro cobre um imposto regional a cidadãos de nacionalidade suíça, quando este Estado-Membro lhes aplica uma taxa de imposto mais elevada do que aquela a que estão sujeitos, nomeadamente, os nacionais dos Estados-Membros da União.

30      O Tribunal de Justiça é assim chamado a analisar se as disposições do Acordo se podem aplicar a um litígio de natureza fiscal, como o litígio no processo principal, e, em caso afirmativo, a determinar o âmbito daquelas disposições. Visto o Acordo conter diferentes disposições relativas à prestação de serviços e ao estabelecimento, há que definir a natureza da actividade exercida pelos recorrentes no processo principal, no território austríaco, à luz do regime fiscal em causa.

 Quanto à qualificação da actividade em causa

31      Há que referir que a Vlbg. JagdAbgG sujeita o exercício do direito de caça no território do Land do Voralberg ao pagamento de um imposto anual. No entanto, quando, por um lado, em caso de locação de um direito de caça, o locatário seja o devedor do imposto e, por outro, o imposto seja devido independentemente da frequência da actividade da caça por este exercida, há que considerar que, num caso como o do processo principal, o facto gerador do imposto é constituído pela locação de um direito de caça no território do Land do Vorarlberg.

32      Deste modo, a obrigação contratual em causa no órgão jurisdicional de reenvio consiste na disponibilização, por uma das partes no processo principal, mediante remuneração e sob determinadas condições, de uma circunscrição territorial para a prática da caça. Por conseguinte, o contrato de locação tem por objecto uma prestação de serviços que, no litígio do processo principal, reveste um carácter transfronteiriço, uma vez que os recorrentes no processo principal, locatários do direito de caça na referida circunscrição, têm de se deslocar ao território do Land do Vorarlberg para aí exercerem o seu direito.

33      Os referidos recorrentes devem, assim, ser considerados destinatários de um serviço que consiste na cessão, mediante remuneração, do gozo de um direito de caça num espaço territorial e limitado no tempo (v., neste sentido, acórdão de 21 de Outubro de 1999, Jägerskiöld, C-97/98, Colect., p. I-7319, n.° 36).

34      Na medida em que o facto gerador do imposto é constituído pela locação do direito de caça, só as regras do Acordo relativas às prestações de serviços são relevantes para analisar a legalidade do imposto em causa.

 Quanto à incidência das disposições do Acordo na tributação em causa no processo principal

35      Relativamente ao tratamento fiscal da operação comercial em causa no processo principal, há que analisar se as disposições do Acordo relativas às prestações de serviços devem ser interpretadas no sentido de que se opõem a um imposto como o do processo principal, nos termos do qual, em função da nacionalidade do locatário do direito de caça, é aplicada uma taxa de 15% ou de 35% da matéria colectável do imposto em questão.

36      Há que recordar que, de acordo com jurisprudência assente, um tratado internacional deve ser interpretado não apenas em função dos termos em que está redigido mas também à luz dos seus objectivos. O artigo 31.° da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 23 de Maio de 1969, esclarece, a este respeito, que um tratado deve ser interpretado de boa fé, segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado no seu contexto, e à luz dos respectivos objecto e fim (v., neste sentido, nomeadamente, parecer 1/91, de 14 de Dezembro de 1991, Colect., p. I-6079, n.° 14; acórdãos de 2 de Março de 1999, El-Yassini, C-416/96, Colect., p. I-1209, n.° 47, de 20 de Novembro de 2001, Jany e o., C-268/99, Colect., p. I-8615, n.° 35, e de 25 de Fevereiro de 2010, Brita, C-386/08, ainda não publicado na Colectânea, n.os 42 e 43 e jurisprudência aí referida).

37      A este respeito, importa sublinhar que, em conformidade com o disposto no artigo 1.°, alínea b), do Acordo, este tem por objectivo facilitar a prestação de serviços no território das Partes Contratantes a favor dos nacionais dos Estados-Membros da Comunidade e da Suíça e liberalizar a prestação de serviços de curta duração.

38      Há também que precisar que o artigo 5.°, n.° 3, do Acordo concede às pessoas que devem ser consideradas destinatárias de serviços, na acepção do Acordo, um direito de entrada e de residência no território das Partes Contratantes. O artigo 23.° do Anexo I do Acordo contém disposições especiais relativas às autorizações de residência concedidas a estas pessoas.

39      No que respeita à questão de saber se, para além do regime relativo ao direito de entrada e de residência dos destinatários dos serviços, o Acordo visa estabelecer um princípio geral de igualdade de tratamento no que se refere ao estatuto jurídico destes no território de uma das Partes Contratantes, há que observar que, embora o artigo 2.° do Acordo diga respeito ao princípio da não discriminação, este artigo não proíbe, de forma geral e absoluta, todas as discriminações dos nacionais de uma das Partes Contratantes que residam no território da outra parte, mas apenas as discriminações em razão da nacionalidade e desde que a situação desses nacionais esteja abrangida pelo âmbito de aplicação material das disposições dos Anexos I a III desse Acordo.

40      O Acordo e os seus Anexos não contêm nenhuma norma específica que tenha por objecto fazer com que os destinatários de serviços beneficiem do princípio da não discriminação no âmbito da aplicação de regulamentações fiscais relativas às transacções comerciais que tenham por objecto uma prestação de serviços.

41      Para mais, o Tribunal de Justiça declarou que a Confederação Suíça não aderiu ao mercado interno da Comunidade, que pretende eliminar todos os obstáculos para criar um espaço de liberdade de circulação total análogo ao oferecido por um mercado nacional e que abrange, entre outras, a livre prestação de serviços e a liberdade de estabelecimento (v. acórdão de 12 de Novembro de 2009, Grimme, C-351/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 27).

42      O Tribunal de Justiça também precisou que, nestas condições, a interpretação dada às disposições do direito da União relativas ao mercado interno não pode ser automaticamente transposta para a interpretação do Acordo, salvo disposições expressas para o efeito previstas no próprio Acordo (v. acórdão de 11 de Fevereiro de 2010, Fokus Invest, C-541/08, ainda não publicado na Colectânea, n.° 28).

43      Atendendo às considerações acima efectuadas, há que responder à questão submetida que as disposições do Acordo não se opõem a que um nacional de uma das Partes Contratantes seja sujeito, no território da outra Parte Contratante, enquanto destinatário de serviços, a um tratamento diferente daquele que é concedido às pessoas que tenham a sua residência principal no referido território, aos cidadãos da União e às pessoas que a estes são equiparadas por força do direito da União, no que se refere à cobrança de um imposto devido por uma prestação de serviços, como é a disponibilização de um direito de caça.

 Quanto às despesas

44      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional nacional, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efectuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:

As disposições do Acordo entre a Comunidade Europeia e os seus Estados-Membros, por um lado, e a Confederação Suíça, por outro, sobre a livre circulação de pessoas, assinado no Luxemburgo, em 21 de Junho de 1999, não se opõem a que um nacional de uma das Partes Contratantes seja sujeito, no território da outra Parte Contratante, enquanto destinatário de serviços, a um tratamento diferente daquele que é concedido às pessoas que tenham a sua residência principal no referido território, aos cidadãos da União e às pessoas que a estes são equiparadas por força do direito da União, no que se refere à cobrança de um imposto devido por uma prestação de serviços, como é a disponibilização de um direito de caça.

Assinaturas


* Língua do processo: alemão.