Processo C-94/09
Comissão Europeia
contra
República Francesa
«Incumprimento de Estado – IVA – Directiva 2006/112/CE – Artigo 98.°, n.os 1 e 2 – Prestações de serviços fornecidas por agências funerárias – Aplicação de uma taxa reduzida às prestações de transporte de cadáveres em veículo»
Sumário do acórdão
Disposições fiscais – Harmonização das legislações – Impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado – Faculdade de os Estados-Membros aplicarem uma taxa reduzida a certas entregas de bens e prestações de serviços
[Directiva 2006/112, do Conselho, artigos 96.° e 98.°, n.os 1 e 2, e anexo III)
1 Não viola as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 96.° a 98.°, n.os 1 e 2, da Directiva 2006/112, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, o Estado-Membro que submete o transporte de cadáveres em veículo a uma taxa reduzida de imposto sobre o valor acrescentado, diferente da taxa aplicável às outras prestações susceptíveis de ser fornecidas por agências funerárias.
Com efeito, quando um Estado-Membro decide fazer uso da possibilidade que lhe confere o artigo 98.°, n.os 1 e 2, da Directiva 2006/112, de aplicar uma taxa reduzida de imposto sobre o valor acrescentado a uma categoria de prestações constante do anexo III desta directiva, tem a possibilidade de limitar a aplicação dessa taxa reduzida de IVA a elementos concretos e específicos dessa categoria. O exercício dessa possibilidade está sujeito à dupla condição de, por um lado, isolar apenas, para efeitos de aplicação da taxa reduzida, elementos concretos e específicos da categoria de prestações em causa e, por outro, respeitar o princípio da neutralidade fiscal. Estas condições visam assegurar que os Estados-Membros só façam uso desta possibilidade em condições que garantam a aplicação simples e correcta da taxa reduzida escolhida assim como a prevenção de qualquer eventual fraude ou abuso. Uma vez que o transporte de cadáveres em veículo constitui um elemento concreto e específico entre as prestações de serviços realizadas pelas agências funerárias, por um lado, e que outras prestações semelhantes de transporte de cadáveres em veículo, que possam estar em concorrência com as que são submetidas a uma taxa reduzida, não são tratadas de modo diferente para efeitos de imposto sobre o valor acrescentado, por outro, a legislação que sujeita o transporte de cadáveres em veículo a uma taxa reduzida de IVA cumpre os requisitos exigidos pela Directiva 2006/112.
(cf. n.os 28, 30, 39, 42, 46)
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)
6 de Maio de 2010 (*)
«Incumprimento de Estado – IVA – Directiva 2006/112/CE – Artigo 98.°, n.os 1 e 2 – Prestações de serviços fornecidas por agências funerárias – Aplicação de uma taxa reduzida às prestações de transporte de cadáveres em veículo»
No processo C-94/09,
que tem por objecto uma acção por incumprimento nos termos do artigo 226.° CE, entrada em 6 de Março de 2009,
Comissão Europeia, representada por M. Afonso, na qualidade de agente, com domicílio escolhido no Luxemburgo,
demandante,
contra
República Francesa, representada por G. de Bergues e J.-S. Pilczer, na qualidade de agentes,
demandada,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),
composto por: A. Tizzano, presidente de secção, E. Levits, A. Borg Barthet, J.-J. Kasel e M. Berger (relatora), juízes,
advogado-geral: P. Mengozzi,
secretário: C. Strömholm, administradora,
vistos os autos e após a audiência de 28 de Janeiro de 2010,
vista a decisão tomada, ouvido o advogado-geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,
profere o presente
Acórdão
1 Com a sua petição, a Comissão das Comunidades Europeias pede ao Tribunal de Justiça que declare que, por não aplicar uma taxa única de imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «IVA») a todas as prestações de serviços realizadas pelas agências funerárias e às entregas de bens relacionadas com essas prestações, a República Francesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 96.° a 99.°, n.° 1, da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO L 347, p. 1).
Quadro jurídico
Legislação da União
2 A Directiva 2006/112 revoga e substitui, a partir de 1 de Janeiro de 2007, a Sexta Directiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de Maio de 1977, relativa à harmonização das legislações dos Estados-Membros respeitantes aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria colectável uniforme (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54; a seguir «Sexta Directiva»).
3 O artigo 96.° da Directiva 2006/112, correspondente ao artigo 12.°, n.° 3, alínea a), primeiro parágrafo, da Sexta Directiva dispõe:
«Os Estados-Membros aplicam uma taxa normal de IVA fixada por cada Estado-Membro numa percentagem do valor tributável que é idêntica para a entrega de bens e para a prestação de serviços.»
4 O artigo 98.°, n.os 1 e 2, da Directiva 2006/112, correspondente ao artigo 12.°, n.° 3, alínea a), terceiro parágrafo, da Sexta Directiva prevê:
«1. Os Estados-Membros podem aplicar uma ou duas taxas reduzidas.
2. As taxas reduzidas aplicam-se apenas às entregas de bens e às prestações de serviços das categorias constantes do anexo III.
[…]»
5 O anexo III da Directiva 2006/112, correspondente ao anexo H da Sexta Directiva, contém uma lista de actividades, entre as quais constam as duas categorias seguintes:
«5) Transporte de pessoas e respectiva bagagem;
[…]
16) Prestações de serviços de agências funerárias e cremações, bem como a entrega de bens relacionados com essas actividades.»
Legislação nacional
6 O artigo L. 2223-19 do code général des collectivités territoriales (Código Geral das Colectividades Territoriais) define o serviço funerário externo, do modo seguinte:
«O serviço funerário externo é uma função de serviço público que abrange:
1° O transporte de cadáveres antes e depois da sua colocação em urna;
2° A organização das exéquias;
3° As medidas de conservação;
4° O fornecimento de coberturas, urnas e seus acessórios interiores e exteriores e de urnas para recolha das cinzas;
5° suprimido
6° A gestão e a utilização de câmaras funerárias;
7° O fornecimento das carretas e das viaturas funerárias;
8° O fornecimento de pessoal e dos objectos e prestações necessários às exéquias, inumações, exumações e cremações, com excepção de placas funerárias, emblemas religiosos, flores, trabalhos diversos de tipografia e pedras funerárias.
[…]»
7 No que respeita à taxa do IVA aplicável às prestações funerárias, a circular ministerial n.° 68, de 14 de Abril de 2005 (Bulletin officiel des impôts 3 C-3-05), prevê:
«[...]
Só estão sujeitas à taxa reduzida as prestações de transporte de cadáveres, antes e depois da colocação em urna, realizadas por prestadores de serviços autorizados, em veículos especialmente preparados para o efeito. O mesmo se aplica, sendo caso disso, ao transporte de pessoas realizado em viaturas do séquito ou em viaturas destinadas aos membros do clero.
Todas as outras operações susceptíveis de ser realizadas por estes prestadores no âmbito do serviço funerário externo ou das actividades conexas ficam sujeitas à taxa que lhes é especificamente aplicável, ou seja, em princípio, à taxa normal.
[...]»
8 O artigo 279.° do code général des impôts dispõe:
«Aplica-se a taxa reduzida do [IVA] de 5,50% às seguintes prestações:
[…]
b quater. Os transportes de passageiros;
[…]»
Procedimento pré-contencioso
9 Por carta de 15 de Dezembro de 2006, a Comissão chamou a atenção da República Francesa para o facto de que certas disposições nacionais relativas às taxas do IVA aplicável às prestações realizadas pelas agências funerárias pareciam não ser conformes com o direito da União, e notificou este Estado-Membro para apresentar as suas observações, nos termos do artigo 226.° CE.
10 Na sua resposta de 14 de Fevereiro de 2007, a República Francesa alegou que a sua legislação nacional em matéria de IVA era compatível com o direito da União.
11 Não convencida com esta resposta, a Comissão, em 29 de Junho de 2007, emitiu um parecer fundamentado, no qual convidava a República Francesa a tomar as medidas necessárias para o cumprir no prazo de dois meses a contar da sua recepção.
12 Por carta de 24 de Agosto de 2007, a República Francesa reiterou a sua posição.
13 Não tendo os argumentos da República Francesa convencido a Comissão, esta decidiu intentar a presente acção.
Quanto à acção
Argumentos das partes
14 A Comissão alega que todas as prestações de serviços e entregas de bens realizadas pelas agências funerárias às famílias dos defuntos constituem uma operação complexa única para efeitos de IVA, que, por consequência, deve ser sujeita a uma única taxa de imposto.
15 A Comissão baseia a sua posição na jurisprudência do Tribunal de Justiça, segundo a qual a operação constituída por uma só prestação no plano económico não deve ser artificialmente decomposta para não se alterar a funcionalidade do sistema do IVA (acórdãos de 25 de Fevereiro de 1999, CPP, C-349/96, Colect., p. I-973, n.° 29, e de 27 de Outubro de 2005, Levob Verzekeringen e OV Bank, C-41/04, Colect., p. I-9433, n.° 20). A Comissão considera que a organização das exéquias de que a família do defunto encarrega o empresário da agência funerária se caracteriza por um conjunto de elementos e de actos que devem ser considerados como uma única prestação complexa, na medida em que, para um consumidor médio, estão tão estreitamente ligados que formam objectivamente, do ponto de vista económico, um conjunto cuja dissociação teria carácter artificial.
16 Segundo a Comissão, a dissociação artificial do serviço de transporte de cadáveres em veículo, em relação ao conjunto composto pelas prestações realizadas pelas agências funerárias, tal como resulta da circular ministerial n.° 68, de 14 de Abril de 2005, leva a República Francesa a aplicar duas taxas diferentes de IVA a duas componentes de uma prestação que se deve considerar uma prestação única. Esta prestação fica, assim, sujeita a uma taxa efectiva de imposição que corresponde a uma taxa média necessariamente inferior à taxa normal aplicável em França. Além disso, esta taxa tende a variar de operação para operação, em função da importância relativa que reveste, em cada caso, o transporte de cadáveres em veículo. A Comissão considera que a legislação francesa constitui, por isso, uma violação do artigo 98, n.° 1, da Directiva 2006/112.
17 A Comissão acrescenta que o tratamento diferenciado das prestações de transporte de cadáveres em veículo introduz factores de complexidade e de opacidade para o consumidor e para os concorrentes, susceptíveis de criar distorções da concorrência e, portanto, de violar o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA.
18 A República Francesa sustenta, em substância, que a jurisprudência em que se apoia a Comissão não é pertinente no caso em apreço e que, no que respeita às categorias de prestações que constam do anexo III da Directiva 2006/112, os Estados-Membros têm a possibilidade de aplicar selectivamente uma taxa reduzida.
19 A República Francesa baseia a sua posição nos acórdãos de 8 de Maio de 2003, Comissão/França (C-384/01, Colect., p. I-4395, n.os 22 e 23), relativo ao fornecimento de electricidade e de gás, e de 3 de Abril de 2008, Zweckverband zur Trinkwasserversorgung und Abwasserbeseitigung Torgau-Westelbien (C-442/05, Colect., p. I-1817, n.° 39), relativo à distribuição de água. Afirma que resulta por analogia destes acórdãos que, no texto dos artigos 96.° a 99.°, n.° 1, da Directiva 2006/112, nada impõe que estas disposições sejam interpretadas no sentido de que exigem que a taxa reduzida só se aplique se visar todos os elementos das prestações de serviços realizadas pelas agências funerárias, abrangidas pelo anexo III dessa directiva, de modo que não se pode excluir a aplicação selectiva duma taxa reduzida, desde que não implique um risco de distorção da concorrência.
20 Com referência aos acórdãos já referidos, sustenta também que, desde que respeitem o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA, os Estados-Membros têm a possibilidade de aplicar uma taxa reduzida de IVA a elementos concretos e específicos das prestações de serviços realizadas pelas agências funerárias. A República Francesa considera que estas condições estão preenchidas no que respeita ao transporte de cadáveres em veículo. Em primeiro lugar, trata-se de um elemento concreto e específico das prestações realizadas pelas agências funerárias, o que é confirmado pelo facto de esta operação ser objecto de regulamentação específica. Em segundo lugar, a aplicação da taxa reduzida apenas ao transporte de cadáveres em veículo não ofende o princípio da neutralidade fiscal, uma vez que esta prestação não se encontra em concorrência com nenhuma outra.
Apreciação do Tribunal de Justiça
Quanto à interpretação dos artigos 96.° a 99.°, n.° 1, da Directiva 2006/112
21 O artigo 96.° da Directiva 2006/112 dispõe que é aplicada a mesma taxa de IVA, a taxa normal, à entrega de bens e à prestação de serviços.
22 O artigo 98.°, n.os 1 e 2, desta directiva reconhece aos Estados-Membros, por derrogação ao princípio de que é aplicável a taxa normal, a possibilidade de aplicar uma ou duas taxas reduzidas de IVA. Segundo esta disposição, as taxas reduzidas de IVA apenas podem ser aplicadas às entregas de bens e às prestações de serviços das categorias constantes do anexo III da referida directiva.
23 O anexo III, n.° 16, da Directiva 2006/112 autoriza a aplicação de uma taxa reduzida às prestações de serviços realizadas pelas agências funerárias.
24 As regras definidas por estas disposições são materialmente idênticas às previstas no artigo 12.°, n.° 3, alínea a), primeiro e terceiro parágrafos, bem como no anexo H, décima quinta categoria, da Sexta Directiva.
25 O Tribunal de Justiça já decidiu, a propósito do artigo 12.°, n.° 3, alínea a), terceiro parágrafo, da Sexta Directiva, que o texto desta disposição não impõe que a mesma seja interpretada no sentido de exigir que só se aplique a taxa reduzida se esta abranger todos os elementos de uma categoria de prestações referida no anexo H da mesma directiva, de modo que não se pode excluir uma aplicação selectiva da taxa reduzida, desde que essa interpretação não crie um risco de distorção da concorrência (v. acórdão Zweckverband zur Trinkwasserversorgung und Abwasserbeseitigung Torgau-Westelbien, já referido, n.° 41, bem como, por analogia, acórdão Comissão/França, já referido, n.° 27).
26 O Tribunal de Justiça concluiu daí que, desde que seja respeitado o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA, os Estados-Membros têm a possibilidade de aplicar uma taxa reduzida de IVA a elementos concretos e específicos de uma categoria de prestações referida no anexo H da Sexta Directiva (v. acórdão Zweckverband zur Trinkwasserversorgung und Abwasserbeseitigung Torgau-Westelbien, já referido, n.° 43).
27 Uma vez que o artigo 98.°, n.os 1 e 2, da Directiva 2006/112 reproduz, em substância, a redacção do artigo 12.°, n.° 3, alínea a), da Sexta Directiva, deve fazer-se dele a mesma interpretação que o Tribunal de Justiça fez desta última disposição.
28 Resulta do exposto que, quando um Estado-Membro decide fazer uso da possibilidade que lhe confere o artigo 98.°, n.os 1 e 2, da Directiva 2006/112, de aplicar uma taxa reduzida de IVA a uma categoria de prestações constante do anexo III desta directiva, tem a possibilidade de limitar a aplicação dessa taxa reduzida de IVA a elementos concretos e específicos dessa categoria, desde que respeite o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA.
29 A possibilidade assim reconhecida aos Estados-Membros, de aplicar selectivamente a taxa reduzida de IVA, justifica-se, nomeadamente, pela consideração de que, sendo esta taxa a excepção, o facto de se limitar a sua aplicação a elementos concretos e específicos é coerente com o princípio de que as isenções e as derrogações devem ser interpretadas restritivamente (acórdão Comissão/França, já referido, n.° 28).
30 Todavia, deve sublinhar-se que o exercício dessa possibilidade está sujeito à dupla condição de, por um lado, isolar apenas, para efeitos de aplicação da taxa reduzida, elementos concretos e específicos da categoria de prestações em causa e, por outro, respeitar o princípio da neutralidade fiscal. Estas condições visam assegurar que os Estados-Membros só façam uso desta possibilidade em condições que garantam a aplicação simples e correcta da taxa reduzida escolhida assim como a prevenção de qualquer eventual fraude ou abuso.
31 A Comissão sustenta que os Estados-Membros, quando fazem uso da possibilidade que lhes confere o artigo 98.° da Directiva 2006/112 de aplicar uma taxa reduzida de IVA, devem respeitar os critérios elaborados pela jurisprudência para determinar se uma operação que contém diversos elementos deve ser considerada uma prestação única, sujeita a um único tratamento fiscal, ou duas ou várias prestações distintas, que podem ser tratadas de modo diferente.
32 A este propósito, deve observar-se que estes critérios, como a expectativa do consumidor médio a que se refere a Comissão, têm por objectivo proteger a funcionalidade do sistema do IVA face à diversidade das transacções comerciais. Todavia, o próprio Tribunal de Justiça reconheceu a impossibilidade de dar uma resposta exaustiva a este problema (acórdão CPP, já referido, n.° 27) e sublinhou a necessidade de tomar em consideração todas as circunstâncias em que se desenvolve a operação em questão (acórdãos, já referidos, CPP, n.° 28, e Levob Verzekeringen e OV Bank, n.° 19; e acórdão de 21 de Fevereiro de 2008, Part Service, C-425/06, Colect., p. I-897, n.° 54).
33 Conclui-se daí que, se os critérios se prestam a uma aplicação casuística, para evitar, nomeadamente, que a articulação contratual montada pelo sujeito passivo e pelo consumidor conduza a uma separação artificial, em várias operações fiscais, de uma operação que, do ponto de vista económico, deve ser considerada uma única operação, tais critérios não podem considerar-se determinantes para o exercício, pelos Estados-Membros, da margem de apreciação que lhes é consentida pela Directiva 2006/112 quanto à aplicação da taxa reduzida do IVA. O exercício dessa margem de apreciação exige, com efeito, critérios gerais e objectivos, tais como os formulados nos acórdãos, já referidos, Comissão/França e Zweckverband zur Trinkwasserversorgung und Abwasserbeseitigung Torgau-Westelbien, recordados nos n.os 26, 28 e 30 deste acórdão.
34 Nestas condições, para apreciar o mérito desta acção, não é necessário averiguar se, como sustenta a Comissão, as prestações de serviços realizadas pelas agências funerárias devem ou não ser consideradas, na expectativa de um consumidor médio, como uma operação única. Mas deve averiguar-se, pelo contrário, se o transporte de cadáveres em veículo, para o qual a legislação francesa prevê a aplicação de uma taxa reduzida de IVA, constitui um elemento concreto e específico dessa categoria de prestações, tal como é descrita no anexo III, n.° 16, da Directiva 2006/112, e, se necessário, averiguar se a aplicação dessa taxa ofende ou não o princípio da neutralidade fiscal.
Quanto à qualificação do transporte de cadáveres em veículo como «elemento concreto e específico» das prestações de serviços realizadas pelas agências funerárias
35 Para responder à questão de saber se o transporte de cadáveres em veículo constitui um elemento concreto e específico das prestações de serviços realizadas pelas agências funerárias, deve apreciar-se se se trata de uma prestação de serviços identificável em si mesma, separadamente das outras prestações realizadas por estas empresas.
36 A este propósito, é forçoso reconhecer que o transporte de cadáveres em veículo, como actividade de transporte, se distingue das outras prestações que podem ser realizadas pelas agências funerárias, que são os cuidados somáticos, a utilização de uma câmara funerária, a organização das exéquias e as operações de enterro ou cremação.
37 Distingue-se também do transporte de cadáveres por pessoas, na medida em que este último, limitado pela sua natureza a curtas distâncias, não é necessariamente efectuado por uma empresa, mas pode ser confiado a pessoas próximas do defunto e reveste, antes de mais, carácter cerimonial.
38 Além disso, segundo as indicações fornecidas pela República Francesa e não contestadas pela Comissão, o transporte de cadáveres em veículo está sujeito a regulamentação específica, em França, na medida em que apenas pode ser feito por prestadores autorizados, em veículos especialmente preparados para esse efeito. Como alegou a República Francesa, acontece, aliás, que o transporte de cadáveres seja efectuado por um transportador autorizado, independentemente de qualquer prestação de serviços funerários.
39 Nestas condições, deve considerar-se que o transporte de cadáveres em veículo constitui um elemento concreto e específico entre as prestações de serviços realizadas pelas agências funerárias.
Quanto ao respeito do princípio da neutralidade fiscal
40 Quanto à questão de saber se a aplicação de uma taxa reduzida ao transporte de cadáveres em veículo ofende o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA, deve observar-se que este princípio se opõe a que mercadorias ou prestações de serviços semelhantes, que se encontram, portanto, em concorrência umas com as outras, sejam tratadas de modo diferente do ponto de vista do IVA (v., nomeadamente, acórdãos, já referidos, Comissão/França, n.° 25, e Zweckverband zur Trinkwasserversorgung und Abwasserbeseitigung Torgau-Westelbien, n.° 42).
41 Como se concluiu no n.° 37 do presente acórdão, o transporte de cadáveres em veículo distingue-se do transporte de cadáveres por pessoas, de modo que não se trata de prestações semelhantes que estejam em concorrência.
42 Por outro lado, a República Francesa alegou, sem ser contestada pela Comissão, que, quando o transporte de um cadáver em veículo é realizado isoladamente, ou seja, independentemente de qualquer prestação de serviços funerários, por uma agência funerária ou por qualquer prestador autorizado, como uma empresa de transporte sanitário, esta operação é considerada, pela legislação francesa, como transporte de pessoas na acepção do anexo III, n.° 5, da Directiva 2006/112 e, nos termos do artigo 279.° do code général des impôts, sujeita à mesma taxa reduzida, como se tivesse sido realizada no contexto de um contrato que incluísse o fornecimento de uma gama mais ampla de prestações funerárias. Daí resulta que prestações semelhantes de transporte de cadáveres em veículo, que possam estar em concorrência, não são tratadas de modo diferente para efeitos de IVA.
43 A Comissão alega que o tratamento diferenciado das prestações de transporte de cadáveres em veículo é susceptível de introduzir distorções de concorrência, na medida em que as agências funerárias podem ser tentadas a aumentar artificialmente a parte do preço que declaram corresponder ao transporte de cadáveres em veículo, de modo a reduzir a parte do preço das outras prestações sujeita à taxa normal.
44 A este propósito, deve observar-se que a Comissão não explicitou de que modo essas práticas, cuja existência não provou, seriam susceptíveis de causar distorções da concorrência entre os prestadores de serviços. Deve acrescentar-se que, no caso de se poderem provar práticas como as que refere a Comissão, caberia às autoridades nacionais competentes, às quais incumbe garantir a aplicação simples e correcta da taxa reduzida escolhida assim como a prevenção de qualquer eventual fraude ou abuso (v. n.° 30 do presente acórdão), averiguar se podem estar abrangidas pelo conceito de práticas abusivas, eventualmente por referência aos critérios elaborados a esse propósito pela jurisprudência do Tribunal de Justiça (v., nomeadamente, acórdão de 21 de Fevereiro de 2006, Halifax e o., C-255/02, Colect., p. I-1609, n.os 74 a 76).
45 Resulta do exposto que a Comissão não demonstrou que a aplicação de uma taxa reduzida ao transporte de cadáveres em veículo é susceptível de violar o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA.
46 À luz do que fica exposto, deve declarar-se que a legislação francesa que sujeita o transporte de cadáveres em veículo a uma taxa reduzida de IVA cumpre os requisitos exigidos pela legislação da União nessa matéria.
47 Nestas condições, a acção deve ser julgada improcedente.
Quanto às despesas
48 Por força do disposto no artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a República Francesa pedido a condenação da Comissão e tendo esta sido vencida, há que condená-la nas despesas.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) decide:
1) A acção é julgada improcedente.
2) A Comissão Europeia é condenada nas despesas.
Assinaturas
* Língua do processo: francês.