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CONCLUSÕES DO ADVOGADO-GERAL

PAOLO MENGOZZI

apresentadas em 28 de junho de 2012 (1)

Processo C-38/10

Comissão Europeia

contra

República Portuguesa

«Incumprimento de Estado — Liberdade de estabelecimento — Artigo 49.° TFUE — Artigo 31.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu — Legislação fiscal — Imposto à saída do território — Tributação imediata das mais-valias não realizadas relativas aos ativos de sociedades aquando da transferência da sede e da direção efetiva — Cessação das atividades de um estabelecimento estável — Transferência de ativos — Tributação dos acionistas — Repartição do poder tributário — Proporcionalidade»





I —    Introdução

1.        Pela presente ação por incumprimento, a Comissão Europeia acusa a República Portuguesa de ter violado a liberdade de estabelecimento prevista no artigo 43.° CE (atual artigo 49.° TFUE) (2) e no artigo 31.° do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu (a seguir «Acordo EEE») (3), ao adotar ou ao manter disposições nacionais ao abrigo das quais tributa de imediato as mais-valias latentes, isto é, as mais-valias acumuladas mas não realizadas relativas:

¾        aos ativos das sociedades portuguesas que tenham transferido a sua sede e a sua direção efetiva para outro Estado-Membro ou para um Estado parte no Acordo EEE;

¾        aos ativos afetos a um estabelecimento estável português de uma sociedade não residente, em caso de cessação da sua atividade no território português; e

¾        aos ativos transferidos para fora do território português, afetos a um estabelecimento estável português de uma sociedade não residente.

2.        A Comissão acusa igualmente a República Portuguesa de violar essa mesma liberdade ao tributar as mais-valias não realizadas relativas às participações sociais detidas pelos acionistas de uma sociedade que transfere a sua sede e a sua direção efetiva para outro Estado-Membro ou para um Estado parte no Acordo EEE.

3.        A República Portuguesa e os oito Estados-Membros admitidos a intervir em apoio das suas conclusões (4) contestam o incumprimento em causa.

4.        A República Portuguesa defende que as disposições controvertidas, a saber, respetivamente, os artigos 76.°-A (tributação imediata das mais-valias não realizadas aquando da transferência da sede ou da direção efetiva da sociedade para fora de Portugal), 76.°-B (tributação imediata dos ativos de um estabelecimento estável de uma sociedade não residente, aquando da cessação da atividade desse estabelecimento em Portugal, e tributação imediata dos ativos transferidos para fora de Portugal desse estabelecimento) e 76.°-C (tributação dos acionistas aquando da transferência da sede ou da direção efetiva da sociedade) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (a seguir «CIRC») não contêm qualquer violação dos artigos 43.° CE e 31.° do Acordo EEE.

5.        Antes de examinar a admissibilidade e o mérito da ação, cabe observar que o presente processo é o primeiro de quatro ações por incumprimento propostas pela Comissão, respeitantes, no essencial, à tributação imediata das mais-valias não realizadas relativas a ativos de sociedades, aquando da transferência da sua sede e da sua direção efetiva para outros Estados-Membros (5).

6.        Por outro lado, esta problemática foi objeto do acórdão National Grid Indus, proferido pela Grande Secção do Tribunal de Justiça em 29 de novembro de 2011 (6), ou seja, depois do encerramento da fase escrita no presente processo.

7.        Nesse acórdão, sobre o qual me debruçarei mais longamente nas presentes conclusões, o Tribunal de Justiça declarou, nomeadamente, que o artigo 49.° TFUE devia ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado-Membro que impõe a cobrança imediata do imposto sobre as mais-valias não realizadas relativas aos elementos do património de uma sociedade que transferiu a sua sede de direção efetiva para outro Estado-Membro, no próprio momento da referida transferência (7).

8.        Após a prolação do acórdão National Grid Indus, já referido, o Tribunal de Justiça convidou as partes a pronunciarem-se por escrito sobre as consequências a retirar desse acórdão para efeitos da resolução do presente processo.

9.        Todas as partes, com exclusão do Governo finlandês, responderam a essa questão.

10.      Foram igualmente ouvidas as alegações das partes na audiência que teve lugar no dia 30 de abril de 2012, com exceção dos Governos neerlandês, finlandês e do Reino Unido, que não se fizeram representar.

II — Análise

A —    Quanto à admissibilidade de certas acusações

11.      Embora o Governo português não invoque, nos seus articulados, nenhum motivo de inadmissibilidade, mesmo parcial, da presente ação, recordo que o Tribunal de Justiça pode examinar oficiosamente se os requisitos previstos no artigo 226.° CE para a propositura de uma ação por incumprimento estão satisfeitos (8).

12.      Esta verificação tem como objeto a regularidade do procedimento pré-contencioso, o qual, segundo jurisprudência assente, constitui uma garantia essencial pretendida pelo Tratado CE, não apenas para a proteção dos direitos do Estado-Membro em causa mas igualmente para assegurar que um eventual processo contencioso venha a ter por objeto um litígio claramente definido (9).

13.      A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que a notificação para cumprir dirigida pela Comissão ao Estado-Membro e, seguidamente, o parecer fundamentado emitido pela Comissão delimitam o objeto do litígio, o qual, a partir de então, já não pode ser ampliado (10). Daí o Tribunal de Justiça retirou a consequência de que o parecer fundamentado e a ação da Comissão devem ter por base as mesmas acusações já constantes da notificação para cumprir que dá início à fase pré-contenciosa (11). Se não for esse o caso, essa irregularidade não pode ser considerada não existente pelo facto de o Estado-Membro demandado ter formulado observações sobre o parecer fundamentado (12).

14.      No caso vertente, por um lado, é dado assente, como a Comissão reconheceu na audiência, que a notificação para cumprir enviada a 29 de fevereiro de 2008 não continha nenhuma referência a uma pretensa violação do artigo 31.° do Acordo EEE.

15.      Consequentemente, a ação deve ser declarada inadmissível na parte em que tem por objeto uma acusação relativa à violação dessa disposição.

16.      Por outro lado, como o Governo português tinha sublinhado na sua resposta ao parecer fundamentado (13), além da menção ao 76.°-C do CIRC, na rubrica «os factos», a notificação para cumprir também não continha uma acusação autónoma relativa à tributação dos acionistas de uma sociedade portuguesa que transfere a sua sede e a sua direção efetiva para outro Estado-Membro.

17.      A presente ação é igualmente inadmissível na parte que diz respeito a esta acusação.

18.      Seja como for, mesmo admitindo que a referida acusação não é inadmissível por este motivo, recordo que, nos termos do artigo 21.° do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e do artigo 38.°, n.° 1, alínea c), do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça da União Europeia, a petição inicial deve conter o objeto do litígio e a exposição sumária dos fundamentos invocados. Incumbe, portanto, à Comissão, em qualquer requerimento apresentado ao abrigo do artigo 226.° CE, indicar as acusações exatas sobre as quais o Tribunal se deve pronunciar, bem como, de forma pelo menos sumária, os elementos de direito e de facto em que essas acusações se baseiam (14).

19.      Ora, no caso vertente, do mesmo modo que no seu parecer fundamentado, a Comissão não expôs na petição inicial, nem sequer sumariamente, nenhum fundamento para a sua conclusão de que a tributação dos acionistas de uma sociedade que transfere a sua sede e a sua direção efetiva para fora de Portugal viola o artigo 43.° CE.

20.      A meu ver, essa exposição teria sido tanto mais necessária quanto a tributação de uma sociedade ou de um estabelecimento estável não se confunde com a dos respetivos acionistas e que o alcance de uma eventual violação do artigo 43.° CE por parte da sociedade que transfere a sua sede e a sua direção efetiva em razão da tributação dos seus acionistas poderia depender do local de residência destes últimos, consoante fossem domiciliados no território da União ou no território de Estados terceiros.

21.      Além disso, sublinhe-se que nenhum Estado-Membro interveniente em apoio das conclusões do Governo português tomou posição acerca do incumprimento que alegadamente decorre do artigo 76.°-C do CIRC, tendo, em especial, o Governo neerlandês indicado, em resposta à questão escrita do Tribunal de Justiça, que não se podia pronunciar sobre a situação dos acionistas à luz do acórdão National Grid Indus, já referido, em razão das informações sumárias contidas nos autos do presente processo.

22.      Sugiro, portanto, que o Tribunal de Justiça apenas decida do mérito da ação na parte em que esta se destina a declarar um incumprimento do artigo 43.° CE que decorre do facto de a República Portuguesa tributar de imediato as mais-valias não realizadas relativas, em primeiro lugar, aos ativos de sociedades portuguesas que transferem a sua sede e a sua direção efetiva para outro Estado-Membro e, em segundo lugar, aos ativos afetos a um estabelecimento estável português de uma sociedade não residente, quando esses ativos são transferidos para fora do território português ou em caso de cessação da atividade do referido estabelecimento estável.

B —    Quanto ao mérito

1.      Quanto à tributação imediata das mais-valias não realizadas relativas a ativos de uma sociedade portuguesa que transfere a sua sede e a sua direção efetiva para outro Estado-Membro (artigo 76.°-A do CIRC).

a)      Resumo da argumentação das partes

23.      A Comissão entende que o artigo 76.°-A do CIRC implica um entrave à liberdade de estabelecimento, pois coloca as sociedades que exercem essa liberdade numa situação manifestamente menos favorável no plano da liquidez do que as que transferem a sua sede sem saírem do território português. Com efeito, de acordo com a regulamentação portuguesa, a transferência da sede de uma sociedade para outro Estado-Membro implica que o imposto sobre as mais-valias não realizadas seja cobrado de imediato.

24.      Segundo a Comissão, este tratamento não pode, sob pena de inobservância do princípio da proporcionalidade, ser justificado pela necessidade de garantir uma proteção especial dos direitos de certos interessados, nomeadamente dos credores, nem pelo seu objetivo, também ele legítimo, de garantir um controlo fiscal eficaz e de combater a evasão fiscal. A este respeito, embora reconheça o direito legítimo que cabe a um Estado-Membro de tributar as mais-valias geradas num momento em que o sujeito passivo em causa estava abrangido pela sua competência fiscal, a Comissão considera que diferir a cobrança do imposto para o momento da realização das mais-valias constituiria uma medida menos atentatória da liberdade de estabelecimento. Com efeito, os Estados-Membros dispõem, ao abrigo do direito da União, de mecanismos de assistência mútua suficientes que lhes permitem obter as informações relativas às tributações e cobrar créditos fiscais de sociedades que transferiram a sua sede para outros Estados-Membros.

25.      Na sua resposta à questão escrita colocada pelo Tribunal de Justiça, a Comissão sustenta igualmente que, à luz do acórdão National Grid Indus, já referido, o artigo 76.°-A do CIRC é manifestamente incompatível com o artigo 43.° CE.

26.      Uma vez que o acórdão National Grid Indus, já referido, é diretamente relevante para a situação de uma sociedade constituída de acordo com o direito português, que, embora mantenha a sua personalidade jurídica, transfere a sua sede e a sua direção efetiva para outro Estado-Membro, sem manter um estabelecimento estável em Portugal, o Governo português reconhece, perante o referido acórdão e contrariamente ao que tinha sustentado até aí nos seus articulados, a aplicabilidade da liberdade de estabelecimento à situação dessa sociedade.

27.      Todavia, contesta a existência de uma restrição à referida liberdade.

28.      Com efeito, a mesma regra e os mesmos factos geradores das obrigações fiscais aplicam-se independentemente da circunstância de a transferência da sede e da direção efetiva se realizarem em Portugal ou noutro Estado-Membro. Assim, decorre do artigo 43.°, n.os 2 e 3, do CIRC que as mais-valias não realizadas relativas aos ativos são tributadas, tendo em conta o valor de mercado destes elementos, de cada vez que o sujeito passivo procede «à afetação permanente desses elementos para fins diferentes da atividade exercida», isto é, quando esses ativos da sociedade são retirados, a título do imposto, da atividade económica geradora dos rendimentos tributáveis que esta exercia até então. A tributação das mais-valias é assim aplicável não apenas aquando da sua realização efetiva, por ocasião de uma transmissão onerosa, mas igualmente de cada vez que, para lá de qualquer ato ou negociação de venda e, portanto, sem contraprestação, os ativos deixem de estar afetos, seja por que motivo for, ao exercício da atividade da empresa.

29.      O Governo português insiste também no facto de que, incluindo nos casos puramente internos, a legislação portuguesa impõe o registo fiscal das mais-valias não realizadas e das mais-valias relativas aos elementos de ativos em causa durante o exercício fiscal em que os factos tiveram lugar, embora em nenhum destes casos a sociedade obtenha liquidez com base na realização dos ativos, através da sua alienação. Por conseguinte, há lugar a registo das mais-valias não realizadas, de cada vez que os bens em causa deixam de estar afetos à empresa ou à atividade económica geradora dos rendimentos sujeitos a tributação no território nacional. Assim, as sociedades que exercem a sua liberdade de estabelecimento não estão, de modo algum, sujeitas a uma pressão fiscal anterior ou superior àquela a que estão sujeitas as sociedades que continuam estabelecidas em Portugal.

30.      Seja como for, admitindo que o artigo 76.°-A do CIRC contém uma restrição à liberdade de estabelecimento, o Governo português sustenta que a tributação imediata das mais-valias não realizadas de uma sociedade que transfere a sua sede para outro Estado-Membro é necessária para alcançar os objetivos de salvaguarda da repartição do poder tributário entre os Estados-Membros, de eficácia dos controlos fiscais e de combate à fraude e à evasão fiscais.

31.      No que respeita à proporcionalidade da tributação imediata das mais-valias não realizadas aquando da transferência da sede e da direção efetiva de uma sociedade para outro Estado-Membro, o Governo português reconhece, porém, na sua resposta à questão escrita colocada pelo Tribunal de Justiça, que se este último devesse concluir, no caso vertente, pela existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento, a República Portuguesa seria obrigada a modificar o artigo 76.°-A do CIRC, de modo a conceder às sociedades em causa o direito de escolherem entre o pagamento imediato ou a cobrança diferida do imposto em causa, em conformidade com o acórdão National Grid Indus, já referido.

32.      Embora, nas suas alegações de intervenção respetivas, tenham contestado a aplicabilidade do artigo 43.° CE, a maioria dos intervenientes admite agora, à semelhança do Governo português, que, após o acórdão National Grid Indus, já referido, a liberdade de estabelecimento se aplica à situação regulada pelo artigo 76.°-A do CIRC. O Governo alemão faz questão de observar que esse acórdão não decidiu da questão da aplicabilidade da liberdade de estabelecimento no caso de uma sociedade estabelecida num Estado-Membro que tenha aderido à teoria da sede real e que subordine a transferência de direção efetiva à dissolução dessa sociedade.

33.      Os Governos dinamarquês, alemão, espanhol, francês e sueco consideram, de qualquer modo, que, mesmo após a prolação do acórdão National Grid Indus, já referido, a tributação imediata das mais-valias não realizadas na situação visada pelo artigo 76.°-A do CIRC se justifica por um ou mais objetivos de interesse geral apresentados pela República Portuguesa. Esses intervenientes observam que o processo na origem do acórdão National Grid Indus, já referido, dizia respeito a uma situação atípica, em que a sociedade que transferia a sua direção efetiva era tributada sobre uma mais-valia não realizada relativa a um único ativo de natureza financeira. As apreciações do Tribunal de Justiça a respeito do caráter desproporcionado da tributação imediata de uma mais-valia dessa natureza aquando da transferência da direção efetiva da National Grid Indus BV (a seguir «National Grid Indus») para o Reino Unido não abrangiam, portanto, as situações, mais habituais, em que a transferência da sede de uma sociedade para outro Estado-Membro implica ativos não financeiros, como equipamentos ou bens imateriais, que não podem ser cedidos. O Governo espanhol acrescenta, a este respeito, que oferecer às sociedades a possibilidade de optarem pela cobrança diferida, subordinada à exigência de uma garantia bancária suficiente, como o Tribunal de Justiça decidiu no acórdão National Grid Indus, já referido, não constitui necessariamente uma situação menos atentatória da liberdade de estabelecimento que o pagamento imediato do imposto à saída do território. O Governo alemão precisa que cabe ao próprio legislador nacional decidir da solução adequada, sem estar obrigado a conceder um direito de opção ao contribuinte. Segundo esse Estado-Membro, é menos limitativo e mais eficaz conceder ao contribuinte o direito de repartir o pagamento do imposto, em vez de uma suspensão até à realização efetiva dos ativos.

34.      Ao invés, o Governo neerlandês sustenta, na sua resposta à questão escrita do Tribunal de Justiça, que decorre do acórdão National Grid Indus, já referido, que, em todos os casos, os Estados-Membros devem oferecer às sociedades que transferem a sua sede para outro Estado-Membro a opção entre o pagamento imediato do imposto sobre as mais-valias não realizadas, à saída do território, e o pagamento diferido, no momento da realização dos ativos.

b)      Análise

35.      Como indicam todas as partes no presente processo, o acórdão National Grid Indus, já referido, permite em grande medida decidir a primeira acusação do incumprimento.

36.      Recordo que, nesse processo, a National Grid Indus, sociedade de responsabilidade limitada constituída segundo o direito neerlandês, possuía um crédito, em libras esterlinas, junto de uma das sociedades do mesmo grupo, estabelecida no Reino Unido. Este crédito tinha gerado, em razão da valorização da libra esterlina face ao florim, um ganho de câmbio não realizado. Em dezembro de 2000, a National Grid Indus transferiu a sua sede de direção efetiva para o Reino Unido, embora tenha conservado a sua personalidade jurídica nos Países Baixos, que aplicam, em matéria de direito de sociedades, a teoria dita da constituição. De acordo com a convenção destinada a evitar a dupla tributação assinada entre o Reino dos Países Baixos e o Reino Unido assim como com a legislação fiscal neerlandesa, uma vez que a National Grid Indus não auferiu mais rendimentos tributáveis nos Países Baixos, as mais-valias não realizadas geradas pelo ganho cambial na data da transferência da sua sede de direção efetiva deviam ser objeto de um desconto final pelas autoridades fiscais neerlandesas e tributadas imediatamente, aquando da saída do território neerlandês.

37.      Chamado a pronunciar-se a título prejudicial, o Tribunal de Justiça teve de decidir sobre as questões de saber se a National Grid Indus podia invocar a liberdade de estabelecimento e, sendo caso disso, se o artigo 49.° TFUE se opunha a uma medida fiscal nacional que tributava, com efeito imediato, as mais-valias não realizadas relativas a um ativo de uma sociedade que transfere a sua direção efetiva (e o seu domicílio fiscal) para outro Estado-Membro.

38.      Desde logo, quanto à aplicabilidade do artigo 49.° TFUE, o Tribunal de Justiça verificou se, tendo em conta a inexistência de uma definição uniforme, dada pelo direito da União, das sociedades que podem beneficiar do direito de estabelecimento (15) e perante a faculdade, concedida aos Estados-Membros, de definirem o nexo de ligação que é exigido para se considerar que uma sociedade está constituída segundo o seu direito nacional, beneficiando, consequentemente, da liberdade de estabelecimento (16), uma sociedade numa situação como a da National Grid Indus podia opor essa liberdade à legislação fiscal nacional.

39.      Sublinhando que, no processo principal, a transferência de sede de direção efetiva da National Grid Indus para o Reino Unido não tinha afetado a qualidade de sociedade de direito neerlandês desta empresa, uma vez que o Reino dos Países Baixos aplica a teoria dita da constituição e que, portanto, a legislação nacional se limitava a associar, para as sociedades constituídas em conformidade com o direito nacional, consequências fiscais à referida transferência entre Estados-Membros (17), o Tribunal de Justiça concluiu daí que essa transferência não tinha nenhuma incidência na possibilidade de essa sociedade invocar o artigo 49.° TFUE (18).

40.      Seguidamente, o Tribunal de Justiça constatou a existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento. Segundo o Tribunal de Justiça, uma sociedade de direito neerlandês que pretenda transferir a sua sede de direção efetiva para fora do território neerlandês sofre uma desvantagem de tesouraria relativamente a uma sociedade semelhante que mantenha a sua sede de direção efetiva nos Países Baixos, em razão do caráter imediato da tributação a que está sujeita, de natureza a desencorajá-la de proceder à transferência da sua sede para outro Estado-Membro (19).

41.      A diferença de tratamento assim verificada não se explica por uma diferença de situação objetiva. Com efeito, relativamente à legislação de um Estado-Membro que visa tributar as mais-valias geradas no seu território, a situação de uma sociedade constituída segundo a legislação do referido Estado-Membro, que transfere a sua sede para outro Estado-Membro, é semelhante à de uma sociedade igualmente constituída segundo a legislação do primeiro Estado-Membro e que mantém a sua sede nesse Estado-Membro, no que respeita à tributação das mais-valias relativas aos ativos, que foram geradas no primeiro Estado-Membro antes da transferência de sede (20).

42.      Por último, no quadro do exame da justificação principal aduzida pelos Governos que apresentaram observações no processo National Grid Indus, já referido, a saber, a repartição do poder tributário entre os Estados-Membros, o Tribunal de Justiça, embora tenha considerado que a regulamentação neerlandesa era adequada para garantir esse objetivo de interesse geral (21) e que o estabelecimento definitivo do montante do imposto no momento em que a sociedade transfere a sua sede de direção efetiva para outro Estado-Membro era proporcionado a esse objetivo (22), entendeu, em contrapartida, que a cobrança imediata do imposto era desproporcionada ao referido objetivo.

43.      A este respeito, enquanto a Comissão e a National Grid Indus defendiam a ideia de uma cobrança diferida da dívida fiscal até ao momento da realização do ativo (cessão, no caso concreto), acompanhada de diferentes declarações subscritas pela sociedade em causa (23), os Estados-Membros alegavam que apenas a cobrança imediata do imposto no momento da transferência da sede de direção efetiva permitia preservar o exercício da sua competência fiscal, sem uma sobrecarga administrativa excessiva (24).

44.      O Tribunal de Justiça adotou uma solução equilibrada. Consciente das dificuldades e do encargo administrativo que implica, para a sociedade em causa, o acompanhamento transfronteiriço dos ativos quando a situação patrimonial dessa sociedade é complexa, o Tribunal de Justiça rejeitou a aplicação sistemática de uma cobrança diferida, acompanhada de diferentes declarações, como propunha a Comissão. Com efeito, segundo o Tribunal de Justiça, uma solução dessa natureza não seria necessariamente menos atentatória da liberdade de estabelecimento que a cobrança imediata da dívida fiscal correspondente à mais-valia realizada (25).

45.      Em contrapartida, o Tribunal de Justiça referiu que, noutras situações, a natureza e a extensão do património da sociedade permitem assegurar facilmente o acompanhamento transfronteiriço dos elementos do referido património relativamente aos quais se verificou uma mais-valia no momento em que a sociedade em causa transferiu a sede da sua direção efetiva para outro Estado-Membro (26).

46.      Nestas condições, o Tribunal de Justiça declarou, no n.° 73 do acórdão National Grid Indus, já referido, que «uma legislação nacional que oferece, à sociedade que transfere a sede da sua direção efetiva para outro Estado-Membro, a opção entre, por um lado, o pagamento imediato do montante do imposto, que gera uma desvantagem em matéria de tesouraria para essa sociedade, mas a dispensa de ulteriores encargos administrativos, e, por outro, o pagamento diferido do montante do referido imposto, acrescido, se for caso disso, de juros segundo a legislação nacional aplicável, pagamento esse que é necessariamente acompanhado de um encargo administrativo para a sociedade em causa, associado ao seguimento dos ativos transferidos, constitui uma medida que, simultaneamente, é adequada para garantir a repartição equilibrada do poder tributário entre os Estados-Membros e é menos lesiva da liberdade de estabelecimento do que a medida em causa no processo principal. Com efeito, no caso de uma sociedade entender que os encargos administrativos associados à cobrança diferida são excessivos, pode optar pelo pagamento imediato do imposto».

47.      O Tribunal de Justiça acrescentou, no n.° 74 do referido acórdão, que se deve ter igualmente em conta o risco de não cobrança do imposto, o qual aumenta em função do tempo. Segundo ele, este risco pode ser levado em conta pelo Estado-Membro de saída, no âmbito da sua legislação nacional aplicável ao pagamento diferido das dívidas fiscais, mediante medidas como a constituição de uma garantia bancária.

48.      Quanto à primeira acusação da presente ação, os ensinamentos a retirar do acórdão National Grid Indus, já referido, situam-se nos três níveis da análise desenvolvida pelo Tribunal de Justiça nesse acórdão, a saber, nas fases da aplicabilidade da liberdade de estabelecimento, da restrição à referida liberdade e da justificação do artigo 76.°-A do CIRC.

49.      Quanto ao primeiro aspeto, a ninguém passará despercebido que há diferenças de contexto jurídico entre a situação na origem do processo National Grid Indus, já referido, e a regulamentação portuguesa controvertida. Com efeito, enquanto o Reino dos Países Baixos subscreve a teoria da constituição e, portanto, o seu direito admite sem reservas a hipótese, que se verificou no caso vertente, de transferência da direção efetiva de uma sociedade neerlandesa sem alteração da sua personalidade jurídica, em razão da manutenção da sua sede nos Países Baixos, ao invés, a República Portuguesa não aplica esta teoria.

50.      Nesta medida, contrariamente ao que parece sugerir o Governo alemão na sua resposta à questão escrita colocada pelo Tribunal de Justiça, o direito português não exige a dissolução e a liquidação da sociedade previamente à transferência da sede para outro Estado-Membro, e, consequentemente, a questão da incidência de uma exigência dessa natureza na aplicabilidade da liberdade de estabelecimento não se coloca no caso vertente. Com efeito, é dado assente que o artigo 3.°, n.° 4, do Código das Sociedades Comerciais autoriza as sociedades de direito português a transferirem a sua sede de direção efetiva para outro país, ao mesmo tempo que conservam a sua personalidade jurídica, na condição, porém, de a legislação desse outro país o admitir.

51.      A condição imposta pelo artigo 3.°, n.° 4, do Código das Sociedades Comerciais não me parece poder impedir uma sociedade portuguesa que transfere a sua sede de direção efetiva para outro Estado-Membro de invocar a liberdade de estabelecimento relativamente ao Estado-Membro de saída, pelas três razões seguintes.

52.      Desde logo, porque a conservação da personalidade jurídica da sociedade migrante, prevista pela legislação portuguesa, visa, precisamente, permitir a essa sociedade transformar-se numa sociedade de direito nacional do Estado de acolhimento e, portanto, invocar a liberdade de estabelecimento relativamente ao Estado-Membro de saída (ou de constituição). Assim, no n.° 112 do acórdão Cartesio (27), evocado explicitamente pelo acórdão National Grid Indus, já referido, no seu n.° 30, o Tribunal de Justiça precisou que a faculdade que cabe aos Estados-Membros de não permitirem que uma sociedade abrangida pelo seu direito nacional conserve essa qualidade quando pretende reorganizar-se noutro Estado-Membro, «longe de implicar qualquer imunidade da legislação nacional em matéria de constituição e de dissolução de sociedades à luz das regras do Tratado CE relativas à liberdade de estabelecimento, não pode, em particular, justificar que o Estado-Membro de constituição […] a impeça de se transformar numa sociedade de direito nacional do outro Estado-Membro, desde que este o permita».

53.      Seguidamente, porque, como já referi na exposição da argumentação das partes, o Governo português passou a admitir, na sua resposta à questão escrita colocada pelo Tribunal de Justiça, que o artigo 43.° CE se aplica efetivamente à situação de uma sociedade abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 76.°-A do CIRC em razão do facto de essa sociedade estar autorizada, ao abrigo do direito das sociedades português, a conservar a sua personalidade jurídica.

54.      Por último, porque a questão de uma eventual restrição à reconstituição transfronteiriça de uma sociedade por parte Estado-Membro de acolhimento é regulada pela legislação deste último — questão que, de resto, é suscitada no processo VALE, atualmente pendente no Tribunal de Justiça (28) — e não poderia, em meu entender, ser invocada pelo Estado-Membro de origem para impedir que uma sociedade oponha, contra ele, a liberdade de estabelecimento.

55.      Quanto ao segundo aspeto, isto é, ao caráter restritivo da tributação imediata das mais-valias não realizadas no momento da transferência de uma sociedade portuguesa para outro Estado-Membro, nem o Governo português nem os Governos que intervêm em seu apoio contestam, no seu princípio, e à luz do acórdão National Grid Indus, já referido, que, para a legislação do Estado-Membro de saída, uma sociedade constituída segundo a legislação de um Estado-Membro que transfere a sua sede para outro Estado-Membro se encontra numa situação objetivamente semelhante à de uma sociedade constituída igualmente segundo a legislação do primeiro Estado-Membro e que mantém a sua sede neste Estado-Membro, em matéria de tributação das mais-valias relativas a ativos gerados no primeiro Estado-Membro antes da transferência de sede.

56.      O Governo português sustenta, porém, no essencial, que ambas as sociedades estão sujeitas, por força do direito português, ao mesmo regime fiscal e que, consequentemente, uma sociedade portuguesa que pretenda invocar o artigo 43.° CE não sofre, contrariamente à situação na origem do acórdão National Grid Indus, já referido, uma desvantagem de tesouraria comparativamente com a situação de uma sociedade que mantenha a sua sede em Portugal.

57.      Este argumento não me convence pela simples razão de que, como resulta do resumo da sua tese no n.° 28 das presentes conclusões, o Governo português compara situações não semelhantes, para negar a existência de uma diferença de tratamento. Com efeito, no que diz respeito à tributação controvertida, em minha opinião, não se pode considerar que são objetivamente semelhantes a situação de uma sociedade que, embora transfira a sua sede para outro Estado-Membro, prossegue inteiramente a sua atividade económica através dos ativos afetos a essa atividade e a situação de uma sociedade que mantém a sua sede em Portugal, mas cujos ativos deixam de estar afetos à atividade economicamente tributável. O facto gerador da tributação é diferente em cada um dos dois casos.

58.      Em contrapartida, numa situação interna em que os ativos se mantêm afetos à atividade económica da sociedade portuguesa que transfere a sua sede no interior de Portugal, o Governo português não infirmou a alegação da Comissão segundo a qual as mais-valias relativas a esses ativos não serão tributadas quando tenham sido efetivamente realizadas.

59.      Também não me convence o argumento do Governo português, essencialmente desenvolvido na audiência, segundo o qual a tomada em consideração, pela legislação portuguesa, das menos-valias geradas no seu território até ao momento da transferência conduz igualmente à negação da existência de uma restrição à liberdade de estabelecimento.

60.      A este respeito, basta sublinhar que esse era também o caso do regime neerlandês que impõe um «desconto final» no momento da transferência da sede de direção efetiva para outro Estado-Membro, cujo cálculo se baseia no rendimento tributável da sociedade em causa nos Países Baixos  (29). O facto de a questão das menos-valias não realizadas geradas no território neerlandês não ter sido abordada pelo Tribunal de Justiça, por razões próprias às circunstâncias do processo National Grid Indus, já referido, não significa que a legislação portuguesa não possa entravar a liberdade de estabelecimento. Além disso, esta legislação é igualmente aplicável quando, à semelhança das circunstâncias que estiveram na origem do processo National Grid Indus, já referido, uma sociedade portuguesa que pretende transferir a sua sede para outro Estado-Membro apenas tenha acumulado, no território português, mais-valias não realizadas relativas aos seus ativos.

61.      Por conseguinte, concluo daqui que o artigo 76.°-A do CIRC contém uma restrição à liberdade de estabelecimento, em princípio proibida pelo artigo 43.° CE.

62.      Quanto ao terceiro aspeto, que diz respeito à justificação de uma restrição dessa natureza, permito-me recordar que o Governo português reconhece, na sua resposta à questão escrita colocada pelo Tribunal de Justiça na sequência da prolação do acórdão National Grid Indus, já referido, que, caso o Tribunal de Justiça declarasse, como proponho, que o artigo 76.°-A do CIRC restringe efetivamente o exercício da liberdade de estabelecimento, lhe caberia introduzir no seu direito nacional a possibilidade de as sociedades que pretendem transferir a sua sede para outro Estado-Membro optarem entre o pagamento imediato e a cobrança diferida do imposto sobre as mais-valias não realizadas relativas aos ativos dessas sociedades que tenham sido gerados no território português.

63.      Com efeito, uma vez que o artigo 76.°-A do CIRC impede o exercício desse direito de opção, a declaração do Governo português poderia parecer suficiente para acolher a acusação exposta pela Comissão relativamente ao caráter desproporcionado da exigência que figura nessa disposição à luz do objetivo de interesse geral da preservação da repartição equilibrada do poder tributário entre os Estados-Membros.

64.      Todavia, antes de chegar a essa conclusão, importa responder à argumentação defendida por certos Governos intervenientes, segundo a qual as apreciações efetuadas pelo Tribunal de Justiça no acórdão National Grid Indus, já referido, acerca da necessidade de conceder esse direito de opção eram circunstanciais, dado o caráter atípico da situação na origem daquele acórdão, e não obrigavam, de modo algum, os legisladores de outros Estados-Membros a inserirem essa possibilidade na respetiva ordem jurídica interna.

65.      É verdade que o processo na origem do acórdão National Grid Indus, já referido, era certamente invulgar na medida em que a sociedade em causa possuía um único ativo financeiro. De um modo geral, o acompanhamento transfronteiriço desse elemento do património da sociedade, que decorre da opção da cobrança diferida da dívida fiscal relativa a uma mais-valia gerada antes da transferência de sede e apurada no momento da referida transferência, não oferece dificuldades.

66.      Não é menos verdade que, na sua redação atual, o artigo 76.°-A do CIRC não permite, mesmo numa situação idêntica ou semelhante à que esteve na origem do acórdão National Grid Indus, já referido, o exercício da opção visada no n.° 73 desse acórdão, reproduzido no n.° 43 das presentes conclusões. Atualmente, uma sociedade portuguesa numa situação idêntica ou semelhante à que esteve na origem do dito acórdão National Grid Indus ver-se-ia, portanto, obrigada a impugnar judicialmente a aplicação imediata do imposto sobre as mais-valias não realizadas relativas a um ou mais ativos de natureza financeira.

67.      Por consequência, contrariamente ao que sugerem certos Governos intervenientes, não vejo de que forma a República Portuguesa poderia manter o artigo 76.°-A do CIRC na sua redação atual.

68.      Tal não significa que, na escolha de medidas menos atentatórias da liberdade de estabelecimento diferentes do pagamento imediato do imposto controvertido, a República Portuguesa fique limitada à introdução da possibilidade oferecida à sociedade em causa de optar pelo pagamento diferido da dívida fiscal apurada no momento da transferência de sede. Em especial, não está excluído, como sugeriu o Governo alemão em resposta à questão escrita colocada pelo Tribunal de Justiça, que a oferta às sociedades da opção de escalonamento do pagamento da dívida fiscal apurada no momento da transferência de sede, por exemplo, em vencimentos anuais ou em função da realização das mais-valias, possa constituir uma medida adequada e proporcionada ao objetivo da preservação da repartição equilibrada do poder tributário entre os Estados-Membros.

69.      Todavia, além do facto de que esta proposta não foi avançada pela Comissão na sua ação e que a escolha de medidas alternativas a uma regulamentação restritiva de uma liberdade de circulação prevista pelo Tratado incumbe ao Estado-Membro em causa, é suficiente, para acolher a primeira acusação exposta pela Comissão, constatar que o artigo 76.°-A do CIRC não oferece alternativas à exigência do pagamento imediato do imposto sobre as mais-valias relativas a um ou vários ativos de uma sociedade que transfere a sua sede para outro Estado-Membro, incluindo em situações em que a natureza e a dimensão do património da referida sociedade permitiriam assegurar facilmente o acompanhamento transfronteiriço dos elementos patrimoniais relativamente aos quais foi apurada uma mais-valia no momento em que a sociedade em causa transferiu a sua sede e a sua direção efetiva para outro Estado-Membro (30).

70.      Tendo em conta o que acaba de ser dito, também não é estritamente necessário que o Tribunal de Justiça participe no debate, de resto, bastante animado, que opôs as partes, na audiência, a respeito de duas considerações expostas no acórdão National Grid Indus, já referido, relacionadas com a opção do pagamento diferido do imposto.

71.      Não obstante, no caso de o Tribunal de Justiça decidir pronunciar-se sobre esses aspetos, pretendo formular as seguintes observações.

72.      Recordo que, nos n.os 73 e 74 do referido acórdão National Grid Indus, o Tribunal de Justiça admitiu, por um lado, que o pagamento diferido possa ser «acrescido, se for caso disso, de juros segundo a legislação nacional aplicável» e, por outro, que «o risco de o imposto não ser cobrado[, que o seu pagamento diferido implica], que aumenta em função do decurso do tempo […] [possa] ser levado em conta pelo Estado-Membro em causa, no âmbito da sua legislação nacional aplicável ao pagamento diferido das dívidas fiscais, mediante medidas como a constituição de uma garantia bancária».

73.      Enquanto o Governo português e a maior parte dos Governos intervenientes indicam, no essencial, que estas exigências deveriam ser feitas em todos os casos de aplicação da opção do pagamento diferido, a Comissão considera que a cobrança de juros de mora é intrinsecamente discriminatória, uma vez que, aos contribuintes residentes, o pagamento do imposto só é reclamado mais tarde, sem juros, e, quanto à constituição de uma garantia bancária, entende, à semelhança do Governo dinamarquês, que apenas pode ser reclamada nos casos em que haja um risco real e demonstrado de não cobrança do imposto.

74.      No que diz respeito aos juros — e independentemente do debate semântico que, nomeadamente, opôs o Governo alemão e a Comissão na audiência, em que o primeiro, evocando juros de diferimento ou de cobrança, contestou a qualificação dada pelo segundo —, sublinho que alguns Estados-Membros aplicam juros, às vezes qualificados «de mora», sobre o montante de dívidas fiscais a cargo dos seus contribuintes, incluindo na situação em que o pagamento diferido da dívida fiscal é autorizado (31). Sem ter a certeza disso, penso que é a situação visada pela precisão do Tribunal de Justiça no n.° 73 do acórdão National Grid Indus, já referido.

75.      A crítica feita pela Comissão quanto ao caráter discriminatório de uma exigência dessa natureza não pode prosperar.

76.      Com efeito, numa situação interna de transferência de sede, esses juros não são reclamados pela simples razão de que o montante da dívida fiscal apenas será apurado e, portanto, exigível no momento da realização efetiva das mais-valias. É nesse momento que a dívida fiscal deverá ser paga, sem concessão, em princípio, de um pagamento diferido (32). Ao invés, uma vez que, numa situação transfronteiriça, os Estados-Membros estão autorizados, como afirma o acórdão National Grid Indus, já referido, a fixar o montante da dívida fiscal exigível relativamente às mais-valias não realizadas relativas aos ativos de uma sociedade que transferiu a sua sede para outro Estado-Membro no momento dessa transferência, mas o pagamento efetivo é diferido, os juros devidos sobre este montante podem ser equiparados a juros devidos sobre um crédito concedido a essa sociedade.

77.      Por consequência, em conformidade com o princípio da equivalência, se, na sua regulamentação nacional aplicável, de um modo geral, à cobrança de dívidas fiscais, um Estado-Membro prevê que a opção do pagamento diferido seja acrescida de juros, não há razão objetiva para excluir desta situação uma sociedade que transfira a sua sede para outro Estado-Membro cuja dívida fiscal no Estado-Membro de saída foi apurada no momento dessa transferência.

78.      A constituição de uma garantia bancária parece-me ser uma questão cuja resolução é mais delicada. Embora, no n.° 74 do acórdão National Grid Indus, já referido, o Tribunal de Justiça a considere uma medida entre outras, a verdade é que a aplicação sistemática dessa exigência, com a finalidade de assegurar a cobrança do imposto no contexto do seu pagamento diferido, poderia acarretar um efeito tão restritivo quanto o pagamento imediato desse imposto no momento da transferência de sede para outro Estado-Membro, porquanto pode levar a que o contribuinte fique privado do gozo do património dado em garantia.

79.      Aliás, recordo que, nos seus acórdãos de Lasteyrie du Saillant (33) e N (34), o Tribunal de Justiça considerou desproporcionado aos objetivos de interesse geral prosseguidos pelos Estados-Membros a constituição de garantias exigida às pessoas singulares que transferiam o seu domicílio fiscal para outro Estado-Membro e desejavam beneficiar do pagamento diferido do imposto sobre as mais-valias não realizadas relativas a valores mobiliários (35). No acórdão N, o Tribunal de Justiça precisou que havia meios menos restritivos à luz das liberdades fundamentais, como os mecanismos de assistência mútua introduzidos a nível da União, em especial em matéria de cobrança das dívidas fiscais (36).

80.      Embora, no n.° 74 do acórdão National Grid Indus, já referido, o Tribunal de Justiça não tenha mencionado esses mecanismos, o seu silêncio não pode significar, a meu ver, que tenha pretendido dar carta branca aos Estados-Membros, permitindo-lhes introduzir uma medida (pagamento diferido acompanhado de uma garantia bancária) cujos efeitos podem ser tão restritivos quanto os da medida (do pagamento imediato) considerada nos números precedentes do referido acórdão como um entrave desproporcionado à liberdade de estabelecimento.

81.      Por conseguinte, a fim de preservar tanto a coerência do raciocínio do Tribunal de Justiça no acórdão National Grid Indus, já referido, como a sua coerência externa com a jurisprudência, já referida, de Lasteyrie du Saillant e N, cabe, em minha opinião, interpretar de forma estrita a exigência da constituição de uma garantia bancária que pode acompanhar a opção da cobrança diferida da dívida fiscal.

82.      A este respeito, partilho da posição defendida pela Comissão e pelo Governo dinamarquês, segundo a qual essa garantia apenas poderá ser exigida se existir um risco real e sério de não cobrança da dívida fiscal. Por outro lado, contrariamente ao que defendeu o Governo francês na sua resposta à questão escrita do Tribunal de Justiça e na audiência, entendo que o montante da garantia bancária exigida não pode corresponder ao montante da dívida fiscal cujo pagamento é diferido, sob pena de reintroduzir, de facto, uma medida tão restritiva quanto a do pagamento imediato do imposto no momento da transferência de sede. Essa garantia deve, porém, ser suficiente em função das circunstâncias de cada caso concreto.

83.      Feitas estas considerações, proponho, como já foi indicado, que a primeira acusação aduzida pela Comissão na sua ação seja julgada procedente.

2.      Quanto à tributação imediata das mais-valias não realizadas relativas a ativos afetos a um estabelecimento estável português de uma sociedade não residente, em caso de cessação da atividade do estabelecimento estável ou quando esses ativos são transferidos para fora do território português (artigo 76.°-B do CIRC)

a)      Quanto à tributação imediata das mais-valias não realizadas relativas aos ativos afetos a um estabelecimento estável português de uma sociedade não residente, em caso de cessação da atividade do estabelecimento estável [artigo 76.°-B, alínea a), do CIRC]

i)      Resumo da argumentação das partes

84.      A Comissão entende que as considerações desenvolvidas a propósito do caráter restritivo e desproporcionado das disposições do artigo 76.°-A do CIRC são igualmente válidas para a situação visada no artigo 76.°-B, alínea a), do CIRC. Por conseguinte, não existe nenhuma justificação para submeter, sem exceção, à tributação imediata as mais-valias não realizadas relativas a ativos afetos a um estabelecimento estável português de uma sociedade não residente, em caso de cessação da atividade do estabelecimento estável.

85.      O próprio Governo português remete para a argumentação exposta nos seus articulados respeitantes ao artigo 76.°-A do CIRC. Na sua resposta à questão escrita do Tribunal de Justiça, acrescenta que, mesmo que o acórdão National Grid Indus, já referido, não cubra diretamente a situação visada no artigo 76.°-B, alínea a), do CIRC, o n.° 57 desse acórdão é pertinente. Pressupondo que o Tribunal de Justiça admite que existe uma restrição à liberdade de estabelecimento, é legítimo que a República Portuguesa possa, se não exigir a cobrança imediata do imposto, pelo menos, impor o pagamento diferido, acompanhado, sendo caso disso, de juros e, tendo em conta o risco de não cobrança, mediante a constituição de uma garantia bancária.

86.      Os Governos intervenientes adotam posições divergentes quanto à pertinência do acórdão National Grid Indus, já referido, para a situação contemplada no artigo 76.°-B, alínea a), do CIRC. Enquanto os Governos espanhol e neerlandês consideram que esse acórdão se aplica plenamente à referida situação, acrescentando o segundo que deve ser dada ao contribuinte a escolha entre o pagamento imediato e o pagamento diferido do imposto, os Governos alemão e sueco consideram que essa situação não é afetada por aquele acórdão, constituindo a cobrança imediata do imposto a única medida apropriada em caso de cessação da atividade de um estabelecimento estável no território de um Estado-Membro.

ii)    Análise

87.      O Tribunal de Justiça declarou repetidamente que a liberdade de estabelecimento compreende, para as sociedades constituídas nos termos da legislação de um Estado-Membro e que tenham a sua sede, a sua administração central ou o seu estabelecimento principal na Comunidade Europeia, o direito de exercerem a sua atividade noutros Estados-Membros, através de uma filial, de uma sucursal ou de uma agência (37).

88.      Sempre segundo a jurisprudência, podem ocorrer efeitos restritivos da liberdade de estabelecimento, nomeadamente, quando, em razão de uma regulamentação fiscal, uma sociedade possa ser dissuadida de criar entidades subordinadas, como um estabelecimento estável, noutros Estados-Membros e de exercer as suas atividades por intermédio dessas entidades (38).

89.      Importa observar que esta apreciação foi exposta a respeito da regulamentação fiscal do Estado-Membro de origem da sociedade, e não a respeito da regulamentação do Estado-Membro de acolhimento do seu estabelecimento estável.

90.      Ora, no caso vertente, contrariamente à situação, acima examinada, da transferência da sede de uma sociedade portuguesa para outro Estado-Membro, relativamente à qual a República Portuguesa exerce as suas competências fiscais a título de Estado-Membro de origem, a cobrança de um imposto sobre as mais-valias não realizadas aquando da cessação da atividade de um estabelecimento estável em Portugal de uma sociedade não residente, visada no artigo 76.°-B, alínea a), do CIRC, faz parte do exercício da competência desse Estado-Membro enquanto país de acolhimento do referido estabelecimento.

91.      De acordo com o disposto no artigo 43.° CE, a obrigação que incumbe ao Estado-Membro de acolhimento consiste em assegurar o benefício do tratamento nacional (39).

92.      Consequentemente, há que encontrar a situação interna comparável à da sociedade não residente cujo estabelecimento estável cessa as suas atividades no território português, relativamente à qual se poderia, eventualmente, verificar uma diferença de tratamento discriminatória.

93.      As partes no presente litígio debateram muito pouco esta questão.

94.      Todavia, a situação de um estabelecimento estável visada no artigo 76.°-B, alínea a), do CIRC é objetivamente comparável à de um estabelecimento estável, situado em Portugal, de uma sociedade estabelecida neste mesmo Estado-Membro.

95.      Não ignoro que, como sublinhou o Governo alemão ao contestar a comparabilidade das situações, enquanto, numa situação puramente interna, um estabelecimento e a sociedade da qual ele depende formam uma unidade do ponto de vista fiscal, um estabelecimento estável ligado a uma sociedade não residente é considerado uma entidade fiscal autónoma (40), segundo a prática jurídica internacional, tal como se reflete nos artigos 5.° e 7.° do modelo de convenção fiscal respeitante ao rendimento e ao património elaborado pela Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económicos (OCDE). Assim, de acordo com a repartição de competência indicada no artigo 7.° do modelo de convenção, o Governo português admite também que a República Portuguesa exerça, em princípio, a sua competência fiscal apenas sobre os rendimentos imputáveis a um estabelecimento estável de uma sociedade não residente de outro Estado-Membro. O direito da União não se opõe a esta modalidade de repartição da competência fiscal entre os Estados-Membros, nem, para esse efeito, à qualificação de um estabelecimento estável como uma entidade fiscal autónoma (41), a saber, análoga a uma empresa que trate com absoluta independência com a empresa da qual o estabelecimento emana.

96.      Todavia, não creio que isso implique que as situações desses dois estabelecimentos estáveis, um no contexto transfronteiriço, o outro no contexto puramente interno, possam ser objetivamente comparáveis a pretexto de que a República Portuguesa perde a sua competência fiscal apenas no primeiro caso uma vez que os ativos são transferidos para outro Estado-Membro.

97.      Se assim fosse, o Tribunal de Justiça deveria igualmente ter seguido esse raciocínio no acórdão National Grid Indus, já referido, a propósito da situação de uma sociedade de um Estado-Membro que transfere a sua sede de direção efetiva para outro Estado-Membro, relativamente à qual, após a transferência, o Estado-Membro de origem perde a sua competência fiscal, comparada com a situação de uma sociedade que transfere a sua sede no interior do território do primeiro Estado-Membro, relativamente à qual esse Estado-Membro mantém a sua competência fiscal. Ora, como já foi salientado, o Tribunal de Justiça considerou estas duas situações objetivamente comparáveis.

98.      Por outro lado, no acórdão Lidl Belgium, já referido, o Tribunal de Justiça não considerou que as disposições do modelo de convenção fiscal da OCDE impeçam que se compare a situação de um estabelecimento estável de uma sociedade no mesmo Estado-Membro com a de um estabelecimento estável de uma mesma sociedade situada noutro Estado-Membro, a fim de identificar uma restrição à liberdade de estabelecimento (42). De resto, não é contestado que a atribuição da qualidade de entidade fiscal autónoma a um estabelecimento estável de uma sociedade não residente constitui uma ficção com o simples intuito de facilitar o exercício das competências fiscais repartidas entre os Estados-Membros em causa (43).

99.      Consequentemente, atendendo ao critério de comparação seguido, não deixa de se verificar uma restrição à liberdade de estabelecimento, porquanto, contrariamente à situação transfronteiriça, a cessação da atividade do estabelecimento nacional de uma sociedade portuguesa não implica a tributação imediata das mais-valias não realizadas relativas aos ativos transferidos para a referida sociedade.

100. O Governo português defende ainda a tese de que a cessação da atividade de um estabelecimento estável e a transferência dos seus ativos para outro Estado-Membro se assemelha, na hipótese de uma situação puramente interna, ao fim da afetação dos ativos em causa a uma atividade económica. Na medida em que as mais-valias não realizadas são tributadas nas duas situações, não há diferença de tratamento.

101. Este argumento não me convence pelos mesmos motivos acima expostos a propósito do caso de uma sociedade que transferiu a sua sede para outro Estado-Membro: os ativos imputáveis a um estabelecimento estável que sai do território português continuam a estar afetos à atividade económica deste último, mesmo que esta atividade seja exercida noutro Estado-Membro. Por conseguinte, não me parece possível, para efeitos da aplicação da liberdade de estabelecimento protegida pelo Tratado, considerar comparáveis a cessação de qualquer atividade económica e a cessação da atividade económica realizada no território de um Estado-Membro em particular.

102. Não creio, contrariamente ao que o Governo português expôs na audiência, que a afirmação feita no n.° 57 do acórdão National Grid Indus, já referido, possa desmentir esta conclusão. Embora o Tribunal de Justiça tenha recordado nesse número que os «ativos de uma sociedade são diretamente afetados a atividades económicas destinadas a gerar um lucro», esta afirmação não foi, porém, efetuada no contexto do caráter restritivo da regulamentação neerlandesa, mas no quadro da análise da sua proporcionalidade na medida em que não tinha em conta as menos-valias realizadas posteriormente à transferência da sede de direção efetiva de uma sociedade para outro Estado-Membro. Por conseguinte, do n.° 57 do acórdão National Grid Indus, já referido, não se pode retirar a consequência de que, por um lado, o fim da afetação dos ativos de um estabelecimento estável a qualquer atividade num Estado-Membro e, por outro, a transferência desses ativos para outro Estado-Membro aquando da cessação da atividade do referido estabelecimento estável no primeiro Estado-Membro são situações comparáveis.

103. Quanto ao resto, como sustentou a Comissão e o Governo neerlandês na sua resposta à questão escrita colocada pelo Tribunal de Justiça, podem ser feitas considerações análogas às que foram desenvolvidas a propósito das sociedades que transferem a sua sede para outro Estado-Membro, relativamente à tributação imediata das mais-valias não realizadas geradas pelos ativos afetos a um estabelecimento estável aquando da cessação da atividade desse estabelecimento no território português.

104. Em especial, quanto à proporcionalidade da medida nacional, cabe sublinhar que, independentemente da natureza e da dimensão do património afeto ao estabelecimento estável, a cessação da sua atividade em Portugal implica, em todos os casos, o pagamento imediato do imposto sobre as mais-valias não realizadas relativas aos ativos afetos a esse estabelecimento.

105. A meu ver, esta constatação é suficiente para acolher a segunda acusação da Comissão, relativa ao artigo 76.°-B, alínea a), do CIRC.

b)      Quanto à tributação imediata das mais-valias não realizadas relativas a um estabelecimento estável português de uma sociedade não residente, quando esses ativos são transferidos para fora do território português [artigo 76.°-B, alínea b), do CIRC]

i)      Resumo da argumentação das partes

106. Para a Comissão, esta situação não difere fundamentalmente das outras já examinadas. Desde que a sociedade não residente mantenha um estabelecimento estável em Portugal e que os ativos sejam conservados na sede ou noutro estabelecimento situado na União, não há razão para proceder à cobrança imediata do imposto. O direito da República Portuguesa de tributar as mais-valias relacionadas com os ativos, acumuladas no seu território, está suficientemente protegido por uma medida que assegura o cálculo do montante do imposto no momento da transferência dos ativos, sendo o imposto pago aquando da realização efetiva das mais-valias.

107. O Governo português reitera os seus argumentos invocados relativamente às situações já examinadas, precisando que o acórdão National Grid Indus, já referido, não abrange o caso da tributação das mais-valias não realizadas aquando da transferência de ativos entre um estabelecimento estável situado em Portugal e a sociedade não residente da qual depende ou outro estabelecimento estável da sociedade não residente situado noutro Estado-Membro.

108. Os Governos intervenientes partilham, no essencial, da posição do Governo português.

109. Os Governos alemão e sueco observam, antes de mais, que a situação da transferência de ativos entre um estabelecimento estável português e a sociedade a que pertence, estabelecida noutro Estado-Membro, não é comparável com a situação de uma transferência equivalente entre um estabelecimento estável português e a sua sociedade portuguesa.

110. Seja como for, no entender, nomeadamente, dos Governos alemão, neerlandês e sueco, a tributação imediata no momento da transferência é absolutamente necessária para salvaguardar a repartição das competências fiscais e, segundo o Governo sueco, prevenir o risco de evasão fiscal. A jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de transferências transfronteiriças de lucros ou de perdas é aplicável. Os Governos neerlandês e sueco insistem no facto de que, contrariamente à situação na origem do acórdão National Grid Indus, já referido, em que apenas estava em causa um único ativo no momento da transferência da sede de direção efetiva da sociedade, a transferência de ativos de um estabelecimento estável para outro Estado-Membro implica um processo contínuo que, normalmente, é muito difícil de acompanhar, em razão não apenas do elevado número de ativos em causa mas também da natureza diversificada desses ativos, visto que alguns deles, como os equipamentos, são objeto de amortizações, e outros, como o petróleo, estão incorporados em mercadorias que, também elas, são objeto de transformações. Consequentemente, por vezes é impossível ou, de qualquer modo, muito difícil introduzir o diferimento da cobrança do imposto.

ii)    Análise

111. Quanto ao caráter restritivo das disposições do artigo 76.°-B, alínea b), do CIRC e relativamente à argumentação exposta pelos Governos alemão e sueco acerca da não comparabilidade da transferência de ativos, por um lado, entre um estabelecimento estável situado em Portugal e a sua sociedade não residente ou outro estabelecimento estável da referida sociedade situado noutro Estado-Membro e, por outro, entre um estabelecimento estável e a sua sociedade, ambos situados em Portugal, permito-me remeter para as observações feitas a este respeito nos n.os 94 a 99 das presentes conclusões.

112. Para os devidos efeitos, e apesar de o Tribunal de Justiça ser reticente, pelo menos implicitamente, em comparar estas situações (44), acrescento que se tivéssemos de comparar, como por vezes foi defendido pela doutrina fiscalista (45), duas situações transfronteiriças, a saber, a de um estabelecimento estável que transfere os seus ativos para a sua sociedade ou para outro estabelecimento estável, situados noutro Estado-Membro, e a de uma sociedade portuguesa que transfere os seus ativos para um estabelecimento estável situado noutro Estado-Membro, o Governo português indicou claramente durante o presente processo que, na segunda hipótese, a transferência de ativos não daria lugar ao pagamento de um imposto sobre as mais-valias não realizadas relativas aos ativos em causa, geradas em território português.

113.  No que respeita à justificação da restrição, saliento que a Comissão não emite críticas quanto à idoneidade do artigo 76.°-B, alínea b), do CIRC para assegurar a prossecução do objetivo de interesse geral apresentado pelo Governo português e pela maioria dos Governos intervenientes, a saber, a salvaguarda da repartição do poder tributário entre os Estados-Membros, sem que seja necessário considerar esse objetivo juntamente com o da prevenção da evasão fiscal (46). A Comissão reconhece também, especialmente após o acórdão National Grid Indus, já referido, que o montante definitivo do imposto pode ser fixado no momento em que os ativos são transferidos para outro Estado-Membro.

114. Penso que o Tribunal de Justiça pode tê-lo em conta.

115. Em contrapartida, tal como nas situações examinadas anteriormente, a Comissão contesta o caráter proporcionado da restrição decorrente do artigo 76.°-B, alínea b), do CIRC, por considerar que a cobrança diferida do imposto constitui uma medida mais apropriada.

116. A este respeito, os Governos português e os intervenientes expuseram, essencialmente, as dificuldades e os encargos administrativos que os estabelecimentos em causa deveriam suportar, bem como as Administrações Fiscais dos Estados-Membros, no cálculo do montante do imposto devido e no acompanhamento dos ativos transferidos, atendendo à sua natureza, à sua diversidade e ao seu número, caso fosse introduzida a cobrança diferida.

117. À semelhança do Tribunal de Justiça no acórdão National Grid Indus, já referido (47), não sou insensível a estas considerações. Com efeito, as referidas considerações podem, em alguns casos, que, de resto, poderão constituir a maioria, justificar a aplicação imediata de um imposto.

118. Contudo, como nas outras hipóteses examinadas anteriormente, tais considerações não constituem um obstáculo ao acolhimento da terceira acusação da Comissão.

119. Com efeito, o artigo 76.°-B, alínea b), aplica-se, de um modo geral, à transferência de um ou de vários ativos, independentemente da natureza e da dimensão do património afeto ao estabelecimento estável de uma sociedade estabelecida noutro Estado-Membro. Assim, mesmo as mais-valias não realizadas relativas ao único ativo financeiro desse estabelecimento estável, transferido a favor da sua sociedade ou de outro estabelecimento estável da referida sociedade, situados noutro Estado-Membro, são igualmente tributadas de imediato no momento da transferência.

120. Esta apreciação é, a meu ver, suficiente para julgar a ação procedente também quanto a este ponto.

121. Além disso, não penso que, na situação visada pelo artigo 76.°-B, alínea b), do CIRC, e contrariamente ao caso da transferência da sede de uma sociedade ou da cessação das atividades de um estabelecimento estável, a opção da cobrança diferida possa estar subordinada à constituição de uma garantia bancária, pois o Estado-Membro onde o estabelecimento estável se situa continua a conservar a sua competência fiscal a seu respeito, incluindo após a transferência dos referidos ativos. A presença desse estabelecimento estável no território do Estado-Membro «de saída» poderá, portanto, em princípio, ser suficiente para garantir a cobrança da dívida fiscal.

122. Atendendo a todas estas considerações, sugiro que o Tribunal de Justiça julgue a ação da Comissão parcialmente procedente e parcialmente improcedente.

III — Quanto às despesas

123. Por força do artigo 69.°, n.° 2, do Regulamento de Processo, a parte vencida é condenada nas despesas, se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a Comissão apresentado um pedido nesse sentido, sugiro que a República Portuguesa seja condenada nas despesas. Em conformidade com o disposto no artigo 69.°, n.° 4, do Regulamento de Processo, proponho que os Estados-Membros que intervieram no processo suportem as suas próprias despesas.

IV — Conclusão

124. Atendendo às considerações precedentes, proponho que o Tribunal de Justiça:

«—      declare que a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 43.° CE, ao adotar e ao manter as disposições dos artigos 76.°-A e 76.°-B, alíneas a) e b), do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, aplicáveis, respetivamente, em caso de transferência, por uma sociedade portuguesa, da sua sede e da sua direção efetiva para outro Estado-Membro, em caso de cessação das atividades de um estabelecimento estável em Portugal e em caso da transferência dos ativos desse estabelecimento estável, de Portugal para outro Estado-Membro, as quais preveem, em todas as hipóteses, a tributação imediata das mais-valias não realizadas relativas aos ativos dessas entidades no momento da saída do território português, independentemente da natureza e da dimensão do património das sociedades e dos estabelecimentos estáveis em causa;

¾        julgue a ação improcedente quanto ao restante;

¾        condene a República Portuguesa nas despesas da Comissão Europeia;

¾        decida, nos termos legais, sobre as despesas do Reino da Dinamarca, da República Federal da Alemanha, do Reino de Espanha, da República Francesa, do Reino dos Países Baixos, da República da Finlândia, do Reino da Suécia e do Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte.»


1 —      Língua original: francês.


2 —      Uma vez que o prazo para dar cumprimento ao parecer fundamentado emitido pela Comissão expirou em fevereiro de 2009, deve fazer-se referência às disposições do Tratado CE.


3 —      Acordo de 2 de maio de 1992 (JO 1994, L 1, p. 3).


4 —      A saber, o Reino da Dinamarca, a República Federal da Alemanha, o Reino de Espanha, a República Francesa, o Reino dos Países Baixos, a República da Finlândia, o Reino da Suécia e o Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte.


5—      V. processos pendentes no Tribunal de Justiça, Comissão/França (C-64/11); Comissão/Dinamarca (C-261/11); e Comissão/Países Baixos (C-301/11).


6 —      C-371/10 (Colet., p. I-12273).


7 —      Acórdão National Grid Indus, já referido (n.° 86 e n.° 2, segundo travessão, da parte decisória).


8 —      V., por exemplo, acórdãos de 31 de março de 1992, Comissão/Itália (C-362/90, Colet., p. I-2353, n.° 8); de 26 de abril de 2007, Comissão/Finlândia (C-195/04, Colet., p. I-3351, n.° 21); de 3 de junho de 2010, Comissão/Espanha (C-487/08, Colet., p. I-4843, n.° 70); e de 24 de maio de 2011, Comissão/Áustria (C-53/08, Colet., p. I-4309, n.° 128).


9 —      V., em especial, acórdãos de 9 de novembro de 1999, Comissão/Itália (C-365/97, Colet., p. I-7773, n.° 35); de 10 de abril de 2003, Comissão/Portugal (C-392/99, Colet., p. I-3373, n.° 133); e de 22 de setembro de 2005, Comissão/Bélgica (C-221/03, Colet., p. I-8307, n.° 37).


10 —      V. acórdãos de 29 de setembro de 1998, Comissão/Alemanha (C-191/95, Colet., p. I-5449, n.° 55); de 14 de junho de 2007, Comissão/Bélgica (C-422/05, Colet., p. I-4749, n.° 25); de 18 de dezembro de 2007, Comissão/Espanha (C-186/06, Colet., p. I-12093, n.° 15); de 10 de setembro de 2009, Comissão/Portugal (C-457/07, Colet., p. I-8091, n.° 55); e de 14 de outubro de 2010, Comissão/Áustria (C-535/07, Colet., p. I-9483, n.° 41).


11—      Idem.


12 —      V. acórdãos de 11 de julho de 1984, Comissão/Itália (51/83, Recueil, p. 2793, n.os 6 e 7); de 18 de dezembro de 2007, Comissão/Espanha, já referido (n.° 15); e de 14 de outubro de 2010, Comissão/Alemanha, já referido (n.° 41).


13 —      V. ponto 2 da resposta de 6 de abril de 2009, anexa à petição inicial.


14 —      V. acórdãos de 10 de dezembro de 2009, Comissão/Reino Unido (C-390/07, n.° 339), e de 3 de junho de 2010, Comissão/Espanha, já referido (n.° 71).


15 —      N.° 26 do acórdão.


16 —      N.° 27 do acórdão.


17 —      N.os 28 e 31 do acórdão.


18 —      N.° 32 do acórdão.


19 —      V. n.° 37 do acórdão.


20 —      N.° 38 do acórdão.


21 —      N.° 48 do acórdão.


22 —      V., nomeadamente, n.os 56 e 64 do acórdão.


23 —      V. n.os 65 e 66 do acórdão.


24 —      V. n.° 67 do acórdão.


25 —      V. n.os 70 e 71 do acórdão.


26 —      N.° 72 do acórdão.


27 —      Acórdão de 16 de dezembro de 2008 (C-210/06, Colet., p. I-9641).


28 —      Processo C-378/10. A este respeito, faço questão de sublinhar que partilho da tese do advogado-geral N. Jääskinen, exposta nos n.os 70 a 73 das suas conclusões apresentadas a 15 de dezembro de 2011 nesse processo, segundo a qual, à luz do princípio da não discriminação, tal como aplicado pelo Tribunal de Justiça na sua jurisprudência, o Estado-Membro de acolhimento também não poderia proibir ou impedir, de forma arbitrária, a operação de reconstituição transfronteiriça de uma sociedade, pela simples razão de o seu direito nacional das sociedades não prever essa operação.


29 —      V., nomeadamente, ponto 22 das considerações do Governo neerlandês no processo National Grid Indus, já referido.


30—      V., neste sentido, acórdão National Grid Indus, já referido (n.° 72).


31—      V., nomeadamente, artigo 1727.°, IV, do Código Geral dos Impostos francês; artigo 6.° do Regulamento grão-ducal luxemburguês, de 28 de dezembro de 1968, que executa os artigos 155.° e 178.° da Lei relativa ao imposto sobre o rendimento. V., igualmente, artigo 414.° do Código do Imposto sobre o Rendimento belga, aplicável ao pagamento diferido do imposto, bem como, na Alemanha, o artigo 234.° da Abgabenordnung de 1 de outubro de 2002.


32—      Se, porém, o Estado-Membro conceder à sociedade em causa a possibilidade de diferir o pagamento do imposto e a sua regulamentação nacional em matéria de cobrança de dívidas fiscais previr o pagamento de juros, estes deverão ser aplicados.


33—      Acórdão de 11 de março de 2004 (C-9/02, Colet., p. I-2409, n.os 47, 56 e 57).


34—      Acórdão de 7 de setembro de 2006 (C-470/04, Colet., p. I-7409, n.° 51).


35—      No contexto do processo de Lasteyrie du Saillant, as garantias exigidas pelas autoridades fiscais francesas podiam ter a forma de um pagamento em espécie efetuado a favor da Tesouraria, de créditos sobre o Tesouro, de uma caução, de valores mobiliários, de mercadorias depositadas em lojas autorizadas pelo Estado e objeto de um warrant endossado à ordem do Tesouro, de hipotecas ou de um penhor de fundo de comércio. No processo N, a garantia constituída consistia num penhor das participações sociais detidas pelo contribuinte numa das suas sociedades.


36—      Acórdão N, já referido (n.os 51 e 53).


37—      V., nomeadamente, acórdãos de 21 de setembro de 1999, SainT-Gobain ZN (C-307/97, Colet., p. I-6161, n.° 35); de 14 de dezembro de 2000, AMID (C-141/99, Colet., p. I-11619, n.° 20); de 15 de maio de 2008, Lidl Belgium (C-414/06, Colet., p. I-3601, n.° 18); de 23 de outubro de 2008, Krankenheim Ruhesitz am Wannsee-Seniorenheimstatt (C-157/07, Colet., p. I-8061, n.° 28); e de 25 de fevereiro de 2010, X Holding (C-337/08, Colet., p. I-1215, n.° 17).


38—      V. acórdão de 28 de fevereiro de 2008, Deutsche Shell (C-293/06, Colet., p. I-1129, n.° 29).V., igualmente, neste sentido, acórdão Lidl Belgium, já referido (n.os 19, 20 e 25).


39—      V., nomeadamente, acórdão Lidl Belgium, já referido (n.° 19).


40—      Nos termos do artigo 5.°, n.° 1, do modelo (na sua versão de julho de 2008, aplicável quando decorria o prazo fixado no parecer fundamentado), um estabelecimento estável designa uma instalação fixa de negócios, através da qual a empresa exerce toda ou parte da sua atividade. Nos termos do n.° 2 desse artigo, o estabelecimento estável compreende, nomeadamente, uma sucursal, um escritório, uma fábrica. O artigo 7.°, n.° 1, do modelo de convenção prevê que se uma empresa de um Estado contratante exercer a sua atividade no outro Estado contratante, por meio de um estabelecimento estável aí situado, os seus lucros apenas podem ser tributados no outro Estado na medida em que forem imputáveis a esse estabelecimento estável. O n.° 2 indica que são imputados ao referido estabelecimento estável os lucros que este obteria como se fosse uma empresa distinta e separada que exercesse as mesmas atividades ou atividades similares, nas mesmas condições ou em condições similares, e tratasse com absoluta independência com a empresa de que é estabelecimento estável.


41 —      V. acórdão Lidl Belgium, já referido (n.° 22).


42—      Acórdão já referido (n.os 23 a 25).


43—      Esta qualificação não é, de resto, aplicável no domínio do imposto sobre o valor acrescentado sobre as transações efetuadas entre uma sociedade e o seu estabelecimento estável: v. acórdão de 23 de março de 2006, FCE Bank (C-210/04, Colet., p. I-2803, n.os 35 a 41).


44 —      V., a este respeito, acórdão de 6 de dezembro de 2007, Columbus Container Services (C-298/05, Colet., p. I-10451), em comparação com as minhas conclusões apresentadas nesse processo (n.os 109 a 122).


45 —      V., nomeadamente, Tenore M. — «The Transfer of Assets From a Permanent Establishment to its General Enterprise in the Light of European Tax Law», Intertax, 2006, 8/9, p. 389.


46—      Quanto a este último objetivo, apresentado pelo Governo sueco, basta recordar que só entra em linha de conta como justificação autónoma se o objetivo específico da restrição consistir em impedir comportamentos destinados a criar expedientes puramente artificiais, desprovidos de realidade económica, com o intuito de escapar ao imposto normalmente devido sobre os rendimentos gerados por atividades no território nacional, o que não foi demonstrado: v., nomeadamente, acórdãos de 18 de junho de 2009, Aberdeen Property Fininvest Alpha (C-303/07, Colet., p. I-5145, n.° 64), e de 21 de janeiro de 2010, SGI (C-311/08, Colet., p. I-487, n.° 65).


47—      V. n.° 70.