ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)
5 de julho de 2012 (*)
«Privilégios e imunidades das Comunidades Europeias — Isenção de impostos nacionais sobre os rendimentos pagos pela União — Tomada em consideração dos rendimentos pagos pela União no cálculo do limite máximo do imposto de solidariedade sobre a fortuna»
No processo C-558/10,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial nos termos do artigo 267.° TFUE, apresentado pelo tribunal de grande instance de Chartres (França), por decisão de 24 de novembro de 2010, entrado no Tribunal de Justiça em 29 de novembro de 2010, no processo
Michel Bourgès-Maunoury,
Marie-Louise Heintz, mulher de M. Bourgès-Maunoury,
contra
Direction des services fiscaux d’Eure-et-Loir,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),
composto por: K. Lenaerts, presidente de secção, R. Silva de Lapuerta, E. Juhász, T. von Danwitz e D. Šváby (relator), juízes,
advogado-geral: P. Cruz Villalón,
secretário: A. Impellizzeri, administradora,
vistos os autos e após a audiência de 23 de novembro de 2011,
vistas as observações apresentadas:
¾ em representação de M. Bourgès-Maunoury e M.-L. Heintz, mulher de M. Bourgès-Maunoury, por T. Davidian, avocat,
¾ em representação do Governo francês, por G. de Bergues e A. Adam, na qualidade de agentes,
¾ em representação do Governo belga, por J.-C. Halleux e M. Jacobs, na qualidade de agentes,
¾ em representação do Governo neerlandês, por C. Wissels e M. de Ree, na qualidade de agentes,
¾ em representação da Comissão Europeia, por F. Clotuche-Duvieusart, I. Martínez del Peral e R. Lyal, na qualidade de agentes,
ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 16 de fevereiro de 2012,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 13.°, segundo parágrafo, do Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades das Comunidades Europeias, anexo inicialmente ao Tratado que institui um Conselho único e uma Comissão única das Comunidades Europeias (JO 1967, 152, p. 13), e posteriormente, por força do Tratado de Amesterdão, ao Tratado CE (a seguir «protocolo»).
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe M. Bourgès-Maunoury e a sua mulher, M.-L. Heintz, à direction des services fiscaux d’Eure-et-Loir, a respeito da tomada em consideração dos rendimentos pagos pela União Europeia no cálculo do limite máximo do imposto de solidariedade sobre a fortuna (a seguir «ISF»).
Quadro jurídico
Direito da União
3 O artigo 13.° do protocolo, na sua versão em vigor à data dos factos do litígio no processo principal, dispunha:
«Os funcionários e outros agentes das Comunidades ficam sujeitos a um imposto que incidirá sobre os vencimentos, salários e emolumentos por elas pagos e que reverterá em seu benefício, de acordo com as condições e o processo fixados pelo Conselho, deliberando sob proposta da Comissão.
Os funcionários e outros agentes das Comunidades ficam isentos de impostos nacionais que incidam sobre os vencimentos, salários e emolumentos pagos pelas Comunidades.»
Direito francês
4 O ISF, que foi instituído pela Lei de finanças de 1989, n.° 88-1149, de 23 de dezembro de 1988 (JORF de 28 de dezembro de 1988, p. 16320), era regulado pelas disposições dos artigos 885.° A a 885.° X do Código Geral dos Impostos (a seguir «CGI»), na sua versão aplicável à data dos factos do litígio no processo principal.
5 O artigo 885.° A do CGI dispunha:
«Estão sujeitos ao imposto anual de solidariedade sobre a fortuna, quando o valor dos seus bens for superior ao limite do primeiro escalão da tabela do artigo 885.° U:
1.° As pessoas singulares que tenham domicílio fiscal em França, em função dos seus bens localizados em França ou fora de França.
[…]
2.° As pessoas singulares que não tenham domicílio fiscal em França, em função dos seus bens localizados em França.
Os casais unidos pelo matrimónio são objeto de uma tributação comum, exceto nos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.° 4 do artigo 6.°
As condições de sujeição serão apreciadas a 1 de janeiro de cada ano.
[…]»
6 O ISF tem um mecanismo de fixação do seu limite máximo, descrito no artigo 885.° V bis do CGI. O referido artigo tem a seguinte redação:
«O [ISF] dos contribuintes que tenham domicílio fiscal em França é reduzido da diferença entre, por um lado, a totalidade deste imposto e dos impostos devidos em França e no estrangeiro pelos rendimentos e proventos do ano anterior, calculados antes da imputação dos créditos de imposto e das retenções não liberatórias, e, por outro lado, 85% da totalidade dos rendimentos líquidos de despesas profissionais do ano anterior após dedução apenas dos défices relativos a categorias de rendimentos cuja imputação seja autorizada pelo artigo 156.° [do CGI], bem como dos rendimentos isentos de imposto sobre o rendimento obtidos no mesmo ano em França ou fora de França e dos proventos submetidos a retenção liberatória. Esta redução não pode exceder uma importância igual a 50% do montante de contribuição resultante da aplicação do artigo 885.° V ou, caso seja superior, o montante do imposto correspondente a um património tributável igual ao limite superior do terceiro escalão da tabela do artigo 885.° U.
As mais-valias são determinadas sem consideração dos limites, reduções e abatimentos previstos pelo presente código.
Para a aplicação do primeiro parágrafo, quando tiver incidido sobre rendimentos de pessoas cujos bens não entram no cálculo da matéria coletável do [ISF], o imposto sobre o rendimento é reduzido de acordo com a percentagem do rendimento destas pessoas em relação ao rendimento total.»
Litígio no processo principal e questão prejudicial
7 M. Bourgès-Maunoury e M.-L. Heintz são antigos funcionários da União e recebem, nessa qualidade, prestações por cessação definitiva de funções ou pensões de aposentação.
8 Domiciliados em França e sujeitos ao ISF, M. Bourgès-Maunoury e M.-L. Heintz apresentaram, nos anos de 2002 a 2004, 2006 e 2007, as suas declarações de ISF sem integrar as prestações e pensões que lhes foram pagas pela União no conjunto dos seus demais rendimentos para o cálculo do limite máximo previsto no artigo 885.° V bis do CGI.
9 Não tendo solicitado a aplicação do limite máximo de ISF relativamente ao ano de 2005, apresentaram, em 7 de julho de 2006, uma declaração retificativa por forma a beneficiarem desse limite máximo sem ter em conta os emolumentos que lhes são pagos pela União.
10 Tendo este pedido sido indeferido pela direction des services fiscaux d’Eure-et-Loir, M. Bourgès-Maunoury e M.-L. Heintz recorreram desse indeferimento para o tribunal de grande instance de Chartres, em 27 de dezembro de 2006. Em aplicação do artigo 24.° do Estatuto dos Funcionários das Comunidades Europeias, solicitaram também assistência à Comissão para esse efeito, a qual lhes foi concedida por decisão de 6 de março de 2007.
11 Por decisão de 10 de outubro de 2007, o tribunal de grande instance de Chartres indeferiu o pedido de M. Bourgès-Maunoury e de M.-L. Heintz.
12 Por acórdão de 27 de novembro de 2008, a cour d’appel de Versailles anulou essa decisão na medida em que indeferira o referido pedido relativamente ao ano de 2005.
13 Por acórdão de 19 de janeiro de 2010, a Cour de cassation negou provimento ao recurso interposto pela Administração Fiscal francesa desse acórdão da cour d’appel de Versailles.
14 Em paralelo, por decisão de 1 de setembro de 2008, a direction des services fiscaux d’Eure-et-Loir procedeu a uma retificação do ISF devido por M. Bourgès-Maunoury e M.-L. Heintz relativamente aos anos de 2002 a 2004, 2006 e 2007, com o fundamento de que os rendimentos que lhes foram pagos pela União deviam ser tidos em conta para o cálculo do limite máximo do ISF.
15 Em 19 de janeiro de 2009, a direction des services fiscaux d’Eure-et-Loir emitiu contra o casal Bourgès-Maunory dois avisos de cobrança do ISF devido relativamente aos referidos anos. A reclamação contra estes avisos, apresentada pelos interessados em 4 de fevereiro de 2009, foi indeferida por decisão dessa direção de 18 de fevereiro de 2009.
16 Em 16 de abril de 2009, M. Bourgès-Maunoury e M.-L. Heintz recorreram desta decisão de indeferimento para o tribunal de grande instance de Chartres invocando os mencionados acórdãos da cour d’appel de Versailles e da Cour de cassation. A direction des services fiscaux d’Eure-et-Loir contrapôs que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia que a isenção fiscal de que os funcionários da União beneficiam não pode em caso algum ter como resultado que se possa considerar que estes últimos não auferem nenhum rendimento.
17 O órgão jurisdicional de reenvio considera que o artigo 885.° V bis do CGI só pode ter como consequência que o conjunto dos rendimentos de uma pessoa singular, incluindo os provenientes da União, sejam tomados em conta no quadro do cálculo do montante da redução do ISF, de modo que este imposto será mais elevado quando são tomados em consideração, para a determinação do limite máximo deste, os rendimentos nacionais e comunitários de uma pessoa singular.
18 O órgão jurisdicional de reenvio salienta, além disso, que a Cour de cassation, no seu acórdão mencionado no n.° 13 do presente acórdão, declarou que o artigo 885.° V bis do CGI tem como efeito onerar indiretamente os rendimentos de origem comunitária dos recorrentes no processo principal.
19 Nestas condições, o tribunal de grande instance de Chartres, tendo dúvidas quanto à interpretação do artigo 13.°, segundo parágrafo, do protocolo, decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«O artigo 13.°, segundo parágrafo, do [capítulo V do] [p]rotocolo […] opõe-se a que o conjunto dos rendimentos de um contribuinte, incluindo os rendimentos comunitários, seja tido em consideração no cálculo do limite máximo para efeitos do imposto [de solidariedade] sobre a fortuna?»
Quanto à questão prejudicial
20 Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, no essencial, se o artigo 13.°, segundo parágrafo, do protocolo deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que, para efeitos da fixação do limite máximo de um imposto como o ISF, toma em consideração os rendimentos, incluindo pensões e prestações por cessação definitiva de funções, pagos pela União aos seus funcionários e aos seus agentes ou aos seus antigos funcionários e aos seus antigos agentes.
21 Quanto aos princípios cuja aplicação permite responder à questão submetida, o Tribunal de Justiça sublinhou, no acórdão de 16 de dezembro de 1960, Humblet/Estado belga (6/60, Recueil, pp. 1125, 1156 e 1157, Colet.,1954-1961, p. 545), que só a isenção das remunerações pagas pela União de qualquer imposto nacional permite às instituições desta última exercer eficazmente o seu poder exclusivo de fixar o montante efetivo dos rendimentos dos seus funcionários e que tal poder seria excluído se os Estados-Membros conservassem o direito de sujeitar ao imposto esses rendimentos segundo o sistema fiscal que lhes é próprio. Assim, foi declarado que os Tratados subtraem as remunerações pagas aos funcionários da União à soberania fiscal dos Estados-Membros e que o referido poder exclusivo desta de fixar o montante efetivo dos rendimentos dos seus funcionários é indispensável não apenas para reforçar a independência dos quadros administrativos da União relativamente aos poderes nacionais mas igualmente para garantir a igualdade de tratamento dos funcionários de nacionalidades diferentes.
22 O protocolo prevê assim uma clara distinção entre, por um lado, os rendimentos de origem nacional sujeitos ao poder das Administrações Fiscais nacionais dos Estados-Membros e, por outro, os rendimentos pagos pela União aos seus funcionários e agentes, que estão exclusivamente sujeitos ao direito desta última quanto ao seu eventual caráter tributável. Esta repartição das competências fiscais respetivas dos Estados-Membros e da União deve excluir qualquer tributação não apenas direta mas igualmente indireta, pelos Estados-Membros, dos rendimentos pagos pela União e não sujeitos à competência destes últimos (acórdãos Humblet/Estado belga, já referido, p. 1158; de 24 de fevereiro de 1988, Comissão/Bélgica, 260/86, Colet., p. 995, n.° 10; de 22 de março de 1990, Tither, C-333/88, Colet., p. I-1133, n.° 12; e de 14 de outubro de 1999, Vander Zwalmen e Massart, C-229/98, Colet., p. I-7113, n.° 21).
23 Como resulta do n.° 2, alínea a), do dispositivo do acórdão Humblet/Estado belga, já referido, o Tribunal de Justiça declarou que o artigo 13.° do protocolo proíbe os Estados-Membros de imporem a um funcionário ou agente da União qualquer tributação que tenha a sua origem, no todo ou em parte, nos rendimentos pagos pela União.
24 No caso em apreço, a situação é análoga à que deu origem ao acórdão Humblet/Estado belga, já referido, dado que os rendimentos pagos pela União aos seus funcionários ou agentes são igualmente tributados indiretamente (v. acórdão Humblet/Estado belga, já referido, p. 1159).
25 Com efeito, relativamente a uma legislação como a que está em causa no processo principal, há que concluir que a tomada em consideração do montante dos rendimentos pagos pela União para efeitos do cálculo do limite máximo de 85% do total dos rendimentos, como prevista no artigo 885.° V bis do CGI, aumenta o montante total dos rendimentos do contribuinte e, por conseguinte, o montante máximo da tributação em sede de ISF, o que equivale a aumentar a taxa final de tributação em prejuízo do funcionário ou do agente da União, como de resto referiu a cour d’appel de Versailles no seu acórdão de 27 de novembro de 2008 mencionado no n.° 12 do presente acórdão.
26 Por conseguinte, a aplicação do artigo 885.° V bis do CGI tem como consequência que os contribuintes são sujeitos a uma tributação que tem por efeito onerar indiretamente os rendimentos que lhes são pagos pela União, como concluiu a Cour de cassation no seu acórdão mencionado no n.° 13 do presente acórdão.
27 A circunstância, invocada pela direction des services fiscaux d’Eure-et-Loir no litígio no processo principal, segundo a qual os rendimentos pagos pela União são tidos em conta não para efeitos da determinação da matéria coletável do imposto, mas apenas no quadro do mecanismo de fixação do limite máximo do ISF, não altera esta análise.
28 Com efeito, o facto de cobrar um imposto nacional, como o ISF, tomando em consideração, para determinar o seu montante final, os rendimentos pagos pela União que estão isentos de impostos nacionais equivale a tributar indiretamente esses rendimentos, em violação do artigo 13.°, segundo parágrafo, do protocolo.
29 Do mesmo modo, a circunstância de o mecanismo de fixação do limite máximo do ISF ter como objetivo limitar o efeito confiscatório deste e determinar as capacidades contributivas reais do contribuinte não permite a tributação indireta, em violação do artigo 13.°, segundo parágrafo, do protocolo, dos rendimentos pagos pela União aos seus funcionários ou aos seus agentes.
30 No interesse da segurança jurídica, há que concluir que, uma vez que os rendimentos pagos pela União e sujeitos aos impostos desta última não podem ser tributados nem direta nem indiretamente por um Estado-Membro e que estão subtraídos à soberania fiscal dos Estados-Membros, a pessoa que aufere tais rendimentos está também isenta da obrigação de declarar o respetivo montante às autoridades de um Estado-Membro.
31 Por último, importa sublinhar que um Estado-Membro pode prever um mecanismo de fixação de um limite máximo de um imposto como o ISF na medida em que esse mecanismo respeite o direito da União, designadamente o artigo 13.° do protocolo.
32 Cumpre, por isso, responder à questão submetida que o artigo 13.°, segundo parágrafo, do protocolo deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que, para efeitos da fixação do limite máximo de um imposto como o ISF, toma em consideração os rendimentos, incluindo pensões e prestações por cessação definitiva de funções, pagos pela União aos seus funcionários e aos seus agentes ou aos seus antigos funcionários e aos seus antigos agentes.
Quanto às despesas
33 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) declara:
O artigo 13.°, segundo parágrafo, do Protocolo relativo aos Privilégios e Imunidades das Comunidades Europeias, anexo inicialmente ao Tratado que institui um Conselho único e uma Comissão única das Comunidades Europeias, e posteriormente, por força do Tratado de Amesterdão, ao Tratado CE, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional, como a que está em causa no processo principal, que, para efeitos da fixação do limite máximo de um imposto como o imposto de solidariedade sobre a fortuna, toma em consideração os rendimentos, incluindo pensões e prestações por cessação definitiva de funções, pagos pela União aos seus funcionários e aos seus agentes ou aos seus antigos funcionários e aos seus antigos agentes.
Assinaturas
* Língua do processo: francês.