ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção)
26 de setembro de 2013 (*)
«Incumprimento de Estado – Fiscalidade – IVA – Diretiva 2006/112/CE – Artigos 306.° a 310.° – Regime especial das agências de viagens – Divergência entre versões linguísticas – Legislação nacional que prevê a aplicação do regime especial a pessoas distintas dos viajantes – Conceitos de ‘viajante’ e de ‘cliente’»
No processo C-450/11,
que tem por objeto uma ação por incumprimento nos termos do artigo 258.° TFUE, entrada em 1 de setembro de 2011,
Comissão Europeia, representada por M. Afonso e L. Lozano Palacios, na qualidade de agentes, com domicílio escolhido no Luxemburgo,
demandante,
contra
República Portuguesa, representada por L. Inez Fernandes e R. Laires, na qualidade de agentes,
demandada,
apoiada por:
República Checa, representada por M. Smolek, T. Müller e J. Očková, na qualidade de agentes,
Reino de Espanha, representado por S. Centeno Huerta, na qualidade de agente,
República Francesa, representada por G. de Bergues e J.-S. Pilczer, na qualidade de agentes,
República da Polónia, representada por M. Szpunar e B. Majczyna, na qualidade de agentes,
República da Finlândia, representada por J. Heliskoski, na qualidade de agente,
intervenientes,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Terceira Secção),
composto por: M. Ilešič, presidente de secção, E. Jarašiūnas, A. Ó Caoimh, C. Toader e C. G. Fernlund (relator), juízes,
advogado-geral: E. Sharpston,
secretário: M. Ferreira, administradora principal,
vistos os autos e após a audiência de 6 de março de 2013,
ouvidas as conclusões da advogada-geral na audiência de 6 de junho de 2013,
profere o presente
Acórdão
1 Na sua petição, a Comissão Europeia pede que o Tribunal de Justiça declare que, ao permitir que as agências de viagens apliquem, nos termos previstos no Decreto-Lei n.° 221/85, de 3 de julho de 1985, o regime especial das agências de viagens aos serviços de viagens vendidos a pessoas distintas dos viajantes, a República Portuguesa não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força dos artigos 306.° a 310.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO L 347, p. 1, a seguir «diretiva IVA»).
Quadro jurídico
Direito da União
2 O artigo 26.° da Sexta Diretiva 77/388/CEE do Conselho, de 17 de maio de 1977, em matéria de harmonização das legislações dos Estados-Membros relativas aos impostos sobre o volume de negócios – Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado: matéria coletável uniforme (JO L 145, p. 1, a seguir «Sexta Diretiva»), na sua versão portuguesa (JO L 145, p. 1; EE 09 F1 p. 54), dispunha:
«1. Os Estados-Membros aplicarão o imposto sobre o valor acrescentado [(a seguir «IVA»)] às operações das agências de viagens, nos termos do presente artigo, quando as agências atuarem em nome próprio perante o cliente e sempre que utilizem, para a realização da viagem, entregas e serviços de outros sujeitos passivos. O presente artigo não se aplica às agências de viagens que atuem unicamente na qualidade de intermediário às quais é aplicável o disposto em A), 3, c), do artigo 11.° Para efeitos do disposto no presente artigo, são igualmente consideradas agências de viagens os organizadores de circuitos turísticos.
2. As operações efetuadas por uma agência de viagens para a realização de uma viagem são consideradas como uma única prestação de serviços realizada pela agência de viagens ao viajante. Esta prestação de serviços será tributada no Estado-Membro em que a agência de viagens tem a sede da sua atividade económica ou um estabelecimento estável a partir do qual é efetuada a prestação de serviços. Considera-se matéria coletável e preço líquido de imposto desta prestação de serviços, na aceção do n.° 3, alínea b), do artigo 22.°, a margem da agência de viagens, isto é, a diferença entre o montante total líquido de [IVA] pago pelo viajante e o custo efetivo suportado pela agência de viagens relativo às entregas e às prestações de serviços de outros sujeitos passivos, na medida em que tais operações se efetuem em benefício direto do viajante.
[...]
4. O [IVA] debitado à agência de viagens por outros sujeitos passivos relativamente às operações referidas no n.° 2 efetuadas em benefício direto do viajante não é dedutível nem reembolsável em nenhum Estado-Membro.»
3 Os artigos 306.° a 310.° da diretiva IVA, na sua versão portuguesa, preveem no capítulo 3 desta diretiva, intitulado «Regime especial das agências de viagens»:
«Artigo 306.°
1. Os Estados-Membros aplicam um regime especial de IVA às operações das agências de viagens em conformidade com o presente capítulo, quando as agências atuarem em nome próprio perante os clientes e sempre que utilizarem, para a realização da viagem, entregas de bens e prestações de serviços efetuadas por outros sujeitos passivos.
O presente regime especial não é aplicável às agências de viagens quando atuarem unicamente na qualidade de intermediário e às quais seja aplicável, para o cálculo do valor tributável, o primeiro parágrafo da alínea c) do artigo 79.°
2. Para efeitos do presente capítulo, os organizadores de circuitos turísticos são considerados agências de viagens.
Artigo 307.°
As operações efetuadas nas condições previstas no artigo 306.° por uma agência de viagens para a realização de uma viagem são consideradas como uma única prestação de serviços realizada pela agência de viagens ao cliente.
A prestação de serviços única é tributada no Estado-Membro em que a agência de viagens tem a sede da sua atividade económica ou um estabelecimento estável a partir do qual é efetuada a prestação de serviços.
Artigo 308.°
Relativamente à prestação de serviços única efetuada pela agência de viagens, considera-se valor tributável e preço líquido de IVA, na aceção do ponto 8) do artigo 226.°, a margem da agência de viagens, isto é, a diferença entre o montante total, líquido de IVA, pago pelo cliente e o custo efetivo suportado pela agência de viagens relativo às entregas de bens e às prestações de serviços efetuadas por outros sujeitos passivos, na medida em que tais operações sejam efetuadas em benefício direto do cliente.
[...]
Artigo 310.°
O IVA liquidado à agência de viagens por outros sujeitos passivos relativamente às operações referidas no artigo 307.° efetuadas em benefício direto do cliente não é dedutível nem reembolsável em nenhum Estado-Membro.»
Direito português
4 O artigo 1.° do Decreto-Lei n.° 221/85 dispõe que o regime especial das agências de viagens se aplica «às operações das agências de viagens e organizadores de circuitos turísticos que atuem em nome próprio perante os clientes e recorram, para a realização dessas operações, a transmissões de bens ou a prestações de serviços efetuadas por terceiros».
Procedimento pré-contencioso e tramitação processual no Tribunal de Justiça
5 Em 23 de março de 2007, a Comissão enviou à República Portuguesa uma notificação para cumprir, na qual alegava que, ao permitir que o regime especial das agências de viagens fosse aplicado a serviços prestados a pessoas distintas dos viajantes, esse Estado-Membro tinha infringido o disposto nos artigos 306.° a 310.° da diretiva IVA.
6 No seu ofício de resposta datado de 31 de maio de 2007, a República Portuguesa contestou a interpretação dada pela Comissão aos artigos 306.° a 310.° da diretiva IVA.
7 Não tendo ficado convencida com aquela resposta, a Comissão enviou, em 29 de fevereiro de 2008, um parecer fundamentado, ao qual a República Portuguesa respondeu por ofício de 30 de abril de 2008 e no qual mantinha a sua posição.
8 Nestas condições, a Comissão decidiu intentar a presente ação.
9 Por despacho do presidente do Tribunal de Justiça de 24 de janeiro de 2012, foram admitidas as intervenções da República Checa, do Reino de Espanha, da República Francesa, da República da Polónia e da República da Finlândia em apoio dos pedidos da República Portuguesa.
Quanto à ação
Argumentos das partes
10 A Comissão considera que o regime especial das agências de viagens previsto nos artigos 306.° a 310.° da diretiva IVA é aplicável apenas em caso de venda de viagens a viajantes (a seguir «interpretação baseada no viajante»). Acusa a República Portuguesa de ter autorizado a aplicação deste regime em caso de venda de viagens a qualquer tipo de clientes (a seguir «interpretação baseada no cliente»).
11 Essa instituição recorda que o disposto nos referidos artigos 306.° a 310.° reproduz, no essencial, o disposto no artigo 26.°, n.os 1 a 4, da Sexta Diretiva.
12 Ora, a Comissão sustenta que, quando a Sexta Diretiva foi adotada, a intenção do legislador da União era restringir a aplicação do regime especial das agências de viagens às prestações fornecidas ao viajante, consumidor final. Em apoio desta afirmação, alega que cinco das seis versões linguísticas iniciais desta diretiva utilizam sistematicamente o termo «viajante» no artigo 26.°, de forma perfeitamente clara e coerente. Daqui resulta que este termo não necessita de nenhum esforço de interpretação que transcenda o seu sentido literal, de modo que a interpretação deste artigo 26.° é unívoca.
13 A utilização do termo «cliente» («customer») na versão inglesa da Sexta Diretiva constitui um erro, que só foi, aliás, cometido uma única vez, no artigo 26.°, n.° 1, desta última. Uma vez que esta versão inglesa serviu de base às traduções posteriores da Sexta Diretiva, esse termo foi reproduzido, por várias vezes, nessas traduções, bem como em numerosas versões linguísticas dos artigos 306.° a 310.° da diretiva IVA.
14 Na audiência no Tribunal de Justiça, a Comissão precisou que a versão francesa da Sexta Diretiva, que utiliza unicamente o termo «viajante», era o texto sobre o qual todos os Estados-Membros em causa se tinham debruçado e tinham chegado a acordo.
15 A Comissão salienta que as disposições relativas ao regime especial das agências de viagens devem ser objeto de uma interpretação uniforme. A coexistência da interpretação baseada no viajante e da interpretação baseada no cliente dá origem a duplas tributações e a distorções de concorrência.
16 A Comissão precisa, referindo-se ao artigo 26.° da Sexta Diretiva, as razões pelas quais, embora seja utilizado em certas versões linguísticas dos artigos 306.° a 310.° da diretiva IVA, o termo «cliente» deve, no entanto, ser entendido no sentido de «viajante».
17 Em primeiro lugar, a Comissão considera que, caso fosse acolhida a interpretação baseada no cliente, o requisito previsto no artigo 26.°, n.° 1, da Sexta Diretiva, segundo o qual a agência atua «em nome próprio», seria redundante, visto que um operador atua sempre em nome próprio perante o seu cliente. Daqui resulta, segundo a Comissão, que estes termos não devem ser objeto de uma interpretação literal e que o termo «cliente» deve ser entendido no sentido que lhe é dado nas restantes cinco versões linguísticas iniciais desta diretiva, isto é, no sentido de «viajante». A este respeito, a Comissão sustenta que uma agência de viagens pode atuar perante um «viajante» tanto em nome próprio como em nome e por conta de terceiros.
18 Em seguida, se o legislador da União tivesse tido a intenção de conferir ao termo «cliente» não o sentido de «viajante», mas o de qualquer tipo de «clientes», resultariam daí consequências ilógicas, na medida em que o regime especial seria aplicável mesmo quando uma agência atua na qualidade de intermediário, nomeadamente quando angaria clientes por conta de um prestador de serviços de hotelaria, em conformidade com um contrato de mediação celebrado com este último.
19 A Comissão considera que este caráter ilógico é tanto mais evidente quanto o termo «viajante» é utilizado na versão inglesa do artigo 26.°, n.° 2, primeiro período, da Sexta Diretiva, nos termos da qual, «[a]s operações efetuadas por uma agência de viagens para a realização de uma viagem são consideradas como uma única prestação de serviços realizada pela agência de viagens ao viajante [‘traveller’]». Ora, segundo a Comissão, este período não teria sentido se o regime especial das agências de viagens fosse aplicado sem levar em conta a qualidade do destinatário dos serviços. Se tal fosse o caso, o legislador deveria, segundo essa instituição, ter utilizado, de forma mais sistemática, o termo «cliente».
20 A Comissão acrescenta que as seis versões linguísticas iniciais do artigo 26.°, n.° 2, terceiro período, da Sexta Diretiva utilizam o termo «viajante». Por conseguinte, não seria coerente fazer referência ao «montante total [...] pago pelo viajante» se o regime especial das agências de viagens pudesse ser aplicado independentemente da qualidade do cliente da agência de viagens. Com efeito, segundo a Comissão, quando essa agência efetua uma venda a outra agência de viagens, é necessário calcular a margem referida nesse terceiro período do n.° 2 do artigo 26.°, levando em conta a diferença entre o montante a pagar pelo viajante e os custos suportados pela primeira destas agências, o que não seria pertinente se não existisse uma relação entre esta agência e o viajante.
21 Por último, a Comissão invoca dois outros argumentos. Salienta, em primeiro lugar, que o disposto no artigo 26.° da Sexta Diretiva permaneceu em vigor durante cerca de 30 anos, até à revogação desta diretiva, e que as versões linguísticas deste artigo, posteriores às seis versões iniciais, adotam, na sua grande maioria, a redação das cinco versões iniciais idênticas, utilizando unicamente o termo «viajante». Apenas cinco versões linguísticas posteriores deste artigo se referem à versão inglesa. Em segundo lugar, a Comissão recorda que as exceções ao regime geral do IVA devem ser interpretadas de forma estrita.
22 Nestas condições, apesar de a interpretação baseada no cliente ser a mais adequada para atingir os objetivos prosseguidos pelo regime especial das agências de viagens, esta circunstância não implica que seja correta. A Comissão reconhece que este regime especial pode ser melhorado, mas sublinha que os Estados-Membros não podem adotar, por iniciativa própria, tal interpretação, afastando-se das disposições que figuram expressamente na Sexta Diretiva. A este respeito, a Comissão faz referência, em particular, ao n.° 28 do acórdão de 6 de outubro de 2005, Comissão/Espanha (C-204/03, Colet., p. I-8389). Acrescenta que o referido regime especial foi introduzido para fazer face à situação existente em 1977, numa época em que as viagens eram principalmente vendidas diretamente ao viajante pelas agências de viagens. O setor em causa conta hoje com um maior número de operadores, mas compete ao legislador da União, e não aos Estados-Membros, colmatar as insuficiências deste regime especial.
23 Na sequência das observações apresentadas pelos Estados-Membros intervenientes, apesar de manter firmemente a interpretação baseada no viajante, a Comissão flexibilizou ligeiramente a sua posição, indicando que o termo «viajante» designa não apenas a pessoa singular mas também a pessoa coletiva que compra um pacote de serviços para fazer face às suas próprias necessidades e que é, portanto, o destinatário final do serviço de viagens. Por conseguinte, está abrangida por este termo, segundo a Comissão, uma sociedade que compra serviços de viagens para os seus empregados. Em contrapartida, o termo «viajante» não é aplicável à pessoa singular ou à pessoa coletiva que revende o referido serviço a outra pessoa. Essa instituição salienta que o regime especial das agências de viagens não é aplicável a um estádio anterior à venda desse serviço ao destinatário final.
24 A República Portuguesa contesta a interpretação dada pela Comissão ao regime especial das agências de viagens previsto nos artigos 306.° a 310.° da diretiva IVA.
25 Esse Estado-Membro alega, por si só ou subscrevendo as observações dos Estados-Membros intervenientes, os seguintes argumentos.
26 A interpretação literal efetuada pela Comissão não pode ser acolhida, uma vez que, para além da versão inglesa do artigo 306.° da diretiva IVA, numerosas versões linguísticas desta disposição, a saber, as versões búlgara, polaca, portuguesa, romena, eslovaca, finlandesa e sueca, empregam o termo «cliente», e não o termo «viajante».
27 A análise dos termos utilizados nas disposições que rodeiam o artigo 26.°, n.° 1, da Sexta Diretiva ou a esse artigo 306.° também não pode servir de guia para determinar o alcance exato destas duas últimas disposições. Com efeito, o exame das diferentes versões linguísticas destas disposições revela que o termo «viajante» não é utilizado de forma sistemática no artigo 26.°, n.os 1 a 4, da Sexta Diretiva nem nos artigos 306.° a 310.° da diretiva IVA. Certas versões linguísticas utilizam sistematicamente o termo «cliente», enquanto outras utilizam tanto o termo «viajante» como o termo «cliente». Estas divergências constituem uma fonte de ambiguidade, como confirma o facto de, nomeadamente, a República Checa, a República Helénica, o Reino da Espanha, a República Francesa e a República Italiana aplicarem a interpretação baseada no cliente, apesar de as versões linguísticas da diretiva IVA, tal como foram publicadas nas suas línguas nacionais, empregarem o termo «viajante».
28 A República Portuguesa deduz daqui que se deve recorrer a uma interpretação teleológica das disposições em causa, procurando identificar os objetivos prosseguidos pelo regime especial das agências de viagens. Estes últimos não são, aliás, contestados pela Comissão e englobam, por um lado, a simplificação das regras relativas ao IVA aplicáveis às agências de viagens e, por outro, a repartição das receitas do IVA entre os Estados-Membros. Ora, é igualmente pacífico que a interpretação baseada no cliente é a mais adequada para atingir estes objetivos. Por conseguinte, esta interpretação constitui a única interpretação correta.
29 A República Portuguesa sublinha que a qualidade do destinatário do serviço, quer se trate do viajante, consumidor final, ou de uma agência intermédia, não é relevante. Esse Estado-Membro apoia-se, por analogia, nomeadamente, no acórdão de 22 de outubro de 1998, Madgett e Baldwin (C-308/96 e C-94/97, Colet., p. I-6229), e sustenta que, nesse acórdão, apesar do caráter derrogatório do regime especial em causa, o Tribunal de Justiça efetuou uma interpretação lata do artigo 26.° da Sexta Diretiva, fazendo prevalecer o objetivo prosseguido por este regime sobre a redação deste artigo.
30 A interpretação baseada no cliente, ao invés da baseada no viajante, permite respeitar o princípio da neutralidade do IVA, tratando da mesma maneira os operadores que vendem diretamente viagens organizadas aos viajantes e os que vendem este tipo de viagens a outros operadores.
31 No que respeita ao risco de dupla tributação invocado pela Comissão, a República Portuguesa sustenta que este risco se deve à coexistência das duas interpretações em causa e desapareceria se fosse seguida uma única interpretação.
32 Quanto às pretensas incoerências evidenciadas pela Comissão no que se refere, em primeiro lugar, aos termos «em nome próprio perante o cliente», a República Portuguesa contesta a sua existência. A Comissão confunde a expressão «perante ‘o’ cliente», utilizada na versão inglesa do artigo 26.° da Sexta Diretiva, com a expressão «perante o ‘seu’ cliente». Só esta segunda expressão tem caráter redundante.
33 Por outro lado, a própria Comissão utilizou a expressão «que atua em nome próprio perante os clientes» num número significativo de versões linguísticas da sua Proposta de diretiva do Conselho, de 8 de fevereiro de 2002, que altera a Diretiva 77/388 no que diz respeito ao regime especial das agências de viagens [COM(2002) 64 final].
34 O receio expresso pela Comissão de que a referida expressão possa conduzir à aplicação do regime especial das agências de viagens aos intermediários não tem razão de ser em virtude da menção expressa que figura no artigo 306.°, n.° 1, segundo parágrafo, da diretiva IVA, que exclui esta possibilidade.
35 Em segundo lugar, no que respeita à expressão «pago pelo viajante», o Tribunal de Justiça já reconheceu que esta expressão não pode ser interpretada literalmente e que abrange igualmente a contrapartida a pagar por um terceiro.
36 Além disso, a interpretação da Comissão suscita um problema de ordem prática, na medida em que, se o regime especial das agências de viagens fosse exclusivamente aplicável às vendas ao viajante, consumidor final, poderia ser necessário verificar, caso a caso, se o adquirente de uma viagem é de facto a pessoa que vai beneficiar da viagem e se este não a vai revender a outra pessoa.
37 Além disso, a referência da Comissão ao acórdão Comissão/Espanha, já referido, não é pertinente, uma vez que as disposições em causa no processo em que foi proferido esse acórdão, contrariamente às que estão em causa na presente ação, eram unívocas.
Apreciação do Tribunal
38 Para apreciar a presente ação, há que determinar se, ao autorizar as agências de viagens a aplicarem o regime especial em causa às operações que efetuam não apenas com «viajantes» mas também com qualquer tipo de «clientes», a República Portuguesa efetuou uma transposição correta dos artigos 306.° a 310.° da diretiva IVA.
39 A versão portuguesa do artigo 26.°, n.os 1 a 4, da Sexta Diretiva emprega o termo «viajante» no artigo 26.°, n.° 1, desta e o termo «cliente» nos restantes números deste mesmo artigo, enquanto a versão portuguesa dos artigos 306.° a 310.° da diretiva IVA emprega o termo «cliente» de forma sistemática. Por outro lado, as outras versões linguísticas de cada uma destas duas diretivas utilizam o termo «viajante» e/ou o termo «cliente», fazendo, por vezes, variar os termos utilizados de disposição para disposição.
40 Apesar destas divergências particularmente importantes, a Comissão sustenta que é possível uma interpretação literal fundada em cinco das seis versões linguísticas iniciais da Sexta Diretiva que empregam o termo «viajante» de forma sistemática, constituindo o recurso ao termo «cliente» na versão inglesa desta diretiva um erro.
41 A circunstância de apenas esta versão inglesa utilizar o termo «cliente», de resto numa única ocasião, permite presumir que se trata de um erro. As explicações fornecidas pela Comissão na audiência, segundo as quais o documento de trabalho que está na base da Sexta Diretiva foi redigido em língua francesa, também podem corroborar a ideia de que foi cometido um erro na tradução desta diretiva para a língua inglesa.
42 Todavia, várias constatações põem em causa esta análise da Comissão.
43 Desde logo, impõe-se referir que, se se tratava de um erro, não foi corrigido na versão inglesa da Sexta Diretiva.
44 Em seguida, longe de ser utilizado apenas uma vez e de se limitar a uma versão linguística em particular, o termo «cliente» foi utilizado em muitas outras versões linguísticas da Sexta Diretiva e não foi apenas utilizado no artigo 26.°, n.° 1, desta última.
45 Além disso, não obstante este pretenso erro poder ter sido corrigido pelo menos quando da adoção da diretiva IVA, tal não foi o caso, na medida em que o termo «cliente» também consta de numerosas versões linguísticas dos artigos 306.° a 310.° desta diretiva e, por vezes, de maneira não sistemática.
46 Por último, a proposta de diretiva mencionada no n.° 33 do presente acórdão, que visava substituir a legislação existente por um texto que adotasse, no essencial, a interpretação baseada no cliente, utilizava o termo «viajante» na versão francesa do artigo 26.°, n.° 1, desta diretiva, ao passo que utilizava o termo «cliente» na versão inglesa desta mesma disposição.
47 Daqui decorre que, ao invés do que afirma a Comissão, não pode vingar uma interpretação puramente literal do regime especial das agências de viagens baseada no texto de uma ou de várias versões linguísticas, com exclusão de outras. Em conformidade com jurisprudência constante, há que considerar que as disposições do direito da União devem ser interpretadas e aplicadas de modo uniforme à luz das versões redigidas em todas as línguas da União. Em caso de divergência entre as diferentes versões linguísticas de um texto da União, a disposição em questão deve ser interpretada em função da sistemática geral e da finalidade da regulamentação de que constitui um elemento (acórdão de 8 de dezembro de 2005, Jyske Finans, C-280/04, Colet., p. I-10683, n.° 31).
48 No caso em apreço, as restantes disposições que rodeiam as que utilizam o termo «cliente», tal como este é utilizado na versão inglesa da Sexta Diretiva, variam segundo as versões linguísticas das duas diretivas em causa, pelo que não pode ser retirada nenhuma conclusão da economia destas disposições quanto à interpretação do regime especial das agências de viagens.
49 Quanto à finalidade deste regime especial, o Tribunal de Justiça recordou por diversas ocasiões que os serviços prestados pelas agências de viagens e pelos organizadores de circuitos turísticos se caracterizam pelo facto de, regra geral, serem compostos por múltiplas prestações, nomeadamente em matéria de transporte e de alojamento, efetuadas tanto no interior como fora do território do Estado-Membro em que a empresa tem a sua sede ou um estabelecimento estável. A aplicação das regras de direito comum respeitantes ao local de tributação, à matéria coletável e à dedução do imposto a montante confronta-se, em razão da multiplicidade e da localização das prestações efetuadas, com dificuldades práticas para estas empresas que são suscetíveis de entravar o exercício da sua atividade. Foi para adaptar as regras aplicáveis à natureza específica desta atividade que o legislador da União instituiu, nos n.os 2 a 4 do artigo 26.° da Sexta Diretiva, um regime especial do IVA (v. acórdãos de 12 de novembro de 1992, Van Ginkel, C-163/91, Colet., p. I-5723, n.os 13 a 15; Madgett e Baldwin, já referido, n.° 18; de 19 de junho de 2003, First Choice Holidays, C-149/01, Colet., p. I-6289, n.os 23 a 25; de 13 de outubro de 2005, ISt, C-200/04, Colet., p. I-8691, n.° 21; e de 9 de dezembro de 2010, Minerva Kulturreisen, C-31/10, Colet., p. I-12889, n.os 17 e 18).
50 Por conseguinte, o referido regime especial prossegue um objetivo de simplificação das regras relativas ao IVA aplicáveis às agências de viagens. Também visa repartir as receitas provenientes da cobrança deste imposto de forma equilibrada entre os Estados-Membros, assegurando, por um lado, a atribuição das receitas IVA relativas a cada serviço individual ao Estado-Membro em que o serviço é efetivamente prestado e, por outro, a atribuição das receitas relativas à margem da agência de viagens ao Estado-Membro em que esta última se encontra estabelecida.
51 Ora, importa salientar, o que não é, aliás, contestado, que a interpretação baseada no cliente é a mais adequada para atingir estes dois objetivos, permitindo que as agências de viagens beneficiem de regras simplificadas independentemente do tipo de clientes ao qual prestam os seus serviços e favorecendo, por esta via, uma repartição equilibrada das receitas entre os Estados-Membros.
52 A circunstância de, quando da adoção, em 1977, do regime especial das agências de viagens, a maioria destas últimas venderem os seus serviços diretamente ao consumidor final não implica que o legislador tenha pretendido limitar este regime especial a esse tipo de vendas e excluir dele as vendas a outros operadores.
53 Com efeito, quando um operador organiza uma viagem organizada e a vende a uma agência de viagens, que a revende, de seguida, a um consumidor final, é aquele primeiro operador que assume a incumbência de combinar várias prestações adquiridas a diferentes terceiros sujeitos passivos do IVA. À luz da finalidade do regime especial das agências de viagens, este operador deve poder beneficiar de regras simplificadas em matéria de IVA e estas regras não devem ser reservadas à agência de viagens, que se limita, neste caso, a revender ao consumidor final a viagem organizada que adquiriu ao referido operador.
54 Além disso, importa recordar que o Tribunal de Justiça já interpretou o termo «viajante», tendo-lhe conferido um sentido mais lato do que o de consumidor final. Assim, no n.° 28 do acórdão First Choice Holidays, já referido, o Tribunal de Justiça declarou que a expressão «pago pelo viajante», utilizada no artigo 26.°, n.° 2, da Sexta Diretiva, não pode ser interpretada literalmente no sentido de excluir da matéria coletável do IVA um elemento da «contrapartida» obtida de um terceiro na aceção do artigo 11.°, A, n.° 1, alínea a), desta diretiva.
55 As restantes objeções apresentadas pela Comissão em contestação à interpretação baseada no cliente não põem em causa esta análise.
56 O facto de o regime especial das agências de viagens constituir uma exceção às regras de direito comum, de modo que, enquanto tal, esta exceção não pode ir além do necessário para alcançar os objetivos que prossegue (v. acórdão First Choice Holidays, já referido, n.° 22), não implica, todavia, que se deva adotar a interpretação baseada no viajante se esta interpretação põe em causa o efeito útil deste regime especial.
57 Apesar de reconhecer que o regime especial das agências de viagens pode ser melhorado, a Comissão salienta, com fundamento no n.° 28 do acórdão Comissão/Espanha, já referido, que não compete aos Estados-Membros adotarem, por sua própria iniciativa, uma interpretação que, segundo esses Estados, melhora o referido regime, visto que, ao fazê-lo, substituem-se ao legislador da União. Todavia, esse acórdão não pode ser invocado em termos úteis no caso em apreço, na medida em que, contrariamente ao regime especial das agências de viagens, a legislação em causa nesse acórdão era unívoca.
58 O argumento relativo às pretensas incoerências decorrentes de uma leitura do termo «cliente» no sentido não de «viajante», mas de qualquer tipo de «clientes», é apenas válido relativamente à versão inicial inglesa da Sexta Diretiva e às versões linguísticas posteriores, decalcadas desta, que apenas utilizam este termo uma vez. No que respeita às versões linguísticas da diretiva IVA que utilizam este termo de forma sistemática nos artigos 306.° a 310.° desta última, este argumento é inoperante.
59 Quanto à existência de um risco de as agências de viagens aplicarem o referido regime especial mesmo quando atuam como intermediário, basta salientar que, tendo em conta o disposto expressamente no artigo 306.°, n.° 1, segundo parágrafo, da diretiva IVA, que exclui, de qualquer modo, essa possibilidade, esse risco não é fundado.
60 Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que interpretar as disposições dos artigos 306.° a 310.° da diretiva IVA no sentido da interpretação baseada no cliente.
61 Por conseguinte, há que julgar improcedente a ação intentada pela Comissão.
Quanto às despesas
62 Por força do disposto no artigo 138.°, n.° 1, do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, a parte vencida é condenada nas despesas se a parte vencedora o tiver requerido. Tendo a República Portuguesa pedido a condenação da Comissão e tendo esta sido vencida, há que condená-la nas despesas. Além disso, em conformidade com o artigo 140.°, n.° 1, do mesmo regulamento, segundo o qual os Estados-Membros que intervenham no litígio devem suportar as respetivas despesas, cabe decidir que a República Checa, o Reino da Espanha, a República Francesa, a República da Polónia e a República da Finlândia suportarão as suas próprias despesas.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Terceira Secção) decide:
1) A ação é julgada improcedente.
2) A Comissão Europeia é condenada a suportar as despesas efetuadas pela República Portuguesa.
3) A República Checa, o Reino de Espanha, a República Francesa, a República da Polónia e a República da Finlândia suportam as suas próprias despesas.
Assinaturas
** Língua do processo: português.