Available languages

Taxonomy tags

Info

References in this case

Share

Highlight in text

Go

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção)

11 de setembro de 2014 (*)

«Reenvio prejudicial — Imposto sobre o rendimento — Legislação que visa evitar as duplas tributações — Tributação dos rendimentos imobiliários recebidos num Estado-Membro diferente do Estado-Membro de residência — Método da isenção com reserva de progressividade no Estado-Membro de residência — Diferença de tratamento entre bens imóveis situados no Estado-Membro de residência e noutro Estado-Membro»

No processo C-489/13,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo hof van beroep te Antwerpen (Bélgica), por decisão de 3 de setembro de 2013, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 10 de setembro de 2013, no processo

Ronny Verest,

Gaby Gerards

contra

Belgische Staat,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Sétima Secção),

composto por: J. L. da Cruz Vilaça, presidente de secção, J.-C. Bonichot (relator) e A. Arabadjiev, juízes,

advogado-geral: N. Jääskinen,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo belga, por J.-C. Halleux e M. Jacobs, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo francês, por G. de Bergues e J.-S. Pilczer, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por A. Cordewener e W. Roels, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado-geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 63.° TFUE e 65.° TFUE.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe R. Verest e G. Gerards ao Belgische Staat a propósito do tratamento fiscal, na Bélgica, de um bem imóvel situado em França.

 Quadro jurídico

3        O artigo 7.°, n.° 1, do Código dos Impostos sobre os Rendimentos de 1992 (code des impôts des revenus 1992, a seguir «CIR 92») dispõe:

«§ 1. Os rendimentos dos bens imóveis são:

1°       para os bens imóveis que não estejam dados de locação:

a)       para os bens situados na Bélgica:

–        o rendimento cadastral quando se trata de bens imóveis não edificados, do material e dos utensílios que apresentem caráter de imóvel por natureza ou por destino ou da habitação referida no artigo 12.°, § 3;

–        o rendimento cadastral acrescido de 40% quando se trata de outros bens;

b)       para os bens situados no estrangeiro: o valor locativo;

[…]»

4        O artigo 13.° do CIR 92 estabelece:

«No que respeita ao valor locativo, ao arrendamento e às vantagens locativas dos bens imóveis, entende-se por rendimento líquido o montante bruto do rendimento diminuído, para despesas de manutenção e de reparação, de:

–        40% para os bens imóveis edificados bem como para o material e utensílios que apresentem o caráter de imóvel por natureza ou por destino [...]

[…]»

5        O artigo 155.° do CIR 92 prevê:

«Os rendimentos isentos nos termos de convenções internacionais para evitar a dupla tributação são tomados em conta na determinação do imposto, mas este é reduzido proporcionalmente à parte dos rendimentos isentos na totalidade dos rendimentos.

[…]»

6        O artigo 3.°, n.° 1, da Convenção entre a França e a Bélgica destinada a evitar duplas tributações e a estabelecer regras de assistência administrativa e jurídica recíproca em matéria de impostos sobre os rendimentos, assinada em Bruxelas, em 10 de março de 1964 (a seguir «convenção preventiva de dupla tributação»), tem a seguinte redação:

«Os rendimentos provenientes dos bens imóveis, incluindo os acessórios e o gado vivo ou morto das empresas agrícolas e florestais, apenas são tributáveis no Estado contratante onde esses bens estão situados.»

7        O artigo 19.°, A, n.os 2 e 4, da convenção preventiva de dupla tributação enuncia:

«A dupla tributação é evitada do seguinte modo:

No que respeita à Bélgica:

[…]

2.       Os rendimentos diferentes dos referidos no n.° 1 supra estão isentos dos impostos belgas mencionados no artigo 2.°, n.° 3, A, da presente Convenção, quando a respetiva tributação for atribuída exclusivamente à França.

[…]

4.       Não obstante as disposições anteriores, os impostos belgas visados pela presente Convenção podem ser calculados sobre os rendimentos tributáveis na Bélgica por força da referida Convenção, à taxa correspondente a todos os rendimentos tributáveis de acordo com a legislação belga.»

 Litígio no processo principal e questão prejudicial

8        Resulta da decisão de reenvio que os recorrentes no processo principal residem na Bélgica, onde os respetivos rendimentos são sujeitos ao imposto. Após a compra de um bem imóvel em França, em agosto de 2004, apresentaram, no ano seguinte, uma declaração fiscal que foi objeto de correções por parte das autoridades fiscais belgas. Essas correções foram contestadas pelas recorrentes no rechtbank van eerste annleg te Antwerpen (Tribunal de Primeira Instância de Antuérpia).

9        Na sequência da rejeição do seu recurso, os recorrentes no processo principal interpuseram recurso para o hof van beroep te Antwerpen (Tribunal de Recurso de Antuérpia).

10      Segundo este último tribunal, o litígio sobre o qual deve decidir respeita ao tratamento fiscal na Bélgica de um bem imóvel situado em França. Refere, a este respeito, que, por força da convenção preventiva de dupla tributação, os rendimentos dos bens imóveis apenas são tributáveis no Estado onde o bem se situa. Essa isenção é acompanhada, em proveito do Reino da Bélgica, de uma reserva de progressividade por força da qual os rendimentos imóveis dos bens situados em França podem ser tomados em conta quando do cálculo da taxa de tributação aplicável aos rendimentos tributáveis na Bélgica.

11      O hof van beroep te Antwerpen refere igualmente que o rendimento dos bens não dados de locação, situados na Bélgica, é determinado com base no rendimento cadastral e que um rendimento imobiliário hipotético é estabelecido de maneira semelhante em França. Porém, em conformidade com o artigo 7.° do CIR 92, o rendimento dos bens imóveis não dados de locação, mas situados num Estado diferente da Bélgica, é determinado exclusivamente em função do seu valor locativo. O rendimento cadastral belga e o rendimento cadastral francês são comparáveis, mas o rendimento cadastral é, regra geral, inferior ao valor locativo.

12      À luz destas considerações, o hof van beroep te Antwerpen decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:

«O artigo 56.° CE opõe-se à tributação, num Estado-Membro, de bens imóveis não arrendados situados noutro Estado-Membro, com base em elementos diferentes do seu rendimento cadastral local, pressupondo em especial que, neste caso, o rendimento cadastral local é fixado do mesmo modo que o rendimento cadastral belga dos bens imóveis belgas?»

 Quanto à questão prejudicial

 Quanto ao alcance da questão

13      Importa recordar que, no âmbito do processo de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça, instituído pelo artigo 267.° TFUE, compete a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe, tal sendo o caso, ao Tribunal de Justiça reformular as questões que lhe são submetidas (acórdão Brey, C-140/12, EU:C:2013:565, n.° 31 e jurisprudência referida).

14      Assim, a fim de poder fornecer uma resposta útil ao órgão jurisdicional de reenvio, há que apreciar a regulamentação nacional em causa no processo principal no seu contexto factual e jurídico, tal como o mesmo resulta da decisão de reenvio.

15      Está assente que, no processo principal, está em causa o tratamento fiscal dos rendimentos de um bem imóvel não dado em locação adquirido em França por residentes belgas, os recorrentes no processo principal. Por força da convenção preventiva de dupla tributação celebrada entre esses dois Estados-Membros, os rendimentos imobiliários referentes a esse bem apenas são tributados em França. Porém, uma cláusula, dita «de reserva de progressividade», permite às autoridades belgas ter em conta esses rendimentos a fim de determinar a taxa de tributação aplicável aos rendimentos tributáveis exclusivamente na Bélgica.

16      Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio refere que as modalidades que permitem a determinação dos rendimentos provenientes de imóveis não dados de locação diferem consoante o bem está situado na Bélgica ou noutro Estado-Membro. Assim, resulta da decisão de reenvio que, no processo principal, o rendimento do bem imóvel não dado de locação situado em França é determinado em função do valor locativo, cujo montante é superior ao rendimento cadastral de um bem comparável situado na Bélgica.

17      Tendo em conta o exposto, impõe-se, consequentemente, determinar se o artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado-Membro, como a que está em causa no processo principal, que prevê, quando da aplicação de uma cláusula de progressividade contida numa convenção preventiva de dupla tributação, que, para a determinação da taxa de tributação sobre o rendimento, os rendimentos relativos a um bem imóvel não dado de locação situado noutro Estado-Membro são fixados a partir do seu «valor locativo», ao passo que os relativos a esse bem, mas situado no primeiro Estado-Membro, são fixados com base no seu «rendimento cadastral» e que este último rendimento é, regra geral, inferior ao «valor locativo».

 Quanto à existência de uma restrição à livre circulação de capitais

18      Desde logo, importa recordar que, por força de jurisprudência constante, na falta de medidas de unificação ou de harmonização adotadas pela União Europeia, os Estados-Membros continuam a ser competentes para determinar os critérios de tributação dos rendimentos e do património, com vista a eliminar, eventualmente por via convencional, a dupla tributação. Neste contexto, os Estados-Membros são livres de fixar, no âmbito das convenções bilaterais celebradas para evitar a dupla tributação, os fatores de ligação para efeitos da repartição da competência fiscal (acórdão Imfeld e Garcet, C-303/12, EU:C:2013:822, n.° 41 e jurisprudência referida).

19      Contudo, esta repartição da competência fiscal não permite aos Estados-Membros aplicarem medidas contrárias às liberdades de circulação garantidas pelo Tratado FUE. Com efeito, no que se refere ao exercício do poder de tributação assim repartido no âmbito de convenções bilaterais destinadas a evitar a dupla tributação, os Estados-Membros são obrigados a respeitar as regras da União (acórdão Imfeld e Garcet, EU:C:2013:822, n.° 42).

20      Daí resulta que, sem prejuízo do respeito das liberdades de circulação garantidas pelo Tratado, um Estado-Membro pode prever livremente, com vista à tributação dos rendimentos das pessoas singulares, métodos de avaliação do rendimento de um bem imóvel não dado de locação que diferem consoante o bem está situado nesse Estado-Membro ou noutro Estado-Membro.

21      A este respeito, importa recordar que as medidas proibidas pelo artigo 63.°, n.° 1, TFUE, enquanto restrições aos movimentos de capitais, compreendem as medidas suscetíveis de dissuadir os residentes de um Estado-Membro de fazerem investimentos imobiliários noutros Estados-Membros (acórdão Libert e o., C-197/11 e C-203/11, EU:C:2013:288, n.° 44).

22      Numa situação como a do processo principal, está assente que todos os rendimentos imobiliários dos residentes belgas são tomados em conta quando da fixação da taxa de tributação que se aplica aos seus rendimentos tributáveis na Bélgica. É igualmente ponto assente que o rendimento de um bem imóvel não dado de locação situado na Bélgica é determinado em função do rendimento cadastral, cujo montante é inferior ao valor locativo considerado para a determinação do rendimento desse bem situado noutro Estado-Membro.

23      Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se, por essa razão, os rendimentos tributáveis dos residentes belgas proprietários de um bem imóvel não dado de locação situado num Estado-Membro diferente da Bélgica são suscetíveis de estar sujeitos a uma taxa de tributação superior à aplicável aos rendimentos dos referidos residentes que dispõem na Bélgica de um bem comparável.

24      Sendo esse o caso, uma regulamentação como a que está em causa no processo principal seria constitutiva de uma diferença de tratamento suscetível de dissuadir os residentes belgas de fazerem investimentos imobiliários em Estados-Membros diferentes da Bélgica, o que é de molde a dar origem a uma restrição à livre circulação de capitais, proibida, em princípio, pelo artigo 63.° TFUE.

 Quanto à existência de uma justificação da restrição à livre circulação de capitais

25      Em conformidade com o artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE, o artigo 63.° TFUE não prejudica o direito de os Estados-Membros aplicarem as disposições pertinentes da sua legislação fiscal que estabeleçam uma distinção entre contribuintes que não se encontrem em idêntica situação no que se refere ao seu lugar de residência ou ao lugar onde os seus capitais são investidos.

26      Esta disposição, na medida em que constitui uma derrogação à liberdade dos movimentos de capitais, deve ser objeto de uma interpretação estrita. Por conseguinte, não pode ser interpretada no sentido de que qualquer legislação fiscal que comporte uma distinção entre os contribuintes em função do lugar onde residam ou do Estado-Membro onde invistam os seus capitais será automaticamente compatível com o Tratado (v. acórdão Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, C-190/12, EU:C:2014:249, n.° 55 e jurisprudência referida).

27      Com efeito, a derrogação prevista pela dita disposição é, ela própria, limitada pelo artigo 65.°, n.° 3, TFUE, que prevê que as disposições nacionais referidas no n.° 1 desse artigo «não devem constituir um meio de discriminação arbitrária, nem uma restrição dissimulada à livre circulação de capitais e de pagamentos, tal como definida no artigo 63.°» (v. acórdão Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, EU:C:2014:249, n.° 56).

28      As diferenças de tratamento autorizadas pelo artigo 65.°, n.° 1, alínea a), TFUE devem ser distinguidas das discriminações proibidas pelo n.° 3 desse mesmo artigo. Ora, resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que, para que uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, possa ser considerada compatível com as disposições do Tratado relativas à livre circulação de capitais, é necessário que a diferença de tratamento que prevê respeite a situações não comparáveis objetivamente ou se justifique por uma razão imperativa de interesse geral (v. acórdão Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company, EU:C:2014:249, n.° 57).

29      Por um lado, no litígio no processo principal, está assente que, por força da convenção preventiva de dupla tributação conforme é aplicada na Bélgica, os rendimentos imobiliários dos bens situados em França não são tributados na Bélgica, ao passo que os rendimentos imobiliários situados neste último Estado-Membro estão incluídos na matéria coletável. Todavia, esta convenção permite às autoridades belgas ter em conta os rendimentos imobiliários dos bens situados em França a fim de determinar, em aplicação da «reserva de progressividade» prevista pela referida convenção, taxas de tributação aplicáveis aos rendimentos tributáveis na Bélgica.

30      Importa referir que resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça que o método da isenção com «reserva de progressividade» permite assegurar que os rendimentos de um contribuinte que são isentos no Estado-Membro de residência podem, no entanto, ser tomados em consideração por este último a fim de aplicar a regra de progressividade ao calcular o montante do imposto sobre o resto dos rendimentos do contribuinte (v., neste sentido, acórdão Asscher, C-107/94, EU:C:1996:251, n.° 47).

31      O objetivo de tal regulamentação é evitar que, no Estado-Membro de residência, os rendimentos tributáveis de um contribuinte proprietário de um bem imóvel situado noutro Estado-Membro sejam tributados a uma taxa de tributação inferior à aplicável aos rendimentos dos contribuintes proprietários de bens comparáveis no Estado-Membro de residência.

32      À luz deste objetivo, a situação dos contribuintes que tiverem adquirido um bem imóvel no Estado-Membro de residência é comparável à dos contribuintes que tiverem adquirido esse bem noutro Estado-Membro.

33      Por outro lado, há que constatar que o Governo belga não invocou nenhum objetivo de interesse geral que possa servir de justificação.

34      Tendo em conta todas as considerações precedentes, há que responder à questão prejudicial submetida que o artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado-Membro como a que está em causa no processo principal, na medida em que é suscetível de conduzir, quando da aplicação de uma cláusula de progressividade contida numa convenção preventiva de dupla tributação, a uma taxa de tributação sobre o rendimento mais elevada pelo mero facto de o método de determinação dos rendimentos dos bens imóveis levar a que os rendimentos provenientes de bens imóveis não dados de locação situados noutro Estado-Membro sejam avaliados num montante superior aos provenientes desses bens situados no primeiro Estado-Membro. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é efetivamente esse o efeito da regulamentação em causa no litígio no processo principal.

 Quanto às despesas

35      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Sétima Secção) declara:

O artigo 63.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação de um Estado-Membro como a que está em causa no processo principal, na medida em que é suscetível de conduzir, quando da aplicação de uma cláusula de progressividade contida numa convenção preventiva de dupla tributação, a uma taxa de tributação sobre o rendimento mais elevada pelo mero facto de o método de determinação dos rendimentos dos bens imóveis levar a que os rendimentos provenientes de bens imóveis não dados de locação situados noutro Estado-Membro sejam avaliados num montante superior aos provenientes desses bens situados no primeiro Estado-Membro. Cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se é efetivamente esse o efeito da regulamentação em causa no litígio no processo principal.

Assinaturas


* Língua do processo: neerlandês.