Edição provisória
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)
9 de fevereiro de 2023 (*)
«Reenvio prejudicial – Fiscalidade – Imposto sobre o valor acrescentado (IVA) – Diretiva 2006/112/CE – Artigo 90.° – Valor tributável – Redução – Seguradora que paga uma indemnização aos segurados por créditos não pagos, incluindo o IVA – Regulamentação nacional que recusa a essa seguradora, enquanto sucessora jurídica, a redução do valor tributável – Princípio da neutralidade fiscal – Princípio da efetividade»
No processo C-482/21,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste-Capital, Hungria), por Decisão de 29 de junho de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 5 de agosto de 2021, no processo
Euler Hermes SA Magyarországi Fióktelepe
contra
Nemzeti Adó- és Vámhivatal Fellebviteli Igazgatósága,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),
composto por: M. Safjan, presidente de secção, N. Jääskinen e M. Gavalec (relator), juízes,
advogado-geral: T. Ćapeta,
secretário: A. Calot Escobar,
vistos os autos,
vistas as observações apresentadas:
– em representação da Euler Hermes SA Magyarországi Fióktelepe, por T. Fehér e P. Jalsovszky, ügyvédek,
– em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér e K. Szíjjártó, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo português, por P. Barros da Costa, R. Campos Laires, S. Jaulino e J. Ramos, na qualidade de agentes,
– em representação da Comissão Europeia, por A. Sipos e V. Uher, na qualidade de agentes,
vista a decisão tomada, ouvido o advogado-geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 90.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1), conforme alterada pela Diretiva 2010/45/UE do Conselho, de 13 de julho de 2010 (JO 2010, L 189, p. 1) (a seguir «Diretiva IVA»), lido em conjugação com os princípios da proporcionalidade, da neutralidade fiscal e da efetividade.
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Euler Hermes SA Magyarországi Fióktelepe, sociedade de direito húngaro, à Nemzeti Adó- és Vámhivatal Fellebbviteli Igazgatósága (Direção de Recursos da Administração Nacional Tributária e Aduaneira, Hungria) a respeito de um pedido de redução do valor tributável do imposto sobre o valor acrescentado (IVA).
Quadro jurídico
Direito da União
3 O artigo 2.°, n.° 1, alíneas a) e c), da Diretiva IVA enuncia:
«Estão sujeitas ao IVA as seguintes operações:
a) As entregas de bens efetuadas a título oneroso no território de um Estado-Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade;
[...]
c) As prestações de serviços efetuadas a título oneroso no território de um Estado-Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade».
4 O artigo 9.°, n.° 1, primeiro parágrafo, desta diretiva dispõe:
«Entende-se por “sujeito passivo” qualquer pessoa que exerça, de modo independente e em qualquer lugar, uma atividade económica, seja qual for o fim ou o resultado dessa atividade.»
5 Nos termos do artigo 63.° da referida diretiva:
«O facto gerador do imposto ocorre e o imposto torna-se exigível no momento em que é efetuada a entrega de bens ou a prestação de serviços.»
6 O artigo 66.° da mesma diretiva tem a seguinte redação:
«Em derrogação do disposto nos artigos 63.°, 64.° e 65.°, os Estados-Membros podem prever que, em relação a certas operações ou a certas categorias de sujeitos passivos, o imposto se torne exigível num dos seguintes momentos:
a) O mais tardar, no momento da emissão da fatura;
b) O mais tardar, no momento em que o pagamento é recebido;
c) Nos casos em que a fatura não seja emitida ou seja emitida tardiamente, dentro de um prazo fixado nunca posterior ao termo do prazo para a emissão de faturas fixado pelos Estados-Membros por força do segundo parágrafo do artigo 222.° ou, se esse prazo não tiver sido fixado pelo Estado-Membro, dentro de um prazo fixado a contar da data do facto gerador.
Contudo, a derrogação prevista no primeiro parágrafo não é aplicável às prestações de serviços em relação às quais o imposto seja devido pelo destinatário de serviços por força do artigo 196.° nem às transferências de bens a que se refere o artigo 67.°»
7 O artigo 73.° da Diretiva IVA prevê:
«Nas entregas de bens e às prestações de serviços, que não sejam as referidas nos artigos 74.° a 77.°, o valor tributável compreende tudo o que constitui a contraprestação que o fornecedor ou o prestador tenha recebido ou deva receber em relação a essas operações, do adquirente, do destinatário ou de um terceiro, incluindo as subvenções diretamente relacionadas com o preço de tais operações.»
8 O artigo 90.° desta diretiva enuncia:
«1. Em caso de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação, o valor tributável é reduzido em conformidade, nas condições fixadas pelos Estados-Membros.
2. Em caso de não pagamento total ou parcial, os Estados-Membros podem derrogar o disposto no n.° 1.»
9 Nos termos do artigo 135.°, n.° 1, alínea a), da referida diretiva:
«Os Estados–Membros isentam as seguintes operações:
a) As operações de seguro e de resseguro, incluindo as prestações de serviços relacionadas com essas operações efetuadas por corretores e intermediários de seguros».
10 O artigo 250.°, n.° 1, da mesma diretiva prevê:
«Os sujeitos passivos devem apresentar uma declaração de IVA da qual constem todos os dados necessários para o apuramento do montante do imposto exigível e do montante das deduções a efetuar, incluindo, na medida em que tal seja necessário para o apuramento do valor tributável, o montante global das operações relativas a esse imposto e a essas deduções, bem como o montante das operações isentas.»
Direito húngaro
Lei CL de 2017
11 O artigo 196.° da adózás rendjéről szóló 2017. évi CL. törvény (Lei CL de 2017 sobre o Processo Geral Tributário), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, dispõe:
«1) Quando o Alkotmánybíróság [(Tribunal Constitucional, Hungria)], a Kúria [(Supremo Tribunal, Hungria)] ou o Tribunal de Justiça da União Europeia declarem, com efeito retroativo à data da publicação da decisão, que uma norma jurídica que impõe uma obrigação fiscal é contrária à Lei Fundamental ou a um ato obrigatório da União Europeia ou, caso se trate de um regulamento local, a qualquer outra norma jurídica, e que essa decisão judicial confere ao contribuinte um direito ao reembolso, a Autoridade Tributária de primeiro grau procede ao reembolso a pedido deste último – segundo as modalidades especificadas na decisão em causa –, em conformidade com as disposições do presente artigo.
[...]
3) O pedido deve mencionar, além dos dados necessários à identificação do contribuinte perante a Autoridade Tributária, o imposto pago na data da apresentação do pedido e cujo reembolso é pedido, bem como o título executivo com base no qual foi pago; deve igualmente fazer referência à decisão do Alkotmánybíróság [(Tribunal Constitucional)], da Kúria [(Supremo Tribunal)] ou do Tribunal de Justiça e conter uma declaração que demonstre que:
a) à data da apresentação do pedido, o contribuinte não repercutiu noutra pessoa o imposto relativamente ao qual pede o reembolso;
b) não foi efetuado nenhum reembolso do imposto a favor do contribuinte ou de qualquer outra pessoa antes da apresentação do pedido com base num processo administrativo ou judicial, e não está em curso nenhum processo desse género no momento da apresentação do pedido, a menos que o contribuinte prove à Autoridade Tributária, no prazo de noventa dias após o pedido, que foi posto termo ao processo.
4) Se os outros requisitos estabelecidos no n.° 3, alíneas a) e b), não estiverem preenchidos, a Autoridade Tributária indefere o pedido por decisão. Em relação ao conteúdo do título executivo, a Autoridade Tributária não adota nenhum ato de execução entre a data de apresentação do pedido e o encerramento definitivo do processo e, no caso de uma decisão que ordena um reembolso, após a mesma se ter tornado definitiva – até à anulação definitiva ou à anulação dessa decisão.»
Lei do IVA
12 O artigo 5.°, n.° 1, da általános forgalmi adóról szóló 2007. évi CXXVII. törvény (Lei CXXVII de 2007, Relativa ao Imposto sobre o Valor Acrescentado), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal (a seguir «Lei do IVA»), prevê:
«Para efeitos de IVA, entende-se por “sujeito passivo” qualquer pessoa ou entidade dotada de capacidade jurídica que, sob o seu próprio nome, exerça uma atividade económica, independentemente do local, da finalidade e do resultado da mesma. […]»
13 Nos termos do artigo 55.° desta lei:
«1) O imposto torna-se exigível quando ocorre o facto pelo qual se realiza a operação tributável (a seguir “execução”).
2) A consequência jurídica prevista no n.° 1 produz-se igualmente quando, não obstante a falta de execução, tiver sido emitida uma fatura. Esta consequência é aplicável ao sujeito passivo que figure na fatura como fornecedor dos bens ou prestador do serviço, salvo se este apresentar prova definitiva de que:
a) apesar da emissão de uma fatura, não houve execução, ou que
b) houve execução, mas esta foi efetuada por um terceiro
e, em paralelo, este fez imediatamente o necessário para anular a fatura emitida ou – quando a fatura foi emitida em seu nome, mas por um terceiro – informou imediatamente a pessoa ou o organismo que figura na fatura como adquirente dos bens ou destinatário do serviço da existência de uma situação prevista nas presentes disposições, alínea a) ou alínea b).»
14 O artigo 56.° da referida lei tem a seguinte redação:
«O imposto devido é apurado no momento da realização – salvo disposição em contrário desta lei.»
15 O artigo 77.°, n.° 7, da mesma lei dispõe:
«Tendo em conta, em especial, o princípio do exercício dos direitos em conformidade com o seu destino, o valor tributável pode ser reduzido a posteriori no montante, líquido de imposto, da totalidade ou de parte da contraprestação contabilizada como crédito incobrável se estiverem cumulativamente preenchidos os seguintes requisitos:
a) o sujeito passivo e o adquirente do bem ou o destinatário do serviço serem partes independentes;
b) o sujeito passivo avisar previamente por escrito o adquirente do bem ou o destinatário do serviço, nos termos do n.° 8, salvo se o adquirente do bem ou o destinatário do serviço tiverem deixado de existir e não tiverem sucessor legal;
c) o sujeito passivo não seja objeto de um processo de insolvência, de liquidação ou de liquidação coerciva no momento da apresentação da declaração a que o crédito incobrável diz respeito;
d) o adquirente do bem ou o destinatário do serviço não serem objeto de um processo de insolvência, liquidação ou liquidação coerciva no momento da entrega de bens ou da prestação de serviços que serve de fundamento à contabilização do crédito como crédito incobrável;
e) o adquirente do bem ou o destinatário do serviço não figurarem na base de dados das pessoas que têm uma diferença de tributação de montante significativo ou uma dívida de imposto de montante significativo, suscetível de ser consultada no sítio da Autoridade Tributária, no momento da entrega de bens ou da prestação de serviços que servem de fundamento à contabilização do crédito como crédito incobrável ou no ano anterior;
f) o número de identificação fiscal do adquirente do bem ou do destinatário do serviço não ter sido eliminado no momento da entrega de bens ou da prestação de serviços que servem de fundamento à contabilização do crédito como crédito incobrável;
g) a Autoridade Tributária e Aduaneira do Estado não ter fornececido ao contribuinte nenhuma informação relativamente a um incumprimento de obrigações fiscais por parte do adquirente do bem ou do destinatário do serviço no momento da entrega de bens ou da prestação de serviços que servem de fundamento à contabilização do crédito como crédito incobrável;
h) ter decorrido pelo menos um ano desde que o pagamento da contraprestação da entrega de bens ou da prestação de serviços que servem de fundamento à contabilização do crédito como crédito incobrável se tornou exigível, e
i) a contraprestação da entrega de bens ou da prestação de serviços que servem de fundamento à contabilização do crédito como crédito incobrável não ter sido paga ou ter sido paga de outra maneira.»
Lei CLI de 2017
16 O artigo 12.° da adózás rendjéről szóló 2017. évi CLI. törvény (Lei CLI de 2017, que regulamenta a Administração Tributária), na sua versão aplicável ao litígio no processo principal, prevê:
«1) Salvo disposição em contrário da presente lei, todos os direitos que pertenciam ao antecessor legal revertem para o sucessor legal do sujeito passivo, na aceção das normas de direito civil, incumbindo-lhe também todas as obrigações não cumpridas pelo antecessor legal, na proporção dos ativos obtidos devido à sucessão legal. Caso existam vários sucessores legais, estes cumprem as obrigações do antecessor legal na proporção dos ativos. Em caso de incumprimento, são solidariamente responsáveis pela dívida do antecessor legal. Têm direito às subvenções na proporção dos ativos – na falta de convenção em contrário.
2) A Autoridade Tributária verifica se o sucessor legal preenche os requisitos legais relativos aos períodos anteriores à sucessão, incluindo os antecedentes fiscais do antecessor legal, avaliando também o comportamento deste.
3) O disposto nos n.os 1 e 2 é igualmente aplicável em caso de prossecução da atividade de um empresário individual sob a forma de sociedade unipessoal.»
Litígio no processo principal e questão prejudicial
17 A recorrente no processo principal é uma seguradora que, no âmbito das suas atividades, assume a obrigação, com base num contrato de seguro, de pagar uma indemnização aos seus segurados no caso de os seus clientes não pagarem determinado crédito. O montante da indemnização é, em princípio, fixado em 90 % do valor do crédito não pago, IVA incluído. Por força desse contrato de seguro, em paralelo a essa indemnização, a parte correspondente do valor do crédito e todos os direitos conexos inicialmente atribuídos ao segurado são cedidos à recorrente no processo principal. Na prática, o ónus do IVA anteriormente pago ao Tesouro Público pelos segurados, mas por estes repercutido nos seus clientes e não pago por estes últimos, é suportado pela recorrente no processo principal no que respeita à parte do montante do IVA cedida.
18 Em 31 de dezembro de 2019, a recorrente no processo principal apresentou à Autoridade Tributária um pedido de reembolso do IVA relativo a créditos incobráveis no montante total de 225 855 154 forints húngaros (HUF) (cerca de 680 631 euros) e de 128 240,44 euros, bem como o pagamento de juros de mora correspondentes à taxa diária de base do banco central húngaro, acrescida de 5 pontos percentuais, aplicável no momento do vencimento ou um juro de mora à taxa de base simples desse mesmo banco.
19 Em apoio deste pedido, a recorrente no processo principal alegou que o montante das indemnizações que pagou após 1 de janeiro de 2014 a título de créditos definitivamente incobráveis que tinha segurado também incluía o montante do IVA. Declarou, referindo-se ao Despacho do Tribunal de Justiça de 24 de outubro de 2019, Porr Épitési Kft. (C-292/19, não publicado, EU:C:2019:901), que, em violação do artigo 90.° da Diretiva IVA, as disposições da Lei do IVA não permitiam, antes de 1 de janeiro de 2020, a redução a posteriori do valor tributável do IVA em caso de não pagamento total ou parcial da contraprestação do serviço prestado ou do bem entregue, mesmo quando um crédito se tivesse tornado definitivamente incobrável.
20 Por Decisão de 29 de janeiro de 2020, a Nemzeti Adó- és Vámhivatal Észak-budapesti Adó- és Vámigazgatósága (Direção Tributária e Aduaneira de Budapeste-Norte, da Administração Nacional Tributária e Aduaneira, Hungria) (Autoridade Tributária de primeiro grau) indeferiu o referido pedido com base no facto de a recorrente no processo principal não ter realizado as operações que servem de fundamento aos créditos incobráveis em causa.
21 Por Decisão de 15 de abril de 2020, a recorrida indeferiu a reclamação que a recorrente apresentou dessa Decisão de 29 de janeiro de 2020 e confirmou esta última. A este respeito, considerou que uma alteração de sujeito passivo resultante de um contrato de seguro não constituía uma sucessão à luz do direito fiscal, na medida em que não estavam preenchidos os requisitos materiais de fundo previstos para poder deferir um pedido de reembolso do IVA, uma vez que a recorrente no processo principal não era um sujeito passivo no que respeita às operações em relação às quais pretendia exercer o direito à redução do valor tributável e ao reembolso do IVA daí resultante.
22 A recorrente no processo principal interpôs no Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste-Capital, Hungria), o órgão jurisdicional de reenvio, um recurso dessa Decisão de 15 de abril de 2020, através do qual pede, a título principal, a fiscalização jurisdicional dessa decisão e a sua reforma com efeitos retroativos. Considera que, em conformidade com o contrato de seguro referido no n.° 17 do presente acórdão, enquanto sucessora legal dos seus segurados, tem direito ao reembolso do IVA relativo aos créditos incobráveis em causa. Entende que dispõe igualmente desse direito em virtude do direito da União, ao abrigo do princípio da neutralidade fiscal.
23 A recorrida no processo principal pede que seja negado provimento a este recurso. Alega que, tanto por força do direito da União como da legislação húngara, uma seguradora como a recorrente no processo principal não tem o direito de beneficiar, ao abrigo do artigo 90.° da Diretiva IVA, de uma redução do valor tributável aplicável em caso de não pagamento definitivo. Segundo a recorrida, o direito de apresentar um pedido de reembolso do IVA pertence ao sujeito passivo cujo crédito se tornou definitivamente incobrável e que pagou esse imposto. Ora, sublinha que, no caso, o sujeito de direito fiscal não é a recorrente, mas sim os seus segurados. Além disso, a recorrida precisa que a recorrente não pagou o IVA mas sim o montante segurado nos termos desse contrato de seguro, pelo que, caso a recorrida deferisse o pedido de reembolso do IVA apresentado pela recorrente, isso conduziria a um enriquecimento sem causa desta.
24 No que respeita aos créditos em questão, o órgão jurisdicional de reenvio indica que, no momento da sua transferência para a recorrente no processo principal, esses créditos ainda não eram considerados incobráveis e que só se tornaram definitivamente incobráveis após essa transferência. Esse órgão jurisdicional precisa igualmente que, até 1 de janeiro de 2020, a Lei do IVA era contrária ao direito da União, uma vez que não permitia a redução a posteriori do valor tributável do IVA referente a esses créditos.
25 O referido órgão jurisdicional interroga-se sobre a compatibilidade das disposições do direito húngaro aplicáveis ao litígio que lhe foi submetido e da prática da Autoridade Tributária nelas baseada com o direito da União, com a jurisprudência do Tribunal de Justiça, bem como com os princípios da proporcionalidade, da neutralidade fiscal e da efetividade.
26 Nestas condições, o Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste-Capital) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«Os princípios da proporcionalidade, da neutralidade fiscal e da efetividade – tendo em conta, nomeadamente, que um Estado-Membro não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao efetivamente recebido por quem entregou o bem ou prestou o serviço na origem da referida entrega ou prestação – e a isenção prevista no artigo 135.°, n.° 1, alínea a) da Diretiva IVA – em particular no que respeita à exigência de tratar essa atividade como uma única operação isenta, com referência aos princípios estabelecidos nos n.os 35, 37 e 53 das Conclusões do advogado-geral [Mengozzi] no processo C-242/08 Swiss Re, – bem como a exigência de assegurar a livre circulação de capitais e de serviços no mercado interno, opõem-se a uma prática de um Estado-Membro segundo a qual a redução do valor tributável a aplicar em caso de não pagamento definitivo, prevista no artigo 90.°, n.° 1 da Diretiva IVA, não é aplicável na hipótese de uma seguradora que, no âmbito da sua atividade de seguros de crédito, tenha pago uma indemnização ao segurado pelo valor tributável e também pelo IVA correspondente no momento da materialização do risco (o não pagamento pelo cliente do segurado), o que implica que, nos termos do contrato de seguro, o crédito foi cedido à seguradora, com todos os direitos de execução associados a esse crédito, nas seguintes circunstâncias:
a) no momento em que os créditos em questão se tornaram incobráveis, a lei nacional não permitia nenhuma redução do valor tributário para as dívidas incobráveis;
b) uma vez que se tornou evidente que essa proibição era incompatível com o direito da União, o direito positivo nacional excluiu categoricamente, de forma constante, o reembolso do IVA sobre uma dívida incobrável ao fornecedor da prestação inicial (o segurado), com base no facto de a seguradora lhe ter reembolsado o montante desse IVA, e
c) a seguradora pode provar que o seu crédito contra o devedor se tornou definitivamente incobrável?»
Quanto à questão prejudicial
27 A título preliminar, importa salientar, por um lado, que, na sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio se refere ao artigo 135.°, n.° 1, alínea a), da Diretiva IVA, que prevê uma isenção das operações de seguro. Ora, no caso em apreço, a recorrente no processo principal pede o reembolso do IVA pago por sujeitos passivos no âmbito de operações tributáveis e não no âmbito de operações de seguro isentas ao abrigo desta disposição. Por conseguinte, a referida disposição não é pertinente para a decisão da causa principal.
28 Por outro lado, o órgão jurisdicional de reenvio refere as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de serviços e de capitais. No caso em apreço, importa salientar que o litígio no processo principal se caracteriza por elementos que se circunscrevem ao território de um único Estado-Membro, uma vez que opõe uma sociedade de direito húngaro com sede no território húngaro à Autoridade Tributária húngara, designadamente à Direção de Recursos da Administração Nacional Tributária e Aduaneira.
29 Ora, é jurisprudência constante que as disposições do Tratado FUE em matéria de liberdade de estabelecimento, de livre prestação de serviços e de livre circulação de capitais não são aplicáveis a uma situação em que todos os elementos se circunscrevem ao território de um único Estado-Membro (Acórdão de 15 de novembro de 2016, Ullens de Schooten, C-268/15, EU:C:2016:874, n.° 47 e jurisprudência referida).
30 Por conseguinte, as disposições do Tratado FUE relativas à livre circulação de serviços e de capitais não são aplicáveis ao litígio no processo principal.
31 Nestas condições, há que considerar que, com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA, bem como os princípios da proporcionalidade, da neutralidade fiscal e da efetividade devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação de um Estado-Membro nos termos da qual a redução do valor tributável em caso de não pagamento, prevista nessa disposição, não é aplicável a uma seguradora que, no âmbito de um contrato de seguro de créditos comerciais, pague a um dos seus clientes segurados, a título de indemnização pelo não pagamento de um crédito, uma parte do montante do valor tributável da operação tributável em causa, incluindo o IVA, ainda que, em conformidade com esse contrato, essa parte do crédito e todos os direitos que lhe estão associados tenham sido cedidos a essa seguradora.
32 Importa recordar, por um lado, que o artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA visa os casos de anulação, rescisão, resolução, não pagamento total ou parcial ou redução do preço depois de efetuada a operação que deu origem ao pagamento do IVA. Esta disposição obriga os Estados-Membros a reduzirem o valor tributável e, por conseguinte, o montante do IVA devido pelo sujeito passivo, sempre que, depois de efetuada uma transação, este não receba uma parte ou a totalidade da contraprestação. A referida disposição constitui a expressão de um princípio fundamental dessa diretiva, o princípio da neutralidade fiscal, nos termos do qual o valor tributável é constituído pela contraprestação efetivamente recebida e que tem por corolário que a Autoridade Tributária não pode cobrar a título de IVA um montante superior ao montante que o sujeito passivo recebeu (Despacho de 3 de março de 2021, FGSZ, C-507/20, EU:C:2021:157, n.° 18 e jurisprudência referida).
33 Tendo em conta a redação do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA, bem como o princípio da neutralidade fiscal, é necessário que as formalidades a cumprir pelos sujeitos passivos para exercerem, perante as autoridades fiscais, o direito de proceder a uma redução do valor tributável do IVA se limitem às que permitem demonstrar que, depois de efetuada a transação, não receberão, definitivamente, uma parte ou a totalidade da contraprestação (v., neste sentido, Despacho de 3 de março de 2021, FGSZ, C-507/20, EU:C:2021:157, n.° 19 e jurisprudência referida).
34 Por outro lado, o artigo 90.°, n.° 2, da Diretiva IVA permite aos Estados-Membros derrogarem, em caso de não pagamento total ou parcial do preço da operação, a regra prevista no artigo 90.°, n.° 1, desta diretiva. A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que o exercício desta faculdade de derrogação não pode permitir aos Estados-Membros excluir pura e simplesmente a redução do valor tributável do IVA em caso de não pagamento. Com efeito, a referida faculdade destina-se apenas a permitir aos Estados-Membros remediar a incerteza associada ao não pagamento de uma fatura ou ao caráter definitivo deste, mas não resolve a questão de saber se a redução do valor tributável pode não ser efetuada em caso de não pagamento (v., neste sentido, Despacho de 3 de março de 2021, FGSZ, C-507/20, EU:C:2021:157, n.° 20 e jurisprudência referida).
35 Assim, admitir a possibilidade de os Estados-Membros excluírem, em caso de não pagamento total ou parcial do preço da operação, qualquer redução do valor tributável do IVA seria contrário ao princípio da neutralidade do IVA, do qual resulta, designadamente, que, na sua qualidade de cobrador de impostos por conta do Estado, o empresário deve ficar totalmente desonerado do encargo do imposto devido ou pago no âmbito das suas atividades económicas sujeitas a IVA (v., neste sentido, Acórdão de 23 de novembro de 2017, Di Maura, C-246/16, EU:C:2017:887, n.° 23 e jurisprudência referida).
36 No caso em apreço, há que verificar se, em circunstâncias como as que estão em causa no processo principal, o não pagamento dos créditos é abrangido pelo artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA.
37 A este respeito, importa recordar que, em conformidade com o artigo 2.°, n.° 1, alíneas a) e c), desta diretiva, as entregas de bens e as prestações de serviços, efetuadas a título oneroso no território de um Estado-Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade, estão sujeitas a IVA.
38 A este respeito, o Tribunal de Justiça já declarou que a qualificação de operação efetuada «a título oneroso» pressupõe a existência de um nexo direto entre a entrega de bens ou a prestação de serviços e uma contraprestação realmente recebida pelo sujeito passivo (v., neste sentido, Acórdão de 3 de julho de 2019, UniCredit Leasing, C-242/18, EU:C:2019:558, n.° 69 e jurisprudência referida). O Tribunal de Justiça declarou igualmente que para que se possa considerar que uma entrega de bens ou uma prestação de serviços foi efetuada «a título oneroso», não é necessário que a contraprestação dessa entrega ou dessa prestação seja obtida diretamente do destinatário desta, podendo também ser obtida de um terceiro (v., neste sentido, Acórdão de 27 de março de 2014, Le Rayon d’Or, C-151/13, EU:C:2014:185, n.° 34 e jurisprudência referida). Resulta desta jurisprudência que, para efeitos desta qualificação, o elemento determinante é o facto de uma contraprestação ter sido realmente paga.
39 No caso em apreço, a recorrente no processo principal pagou aos clientes sujeitos passivos uma indemnização correspondente a 90 % do montante dos créditos em causa, IVA incluído.
40 Neste contexto, verifica-se que a parte dos créditos que foi objeto de uma indemnização pela recorrente no processo principal foi efetivamente recebida pelos clientes sujeitos passivos como contraprestação das operações tributáveis em causa, pelo que não se pode considerar que foi objeto de um «não pagamento», na aceção do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA.
41 Daqui resulta que esta parte dos créditos, mesmo que tenha sido recebida a título de indemnização, não pode dar origem a nenhum direito à redução do valor tributável do IVA para os clientes sujeitos passivos.
42 Por outro lado, não se pode considerar que, à luz do direito da União em matéria de IVA e independentemente das regras nacionais que podem regular as cessões de crédito em direito civil, uma seguradora como a recorrente no processo principal possa ser identificada como sujeito passivo que tem direito, no que respeita à parte dos créditos que foram objeto de uma indemnização e de uma cessão, a uma redução do valor tributável do IVA nos termos do artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA.
43 Com efeito, o reconhecimento dessa qualidade à referida seguradora constituiria uma violação do princípio da neutralidade fiscal, uma vez que o IVA pago à Autoridade Tributária não seria exatamente proporcional ao preço que foi realmente recebido pelos clientes sujeitos passivos que efetuaram as operações tributáveis em causa.
44 Em face do exposto, há que responder à questão colocada que o artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva IVA, bem como o princípio da neutralidade fiscal devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação de um Estado-Membro nos termos da qual a redução do valor tributável em caso de não pagamento, prevista nessa disposição, não é aplicável a uma seguradora que, no âmbito de um contrato de seguro de créditos comerciais, paga ao segurado, a título de indemnização pelo não pagamento de um crédito, uma parte do montante do valor tributável da operação tributável em causa, incluindo o IVA, ainda que, em conformidade com esse contrato, essa parte do crédito e todos os direitos que lhe estão associados tenham sido cedidos a essa seguradora.
Quanto às despesas
45 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:
O artigo 90.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, conforme alterada pela Diretiva 2010/45/UE do Conselho, de 13 de julho de 2010, bem como o princípio da neutralidade fiscal
devem ser interpretados no sentido de que:
não se opõem a uma regulamentação de um Estado-Membro nos termos da qual a redução do valor tributável em caso de não pagamento, prevista nessa disposição, não é aplicável a uma seguradora que, no âmbito de um contrato de seguro de créditos comerciais, paga ao segurado, a título de indemnização pelo não pagamento de um crédito, uma parte do montante do valor tributável da operação tributável em causa incluindo o Imposto sobre o Valor Acrescentado, ainda que, em conformidade com esse contrato, essa parte do crédito e todos os direitos que lhe estão associados tenham sido cedidos a essa seguradora.
Assinaturas
* Língua do processo: húngaro.