Edição provisória
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)
13 de julho de 2023 (*)
«Reenvio prejudicial – Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA) – Regulamentação nacional que prevê a possibilidade de suspender, sem limite de tempo, o prazo de prescrição da ação da Administração Fiscal em caso de processo judicial – Processo fiscal reiterado – Regulamento n.° 2988/95 – Âmbito de aplicação – Princípios da segurança jurídica e da efetividade do direito da União»
No processo C-615/21,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Szegedi Törvényszék (Tribunal de Szeged, Hungria), por Decisão de 4 de outubro de 2021, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 4 de outubro de 2021, no processo
Napfény-Toll Kft.
contra
Recorrida: Nemzeti Adó- és Vámhivatal Fellebbviteli Igazgatósága,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),
composto por: E. Regan (relator), Presidente de Secção, K. Lenaerts, Presidente do Tribunal de Justiça, no exercício de funções de juiz da Quinta Secção, D. Gratsias, M. Ilešič e I. Jarukaitis, juízes,
advogado-geral: A. Rantos,
secretário: I. Illéssy, administrador,
vistos os autos e após a audiência de 10 de novembro de 2022,
vistas as observações apresentadas:
– em representação da Napfény-Toll Kft., por L. Detvay, O. Kovács, P. Nagy e Gy. Tiborfi, ügyvédek,
– em representação do Governo húngaro, por M. Z. Fehér e R. Kissné Berta, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo espanhol, por A. Ballesteros Panizo, na qualidade de agente,
– em representação da Comissão Europeia, por F. Blanc, J. Jokubauskaitė, e A. Sipos, na qualidade de agentes,
ouvidas as conclusões do advogado-geral na audiência de 2 de fevereiro de 2023,
profere o presente
Acórdão
1 O presente pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos princípios da segurança jurídica e da efetividade do direito da União no âmbito da aplicação da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (a seguir «Diretiva IVA»).
2 Foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Napfény-Toll Kft. à Nemzeti Adó- és Vámhivatal Fellebbviteli Igazgatósága (Direção de Recursos da Administração Nacional Tributária e Aduaneira, Hungria), a respeito do direito de essa sociedade deduzir do montante do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) de que é devedora o montante de IVA devido a título de diferentes aquisições de bens efetuadas em junho de 2010 e entre novembro de 2010 e setembro de 2011.
Quadro jurídico
Direito da União
Diretiva 2006/112
3 O considerando 8 da Diretiva 2006/112 enuncia:
«Nos termos da Decisão 2000/597/CE, Euratom do Conselho, de 29 de setembro de 2000, relativa ao sistema de recursos próprios das Comunidades Europeias [(JO 2000, L 253, p. 42)], o orçamento das Comunidades é, sem prejuízo das outras receitas, financiado integralmente por recursos próprios das Comunidades. Tais recursos incluem, entre outros, os recursos provenientes do IVA, obtidos mediante a aplicação de uma taxa comum a um valor tributável determinado de modo uniforme, de acordo com as normas comunitárias.»
Regulamento (CE, EURATOM) n.° 2988/95
4 O artigo 1.° do Regulamento (CE, Euratom) n.° 2988/95 do Conselho, de 18 de dezembro de 1995, relativo à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias, dispõe:
«1) Para efeitos da proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias, é adotada uma regulamentação geral em matéria de controlos homogéneos e de medidas e sanções administrativas relativamente a irregularidades no domínio do direito comunitário.
2. Constitui irregularidade qualquer violação de uma disposição de direito comunitário que resulte de um ato ou omissão de um agente económico que tenha ou possa ter por efeito lesar o orçamento geral das Comunidades ou orçamentos geridos pelas Comunidades, quer pela diminuição ou supressão de receitas provenientes de recursos próprios cobradas diretamente por conta das Comunidades, quer por uma despesa indevida.»
5 O artigo 3.°, n.os 1 e 3, do referido regulamento dispõe:
«1. O prazo de prescrição do procedimento é de quatro anos a contar da data em que foi praticada a irregularidade referida no n.° 1 do artigo 1.° [...]
O prazo de prescrição relativo às irregularidades continuadas ou repetidas corre desde o dia em que cessou a irregularidade. O prazo de prescrição no que se refere aos programas plurianuais corre em todo o caso até ao encerramento definitivo do programa.
A prescrição do procedimento é interrompida por qualquer ato, de que seja dado conhecimento à pessoa em causa, emanado da autoridade competente tendo em vista instruir ou instaurar procedimento por irregularidade. O prazo de prescrição corre de novo a contar de cada interrupção.
Todavia, a prescrição tem lugar o mais tardar na data em que termina um prazo igual ao dobro do prazo de prescrição sem que a autoridade competente tenha aplicado uma sanção, exceto nos casos em que o procedimento administrativo tenha sido suspenso em conformidade com o n.° 1 do artigo 6.°
[...]
3. Os Estados-Membros conservam a possibilidade de aplicar um prazo mais longo que os previstos respetivamente nos n.os 1 e 2.»
Decisão 2007/436/CE
6 A Decisão 2007/436/CE, Euratom do Conselho, de 7 de junho de 2007, relativa ao sistema de recursos próprios das Comunidades Europeias (JO 2007, L 163, p. 17), que revogou e substituiu a Decisão 2000/597, dispõe, no seu artigo 2.°, n.° 1, alínea b):
«Constituem recursos próprios inscritos no orçamento geral da União Europeia as receitas provenientes:
[...]
b) [...] a aplicação de uma taxa uniforme, válida para todos os Estados-Membros, à base do IVA, determinada de maneira harmonizada segundo regras da Comunidade. [...]»
Direito húngaro
Regulamentação relativa à suspensão dos prazos de prescrição em matéria fiscal
7 Nos termos do artigo 164.° da az adózás rendjéről szóló 2003. évi XCII. törvény (Lei n.° XCII de 2003, que aprova o Código de Procedimento Tributário) [(Magyar Közlöny 2003/131 (XI. 14.)], na versão aplicável ao processo principal (a seguir «antigo Código de Procedimento Tributário»):
«1) O direito de liquidar o imposto prescreve no prazo de cinco anos a contar do último dia do ano civil em que a declaração ou notificação relativa a esse imposto devia ter sido feita, ou, na falta de declaração ou notificação, do último dia do ano civil em que o imposto devia ter sido pago.
[...]
5) Em caso de fiscalização jurisdicional da decisão da autoridade tributária, o prazo de prescrição do direito de fixar o montante correto do imposto devido deixa de correr durante o período compreendido entre a data em que a decisão da autoridade tributária de segundo grau se tornou definitiva e, portanto, em caso de recurso de segunda instância, a data da decisão deste recurso.»
8 O antigo Código de Procedimento Tributário foi revogado e substituído, a partir de 1 de janeiro de 2018, pelas disposições da az adóigazgatási rendtartásról szóló 2017. évi CLI. törvény (Lei n.° CLI de 2017, relativa à Organização da Administração Fiscal) (Magyar Közlöny 2017/192), na sua versão aplicável ao processo principal, e as da az adózás rendjéről szóló 2017. évi CL. törvény (Lei n.° CL de 2017, que aprova o Código de Procedimento Tributário) (Magyar Közlöny 2017/192), na sua versão aplicável ao processo principal (a seguir «novo Código de Procedimento Tributário»).
9 O artigo 203.°, n.° 3, do novo Código do Procedimento Tributário reproduz, em substância, o conteúdo do artigo 164.° do antigo Código do Procedimento Tributário. Nos termos desse artigo 203.°, n.° 3, se o contribuinte tiver interposto recurso contencioso administrativo de uma decisão da autoridade tributária, o prazo de prescrição do direito de a Administração Fiscal fixar o montante correto do imposto devido fica suspenso entre a data em que a decisão da autoridade tributária de segundo grau se tornou definitiva e a data em que a decisão jurisdicional transitou em julgado ou, em caso de recurso de segunda instância, a data em que este último é decidido.
10 O artigo 203.°, n.° 7, alínea c), deste novo código enuncia que esse prazo de prescrição é prorrogado por doze meses, nomeadamente, se, na apreciação de um recurso administrativo contencioso interposto de uma decisão da autoridade tributária, o órgão jurisdicional competente ordenar a abertura de um novo procedimento.
11 De acordo com o artigo 271.°, n.° 1, do novo Código de Procedimento Tributário, há que aplicar as disposições deste novo código, incluindo as do seu artigo 203.°, n.° 7, alínea c), aos processos iniciados ou reiterados após a sua entrada em vigor.
Jurisprudência relativa à aplicação da regulamentação relativa à suspensão dos prazos de prescrição em matéria fiscal
12 No Acórdão Kfv. I.35.343/2019/11, a Kúria (Supremo Tribunal, Hungria) indicou, no que respeita ao objetivo prosseguido pela regulamentação relativa à suspensão dos prazos de prescrição em matéria fiscal:
«No âmbito do antigo Código de Procedimento Tributário, é a própria “fiscalização jurisdicional” e não o conteúdo da decisão que lhe põe termo que condiciona a aplicabilidade da suspensão e a prorrogação do prazo de prescrição. A fiscalização jurisdicional tem início com a interposição do recurso [...] Uma decisão nula não pode produzir qualquer efeito jurídico ex tunc uma vez declarada essa nulidade; porém, a autoridade tributária, em razão da fiscalização jurisdicional, pode tomar uma decisão adequada para produzir efeitos jurídicos no prazo previsto no antigo Código de Procedimento Tributário.»
13 Por Decisão de 25 de janeiro de 2022, ou seja, proferida posteriormente à apresentação do pedido de decisão prejudicial, o Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional, Hungria) anulou o artigo 271.°, n.° 1, do novo Código de Procedimento Tributário na medida em que incluía o termo «reiterados», com o fundamento, em substância, de que esse termo tinha por efeito tornar retroativamente aplicável a processos reiterados em curso a prorrogação do prazo de prescrição prevista no artigo 203.°, n.° 7, alínea c), desse novo código.
Litígio no processo principal e questão prejudicial
14 A Napfény-Toll deduziu do montante do IVA de que era devedora o montante de IVA devido por diferentes aquisições de bens efetuadas durante o mês de junho de 2010, bem como entre novembro de 2010 e setembro de 2011.
15 Em dezembro de 2011, a Nemzeti Adó — és Vámhivatal Dél-budapesti Igazgatósága (Administração Nacional Fiscal e Aduaneira — Direção de Budapeste Sul, Hungria) deu início, enquanto autoridade de primeiro grau, a uma inspeção fiscal que foi notificada à Napfény-Toll em 13 desse mês.
16 Na sequência dessa inspeção fiscal, essa direção considerou que uma parte do montante do imposto que tinha sido deduzido pela Napfény-Toll a título dos períodos em causa não o deveria ter sido, uma vez que algumas das faturas invocadas para o efeito não correspondiam a nenhuma operação económica real e outras participavam numa fraude fiscal de que a Napfény-Toll tinha conhecimento. Consequentemente, por Decisão de 8 de outubro de 2015 (a seguir «decisão administrativa de primeiro grau»), essa direção exigiu à Napfény-Toll o pagamento do imposto em atraso no montante total de 144 785 000 forints húngaros (HUF) (cerca de 464 581 euros), aplicou-lhe uma coima no montante de 108 588 000 HUF (cerca de 348 433 euros) e uma penalização por mora de 46 080 000 HUF (cerca de 147 860 euros).
Primeira decisão administrativa de segundo grau
17 Por Decisão de 11 de dezembro de 2015, notificada em 14 de dezembro seguinte (a seguir «primeira decisão administrativa de segundo grau»), a Nemzeti Adó — és Vámhivatal Közép-magyarországi Regionális Adó Főigazgatósága (Administração Nacional Fiscal e Aduaneira — Direção-Geral da Região da Hungria Central, Hungria) (a seguir «Direção-Geral da Região da Hungria Central»), atualmente Direção de Recursos da Administração Nacional Fiscal e Aduaneira, chamada a pronunciar-se sobre uma reclamação apresentada pela Napfény-Toll, anulou, enquanto autoridade administrativa tributária de segundo grau, a decisão administrativa de primeiro grau no respeitante à penalidade por mora aplicada à Napfény-Toll e negou provimento a esse recurso hierárquico quanto ao restante. A Napfény-Toll interpôs recurso da primeira decisão administrativa de segundo grau.
18 Por Sentença de 2 de março de 2018, transitada em julgado no mesmo dia, o Fővárosi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Budapeste-Capital, Hungria) anulou a primeira decisão administrativa de segundo grau e ordenou a abertura de novo procedimento. Para fundamentar a sua sentença, o Fővárosi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Budapeste-Capital) indicou ter verificado que essa primeira decisão administrativa estava ferida de fundamentação contraditória. Com efeito, apesar de essa decisão administrativa referir factos diferentes dos que foram apurados na decisão administrativa de primeiro grau, declarava, ao mesmo tempo, que a autoridade tributária de primeiro grau tinha apurado corretamente os factos.
Segunda decisão administrativa de segundo grau
19 Por Decisão de 5 de março de 2018, notificada à Napfény-Toll em 7 de março de 2018 (a seguir «segunda decisão administrativa de segundo grau»), a Direção-Geral da Região da Hungria Central confirmou, no essencial, a decisão administrativa de primeiro grau. Reduziu, porém, o montante da penalidade por mora aplicada à Napfény-Toll.
20 Por Sentença de 5 de julho de 2018, transitada em julgado no mesmo dia, o Fővárosi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Budapeste-Capital), chamado a pronunciar-se sobre um recurso interposto pela Napfény-Toll, anulou a segunda decisão administrativa de segundo grau e ordenou a abertura de novo procedimento, com o fundamento de que, por um lado, a segunda decisão administrativa de segundo grau, proferida no primeiro dia útil seguinte à prolação da Sentença de 2 de março de 2018, reproduzia, em grande parte palavra por palavra, a primeira decisão administrativa de segundo grau, sem no entanto deixar transparecer em que medida esta segunda decisão administrativa alterava a constatação feita na decisão administrativa de primeiro grau, tendo as consequências retiradas dessa Sentença de 2 de março de 2018 sido apenas formais, e, por outro, a segunda decisão administrativa de segundo grau continuava a conter constatações contraditórias no respeitante à realidade das operações em causa.
21 Em recurso jurisdicional de segunda instância interposto pela administração fiscal, a Kúria (Supremo Tribunal), por Acórdão de 30 de janeiro de 2020, confirmou a Sentença de 5 de julho de 2018 quanto ao mérito por duas razões. Por um lado, na medida em que a fundamentação da segunda decisão administrativa de segundo grau reproduzia a da primeira decisão administrativa de segundo grau, a Kúria (Supremo Tribunal) declarou que foi com razão que o Fővárosi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Budapeste-Capital) tinha declarado que a Direção-Geral da Região da Hungria Central não tinha cumprido as orientações fixadas de forma vinculativa na Sentença de 2 de março de 2018. É certo que essa direção-geral apenas dispunha, como alega, de um curto espaço de tempo antes de prescreverem o direito de liquidar o imposto, e, consequentemente, o montante de IVA a pagar, mas tal circunstância não a dispensava do cumprimento das suas obrigações legais. Por outro lado, a Kúria (Supremo Tribunal) declarou, à semelhança do Fővárosi Közigazgatási és Munkaügyi Bíróság (Tribunal Administrativo e do Trabalho de Budapeste-Capital), que a segunda decisão administrativa de segundo grau estava ferida de fundamentação contraditória.
Terceira decisão administrativa de segundo grau
22 Por Decisão de 6 de abril de 2020 (a seguir «terceira decisão administrativa de segundo grau»), a Direção-Geral da Região da Hungria Central confirmou a decisão administrativa de primeiro grau, alterando, porém, o montante da penalidade por mora aplicada à Napfény-Toll. Para justificar a sua posição, esta Direção-Geral indicou que não tinha apurado a existência de factos diferentes dos provados na decisão administrativa de primeiro grau, na qual esses factos tinham sido corretamente provados.
23 A Napfény-Toll interpôs recurso da terceira decisão administrativa de segundo grau para o Szegedi Törvényszék (Tribunal Regional de Szeged, Hungria), o órgão jurisdicional de reenvio, argumentando, nomeadamente, que, por força do artigo 164.°, n.os 1 e 5, do antigo Código do Procedimento Tributário, o direito de a Autoridade Tributária liquidar os montantes de IVA a pagar prescreve no prazo de cinco anos a contar do último dia do ano civil em que a declaração ou a notificação relativa a esse imposto foram feitas, ou, na falta de declaração ou de notificação, do último dia do ano civil em que o imposto devia ter sido pago. Ora, o direito de a autoridade tributária fixar os montantes de IVA a pagar relativamente aos períodos em causa extinguiu-se antes da data de adoção da terceira decisão administrativa de segundo grau. Com efeito, a recorrente considera que a adoção repetida de decisões é contrária ao princípio da segurança jurídica que a prescrição se destina a preservar. Isto é tanto mais assim quanto, no processo principal, se a segunda abertura de um novo procedimento teve lugar, foi devido ao facto de a Direção-Geral da Região da Hungria Central não ter respeitado as orientações que figuravam na primeira decisão jurisdicional. Foi, portanto, por culpa desta Direção-Geral que o procedimento em causa no processo principal se estendeu por cerca de dez anos a contar do início da inspeção fiscal notificada à Napfény-Toll.
24 Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio refere que o artigo 164.°, n.° 5, do antigo Código de Procedimento Tributário não prevê qualquer limitação do número de vezes em que um procedimento tributário pode ser reiterado pela administração fiscal ou da duração total da suspensão desse processo. Ora, segundo a jurisprudência da Kúria (Supremo Tribunal), a prescrição suspende-se durante todo o período da fiscalização jurisdicional de uma decisão dessa administração. Por conseguinte, não há limite temporal para a suspensão do prazo de prescrição em caso de fiscalização jurisdicional, pelo que o direito de a autoridade tributária liquidar os montantes de IVA a pagar poderá prolongar-se por vários anos, ou até, em casos extremos, por dezenas de anos. Por esta razão, o órgão jurisdicional de reenvio tem dúvidas quanto à compatibilidade da legislação em causa no processo principal e da respetiva prática administrativa com os princípios da segurança jurídica e da efetividade.
25 Nestas circunstâncias, o Szegedi Törvényszék (Tribunal de Szeged) suspendeu a instância e submeteu ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«Devem os princípios da segurança jurídica e da efetividade, que fazem parte do direito [da União], ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação de um Estado-Membro que não confere ao juiz nenhuma margem de apreciação, como a do artigo 164.°, n.° 5, [do antigo Código de Processo Tributário], nem à prática que assenta nessa regulamentação, por força das quais, em matéria de [IVA], o prazo de [prescrição] do direito da Administração Tributária de liquidar o imposto é suspenso durante todo o decurso da fiscalização jurisdicional, independentemente do número de procedimentos administrativos fiscais repetidos, sem limitação da duração acumulada das suspensões, quando se verificam várias fiscalizações jurisdicionais seguidas, incluindo no caso de o órgão jurisdicional que se pronuncia sobre uma decisão da autoridade tributária tomada no âmbito de um procedimento repetido subsequente a uma decisão judicial anterior que declara que a autoridade tributária não respeitou as orientações constantes dessa decisão judicial, ou seja, quando o novo processo jurisdicional ocorrer por falta imputável à referida autoridade[?]»
Quanto ao processo posterior à apresentação do pedido de decisão prejudicial
26 Posteriormente à apresentação do pedido de decisão prejudicial, o órgão jurisdicional de reenvio transmitiu ao Tribunal de Justiça, por carta de 3 de maio de 2022, uma cópia da Decisão do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional), de 25 de janeiro de 2022, que anulou o artigo 271.°, n.° 1, do novo Código de Procedimento Tributário na medida em que esta disposição incluía o termo «reiteradas», bem como uma cópia de uma segunda Decisão do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional), de 26 de abril de 2022, proferida igualmente nesse sentido.
27 Por carta de 30 de junho de 2022, o Tribunal de Justiça convidou o órgão jurisdicional de reenvio a confirmar, tendo em conta certas indicações que este último tinha inicialmente fornecido, que, na sequência da decisão do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) de anular o artigo 271.°, n.° 1, do novo Código de Procedimento Tributário na medida em que esta disposição incluía o termo «reiteradas», o processo principal, de qualquer forma, não estava prescrito.
28 Por carta de 7 de julho de 2022, o órgão jurisdicional de reenvio declarou, em substância, que a decisão do Alkotmánybíróság (Tribunal Constitucional) tinha unicamente por efeito a prescrição do direito de a administração fiscal liquidar o montante do IVA a pagar relativamente pelo exercício fiscal de 2010. Em contrapartida, no que respeita ao exercício fiscal de 2011, esse órgão jurisdicional mencionou que apreciará o caráter prescrito ou não desse direito da administração fiscal em função da resposta que o Tribunal de Justiça der à questão submetida.
Quanto à questão prejudicial
29 Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se os princípios da segurança jurídica e da efetividade do direito da União devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma regulamentação de um Estado-Membro e à respetiva prática administrativa, por força das quais, em matéria de IVA, o prazo de prescrição do direito de a Administração Fiscal liquidar esse imposto está suspenso durante todo o período de fiscalização jurisdicional, independentemente do número de vezes que o mesmo procedimento fiscal administrativo teve de ser reiterado na sequência dessas fiscalizações e sem limitação da duração acumulada das suspensões desse prazo, incluindo no caso de o órgão jurisdicional que se pronuncia sobre uma decisão da autoridade fiscal em causa tomada no âmbito de um processo reiterado na sequência de uma decisão judicial anterior declarar que essa autoridade fiscal não respeitou as orientações que figuram nessa decisão judicial.
30 Refira-se, a título preliminar, que, no estado atual, o direito da União nem fixa um prazo de prescrição do direito de a administração fiscal determinar o IVA nem precisa, por maioria de razão, os casos em que esse prazo deve ser suspenso.
31 É certo que o Regulamento n.° 2988/95, evocado na audiência no Tribunal de Justiça, estabelece determinadas exigências em matéria de cômputo e de suspensão dos prazos de prescrição dos procedimentos por irregularidades previstos nesse regulamento. Todavia, resulta do artigo 1.°, n.° 2, do referido regulamento que este só se aplica em caso de prejuízo para o orçamento da União devido à diminuição ou supressão de receitas provenientes de recursos próprios «cobradas diretamente por conta da União». Ora, embora resulte do considerando 8 da Diretiva 2006/112 e do artigo 2.°, n.° 1, alínea b), da Decisão 2007/436 que constituem recursos próprios da União as receitas provenientes da aplicação de uma taxa uniforme válida para todos os Estados-Membros à matéria coletável harmonizada do IVA, de modo, segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça, a existir uma relação entre a cobrança das receitas provenientes do IVA no respeito do direito da União aplicável e a colocação dos correspondentes recursos IVA à disposição do orçamento da União (Acórdão de 26 de fevereiro de 2013, Åkerberg Fransson, C-617/10, EU:C:2013:105, n.° 26), não é menos verdade que não se pode considerar que o IVA é cobrado diretamente por conta da União, na aceção do artigo 1.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2988/95.
32 Com efeito, por um lado, este imposto é cobrado pelos sujeitos passivos e, só depois, pago por estes últimos aos Estados-Membros. Por outro lado, de acordo com o artigo 1.° do Regulamento (CEE, Euratom) n.° 1553/89 do Conselho, de 29 de maio de 1989, relativo ao regime uniforme e definitivo de cobrança dos recursos próprios provenientes do Imposto sobre o Valor Acrescentado (JO 1989, L 155, p. 9), os recursos próprios da União baseados no IVA não consistem simplesmente numa percentagem das receitas desse imposto efetivamente cobradas, antes resultam da aplicação de uma taxa uniforme à matéria coletável do IVA dos Estados-Membros, calculada em conformidade com o artigo 3.° deste regulamento e sujeita a diversos ajustamentos previstos pelas disposições do referido regulamento.
33 A este respeito, é certo que o Tribunal de Justiça reconheceu a aplicabilidade da Convenção estabelecida com base no artigo K.3 do Tratado da União Europeia, relativa à proteção dos interesses financeiros das Comunidades Europeias assinada no Luxemburgo, em 26 de julho de 1995 (JO 1995 C 316, p. 48), aos casos de fraude relativa às receitas provenientes da aplicação de uma taxa uniforme à matéria coletável harmonizada do IVA determinada segundo as regras da União. Contudo, o artigo 1.° dessa convenção precisamente não contém, ao contrário da redação clara do artigo 1.°, n.° 2, do Regulamento n.° 2988/95, a condição da cobrança direta das receitas em causa por conta da União (v., neste sentido, Acórdão de 8 de setembro de 2015, Taricco e o., C-105/14, EU:C:2015:555, n.° 41).
34 Assim, na falta de qualquer regulamentação vinculativa do direito da União nesta matéria, cabe aos Estados-Membros aprovarem e aplicarem normas de prescrição em matéria de direito de a administração fiscal liquidar o IVA devido, incluindo as modalidades de suspensão e/ou de interrupção (v., por analogia, Acórdão de 21 de janeiro de 2021, Whiteland Import Export, C-308/19, EU:C:2021:47, n.° 45).
35 Contudo, embora a aprovação e a aplicação dessas normas sejam da competência dos Estados-Membros, estes devem exercer essa competência dentro do respeito do Direito da União, que exige a fixação de prazos razoáveis que protejam simultaneamente o contribuinte e a administração em causa (v., por analogia, Acórdão de 8 de setembro de 2011, Q-Beef e Bosschaert, C-89/10 e C-96/10, EU:C:2011:555, n.° 36).
36 A esse respeito, o Tribunal de Justiça já decidiu no sentido de que um prazo de prescrição de cinco anos, aplicável aos pedidos de reembolso de excedentes de IVA e que começa a correr no final do ano civil em que expirou o prazo de pagamento do imposto, estava em conformidade com o Direito da União (v., neste sentido, Acórdão de 20 de dezembro de 2017, Caterpillar Financial Services, C-500/16, EU:C:2017:996, n.° 43).
37 À luz desta jurisprudência, um prazo de prescrição do direito de a administração fiscal liquidar o IVA devido que, como no processo principal, corre durante um período de cinco anos a contar do último dia do ano civil em que deveria ter sido efetuada a declaração ou a notificação relativa a esse imposto ou, na falta dessa declaração ou dessa notificação, a contar do último dia do ano civil em que o imposto deveria ter sido pago, deve, por analogia, ser considerado conforme com o direito da União.
38 É neste contexto que o órgão jurisdicional de reenvio se interroga sobre a questão de saber se os princípios da segurança jurídica e da efetividade devem ser interpretados no sentido de que se opõem a que esse prazo de prescrição possa ser suspenso durante todo o período das fiscalizações jurisdicionais.
39 Em primeiro lugar, importa recordar que o princípio da segurança jurídica faz parte do ordenamento jurídico da União e que, como tal, deve ser respeitado pelos Estados-Membros no exercício das competências referidas nos n.os 31 e 32 do presente acórdão (v., neste sentido, Acórdãos de 10 de dezembro de 2015, Veloserviss, C-427/14, EU:C:2015:803, n.° 30 e jurisprudência referida, bem como de 20 de maio de 2021, BTA Baltic Insurance Company, C-230/20, não publicado, EU:C:2021:410, n.° 45).
40 Segundo jurisprudência constante, este princípio visa garantir a previsibilidade das situações e das relações jurídicas e exige, nomeadamente, que a situação de um sujeito passivo relativa aos seus direitos e obrigações para com a administração fiscal ou aduaneira não possa ser indefinidamente posta em causa (Acórdão de 10 de dezembro de 2015, Veloserviss, C-427/14, EU:C:2015:803, n.° 31 e jurisprudência referida), o que implica que esse sujeito passivo, para poder utilmente invocar a aplicação desse princípio, possa invocar uma situação jurídica determinada.
41 Ora, uma vez que, antes do termo do prazo de prescrição previsto para esse efeito, a administração fiscal notificou o sujeito passivo em causa da sua intenção de reexaminar a sua situação fiscal e, assim, implicitamente, de revogar a sua decisão de aceitar a sua declaração, este sujeito passivo já não pode invocar a situação que teria surgido com base nessa declaração, pelo que, nessa hipótese e na falta de outras circunstâncias, o princípio da segurança jurídica não pode ser violado (v., neste sentido, Acórdão de 9 de julho de 2015, Cabinet Medical Veterinar Dr. Tomoiagă Andrei, C-144/14, EU:C:2015:452, n.° 40).
42 De resto, uma vez que as exigências decorrentes da aplicação do princípio da segurança jurídica não são absolutas, os Estados-Membros devem ponderá-las com as outras exigências inerentes à sua pertença à União, em especial as recordadas no artigo 4.°, n.° 3, TUE, para tomarem todas as medidas gerais ou específicas adequadas para garantir a execução das obrigações decorrentes dos Tratados ou de atos adotados pelas instituições em aplicação destes últimos. Assim, as normas nacionais que fixam as modalidades de suspensão do prazo de prescrição do direito de a administração fiscal fixar o IVA devido devem ser concebidas de modo a alcançar um equilíbrio entre, por um lado, as exigências inerentes à aplicação desse princípio e, por outro, as que permitem a execução efetiva e eficaz da Diretiva 2006/112, devendo este equilíbrio ser avaliado tendo em consideração todos os elementos do regime nacional de prescrição (v., por analogia, Acórdão Whiteland Import Export, C-308/19, EU:C:2021:47, n.os 49 e 50).
43 Ora, embora uma regulamentação nacional e uma prática administrativa como as descritas pelo órgão jurisdicional de reenvio, cuja previsibilidade de aplicação aos administrados não é contestada no processo principal, sejam suscetíveis de gerar um prolongamento da duração desse prazo de prescrição, não é por isso que podem, em princípio, tornar a situação dos sujeitos passivos em causa suscetível de ser indefinidamente posta em causa. Em contrapartida, essa suspensão permite evitar que execução efetiva e eficaz da Diretiva 2006/112 possa ser ameaçada pela interposição de recursos dilatórios e, por conseguinte, que seja comprometida por um risco sistémico de impunidade dos factos constitutivos de infrações a essa diretiva (v., por analogia, Acórdão de 21 de janeiro de 2021, Whiteland Import Export, C-308/19, EU:C:2021:47, n.os 53 e 56).
44 Consequentemente, há que considerar que o princípio da segurança jurídica não se opõe a uma regulamentação nacional e a uma prática administrativa que preveem que o prazo de prescrição do direito de a administração fiscal liquidar o IVA está suspenso durante todo o período das fiscalizações jurisdicionais, independentemente do número de vezes que o procedimento fiscal administrativo em causa tenha tido que ser reiterado na sequência dessas fiscalizações e sem limitação da duração cumulada das suspensões desse prazo.
45 Em segundo lugar, no que respeita ao princípio da efetividade, igualmente evocado pelo órgão jurisdicional de reenvio na sua questão, há que lembrar que este enquadra, com o princípio da equivalência, cujo respeito não foi posto em causa pelo referido órgão jurisdicional, a autonomia processual de que gozam os Estados-Membros para definir as modalidades de exercício dos direitos que o ordenamento jurídico da União confere aos particulares, quando o direito da União não contenha qualquer regulamentação específica a este respeito.
46 Ora, as normas do direito nacional relativas aos prazos em que prescrevem os direitos e as obrigações previstos na Diretiva 2006/112 e às condições de suspensão desses prazos constituem modalidades de execução das disposições dessa diretiva e estão, portanto, sujeitas ao respeito dos princípios da efetividade e da equivalência (v., neste sentido, nomeadamente, Acórdãos de 20 de dezembro de 2017, Caterpillar Financial Services, C-500/16, EU:C:2017:996, n.° 37; de 26 de abril de 2018, Zabrus Siret, C-81/17, EU:C:2018:283, n.° 38; de 14 de fevereiro de 2019, Nestrade, C-562/17, EU:C:2019:115, n.° 35, e de 23 de abril de 2020, Sole-Mizo e Dalmandi Mezőgazdasági, C-13/18 e C-126/18, EU:C:2020:292, n.° 53), o que, aliás, não é contestado no caso presente.
47 Por conseguinte, de acordo com o princípio da efetividade, estas disposições processuais não devem ser organizadas de modo a tornar impossível ou excessivamente difícil, na prática, o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União [v., neste sentido, Acórdãos de 19 de julho de 2012, Littlewoods Retail e o., C-591/10, EU:C:2012:478, n.° 28, e de 28 de junho de 2022, Comissão/Espanha (Violação do direito da União pelo legislador), C-278/20, EU:C:2022:503, n.° 33].
48 No entanto, o facto de uma regulamentação nacional ou de uma prática administrativa nacional prever que o prazo de prescrição do direito de a administração fiscal liquidar o IVA está suspenso durante todo o período das fiscalizações jurisdicionais, seja qual for o número de vezes que o procedimento fiscal administrativo teve de ser reiterado na sequência dessas fiscalizações e sem limitação da duração cumulada das suspensões desse prazo, não é suscetível de, na prática, impossibilitar ou, pelo menos, dificultar excessivamente o exercício dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União.
49 Com efeito, a suspensão do prazo de prescrição do direito de a administração fiscal liquidar esse imposto durante toda o período da fiscalização jurisdicional de modo nenhum impede esse sujeito passivo de invocar os direitos conferidos pelo ordenamento jurídico da União, nomeadamente pela Diretiva 2006/112, antes visa, pelo contrário, permitir ao referido sujeito passivo invocar utilmente os direitos que lhe são conferidos pelo direito da União, preservando embora os da administração fiscal.
50 De resto, no caso, resulta da descrição dos factos no pedido de decisão prejudicial que a recorrente no processo principal pôde interpor recursos das decisões sucessivamente tomadas pela administração fiscal e, nessas ocasiões renovadas, invocar os direitos que lhe são conferidos pelo direito da União. Em especial, apesar da existência da regulamentação e da prática administrativa em causa no processo principal, esta recorrente pôde invocar, com fundamento no princípio da segurança jurídica, a obrigação de os Estados-Membros preverem um prazo razoável de prescrição no qual essa administração pode reabrir o procedimento de apreciação da situação de um sujeito passivo. Assim, resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe, o que, aliás, confirmaram na audiência no Tribunal de Justiça tanto o Governo húngaro como a recorrente no processo principal, que o direito de a administração fiscal liquidar o IVA devido sobre as operações realizadas em junho de 2010 se extinguiu, sem que esta tenha conseguido emitir um aviso de liquidação retificativo em conformidade com as disposições da Diretiva 2006/112.
51 Por conseguinte, há que considerar que o princípio da efetividade também não se opõe a uma regulamentação nacional e a uma prática administrativa que prevejam que o prazo de prescrição do direito de a administração fiscal liquidar o IVA está suspenso durante todo o período das fiscalizações jurisdicionais, independentemente do número de vezes que o procedimento fiscal administrativo em causa teve de ser reiterado na sequência dessas fiscalizações e sem limitação da duração acumulada das suspensões desse prazo.
52 Refira-se, em terceiro lugar, como faz o advogado-geral nos n.os 60 a 65 das suas conclusões, que o facto de nem o princípio da segurança jurídica nem o princípio da efetividade se oporem a essa regulamentação e a tal prática administrativa não exclui que, sendo caso disso, o direito da União imponha que sejam retiradas certas consequências da repetição de um número excessivo de procedimentos fiscais antes de chegar a uma decisão conforme com a Diretiva 2006/112 ou do caráter excessivo da duração acumulada das suspensões do prazo de prescrição desse direito da administração fiscal.
53 Com efeito, quando uma administração nacional aplica o direito da União a uma pessoa, esta goza, por força do direito a uma boa administração que reflete um princípio do direito da União, do direito a que a sua situação seja tratada num prazo razoável (v., neste sentido, Acórdão de 14 de maio de 2020, Agrobet CZ, C-446/18, EU:C:2020:369, n.° 43), e depois, em caso de recurso jurisdicional, do direito a que, em conformidade com o artigo 47.°, segundo paragrafo, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a sua causa seja igualmente julgada num prazo razoável.
54 Por conseguinte, uma vez reaberto o procedimento de exame da situação de um sujeito passivo à luz das regras do sistema comum do IVA, o princípio da boa administração e o artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais exigem que os períodos dessa reapreciação e, sendo caso disso, das fiscalizações jurisdicionais subsequentes não sejam irrazoáveis à luz das circunstâncias próprias de cada processo.
55 Ora, embora qualquer tentativa infrutífera de a administração fiscal dar cumprimento a uma decisão jurisdicional que aplica disposições do direito da União e, por conseguinte, o consequente prolongamento da duração do procedimento administrativo não possa caracterizar uma violação do direito da União, pode ser esse o caso, em contrapartida, quando esse procedimento administrativo tenha tido que ser reiterado devido à inobservância manifesta, por essa administração, de um fundamento decisivo de uma decisão jurisdicional relativa ao referido procedimento administrativo, desde que esse fundamento tenha sido enunciado de forma clara e explícita nessa decisão jurisdicional.
56 No entanto, há que lembrar que a duração excessiva de um processo, administrativo ou judicial, só pode justificar a anulação da decisão tomada no seu termo se essa duração tiver afetado a capacidade de defesa da pessoa em causa (v., neste sentido, Acórdãos de 26 de novembro de 2013, Gascogne Sack Deutschland/Comissão, C-40/12 P, EU:C:2013:768, n.° 81, e de 8 de maio de 2014, Bolloré/Comissão, C-414/12 P, não publicado, EU:C:2014:301, n.° 84).
57 Na medida em que, durante o prazo de prescrição, os sujeitos passivos devem esperar que a sua situação jurídica constituída com base na sua declaração possa ser posta em causa e, depois, quando a administração fiscal os informa da reabertura do procedimento de análise dessa situação, que poderão ser levados a justificar as informações que constam da sua declaração fiscal e, por último, quando interpõem recurso do aviso de liquidação retificativo emitido no termo desse procedimento, que devem demonstrar a procedência da sua alegação através da apresentação de provas, cabe-lhes garantir que conservam todos os documentos comprovativos relevantes relativos à sua declaração até que as decisões de tributação se tornem definitivas. Dado o papel predominante da declaração e das provas documentais no sistema comum do IVA para efeitos da determinação da exatidão das declarações dos sujeitos passivos, só em circunstâncias excecionais é que se pode demonstrar que a duração excessiva de um processo administrativo ou jurisdicional é suscetível de ter tido incidência na capacidade de a pessoa em causa se defender.
58 No caso, não resulta dos autos de que o Tribunal de Justiça dispõe que a apreciação da validade da terceira decisão administrativa de segundo grau pelo órgão jurisdicional de reenvio depende exclusivamente de elementos de prova não abrangidos pela obrigação lembrada no número anterior e que, devido à reiteração dos processos fiscais ou à duração acumulada das suspensões do prazo de prescrição, tenham entretanto desaparecido.
59 No entanto, cabe a esse órgão jurisdicional determinar se, tendo em conta, nomeadamente, as circunstâncias do caso, essas múltiplas reiterações do procedimento administrativo e suspensões do prazo de prescrição podem caracterizar um incumprimento, pela administração fiscal ou pelos órgãos jurisdicionais nacionais, das suas obrigações, respetivamente, de boa administração e de decidir num prazo razoável, que, além disso, tenha tido influência na capacidade de a pessoa em causa se defender.
60 Em face do exposto, há que responder à questão submetida que os princípios da segurança jurídica e da efetividade do direito da União devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação de um Estado-Membro e à respetiva prática administrativa por força das quais, em matéria de IVA, o prazo de prescrição do direito de a administração fiscal liquidar esse imposto está suspenso durante todo o período da fiscalização jurisdicional, independentemente do número de vezes que o procedimento fiscal administrativo teve de ser reiterado na sequência dessas fiscalizações e sem limitação da duração acumulada das suspensões desse prazo, incluindo no caso de o órgão jurisdicional que se pronuncia sobre uma decisão da autoridade fiscal em causa tomada no âmbito de um procedimento reiterado, na sequência de uma decisão judicial anterior, concluir que essa autoridade fiscal não deu cumprimento às orientações que constam dessa decisão jurisdicional.
Quanto às despesas
61 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:
Os princípios da segurança jurídica e da efetividade do direito da União devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma regulamentação de um Estado-Membro e à respetiva prática administrativa por força das quais, em matéria de Imposto Sobre o Valor Acrescentado, o prazo de prescrição do direito de a administração fiscal liquidar esse imposto está suspenso durante todo o período da fiscalização jurisdicional, independentemente do número de vezes que o procedimento fiscal administrativo teve de ser reiterado na sequência dessas fiscalizações e sem limitação da duração acumulada das suspensões desse prazo, incluindo no caso de o órgão jurisdicional que se pronuncia sobre uma decisão da autoridade fiscal em causa tomada no âmbito de um procedimento reiterado, na sequência de uma decisão judicial anterior, concluir que essa autoridade fiscal não deu cumprimento às orientações que constam dessa decisão jurisdicional.
Assinaturas
* Língua do processo: húngaro.