Edição provisória
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção)
17 de maio de 2023 (*)
«Reenvio prejudicial – Imposto sobre o valor acrescentado (IVA) – Diretiva 2006/112/CE – Regime da margem de lucro – Artigo 311.° – Conceito de “bens em segunda mão” – Veículos em fim de vida vendidos “para peças”»
No processo C-365/22,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pela Cour de cassation (Tribunal de Cassação, Bélgica), por Decisão de 16 de maio de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 7 de junho de 2022, no processo
IT
contra
Estado belga,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Oitava Secção),
composto por: M. Safjan (relator), presidente de secção, N. Jääskinen e M. Gavalec, juízes,
advogado-geral: L. Medina,
secretário: A. Calot Escobar,
vistos os autos,
vistas as observações apresentadas:
– em representação do Governo belga, por P. Cottin, J.-C. Halleux e C. Pochet, na qualidade de agentes,
– em representação da Comissão Europeia, por F. Clotuche-Duvieusart e J. Jokubauskaitė, na qualidade de agentes,
vista a decisão tomada, ouvida a advogada-geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 311.°, n.° 1, ponto 1, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1, a seguir «Diretiva IVA»).
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe IT ao Estado belga a respeito da recusa da Autoridade Tributária belga de aplicar o regime da margem de lucro no que toca a determinadas vendas de veículos realizadas por IT.
Quadro jurídico
Direito da União
3 O artigo 311.°, n.° 1, da Diretiva IVA dispõe:
«Para efeitos do presente capítulo e sem prejuízo de outras disposições comunitárias, entende-se por:
1) “Bens em segunda mão”, os bens móveis corpóreos suscetíveis de serem reutilizados no estado em que se encontram ou após reparação, que não sejam objetos de arte e de coleção ou antiguidades, nem metais preciosos ou pedras preciosas, na definição que lhes é dada pelos Estados-Membros;
[...]
5) “Sujeito passivo revendedor”, qualquer sujeito passivo que, no âmbito da sua atividade económica, compre ou afete às necessidades da sua empresa ou importe para revenda bens em segunda mão, objetos de arte e de coleção ou antiguidades, quer esse sujeito passivo atue por conta própria quer por conta de outrem ao abrigo de um contrato de comissão de compra e venda;
[...]»
4 Nos termos do artigo 313.°, n.° 1, da Diretiva IVA:
«Os Estados-Membros aplicam às entregas de bens em segunda mão, de objetos de arte e de coleção ou de antiguidades, efetuadas por sujeitos passivos revendedores, um regime especial de tributação da margem de lucro realizada pelo sujeito passivo revendedor, em conformidade com o disposto na presente subsecção.»
5 O artigo 314.° da Diretiva IVA tem a seguinte redação:
«O regime da margem de lucro é aplicável às entregas de bens em segunda mão, de objetos de arte e de coleção ou de antiguidades, efetuadas por um sujeito passivo revendedor, quando esses bens lhe tenham sido entregues no interior da Comunidade por uma das seguintes pessoas:
a) Uma pessoa que não seja sujeito passivo;
b) Outro sujeito passivo, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo esteja isenta em conformidade com o artigo 136.°;
c) Outro sujeito passivo, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo beneficie da isenção para as pequenas empresas prevista nos artigos 282.° a 292.° e incida sobre um bem de investimento;
d) Outro sujeito passivo revendedor, na medida em que a entrega do bem por esse outro sujeito passivo revendedor tenha sido sujeita ao IVA em conformidade com o presente regime especial.»
6 O artigo 315.° da Diretiva IVA prevê:
«O valor tributável das entregas de bens referidas no artigo 314.° é constituído pela margem de lucro realizada pelo sujeito passivo revendedor, deduzido o montante do IVA correspondente à própria margem de lucro.
A margem de lucro do sujeito passivo revendedor é igual à diferença entre o preço de venda solicitado pelo sujeito passivo revendedor para os bens e o seu preço de compra.»
Direito belga
7 O artigo 58.°, n.° 4 do Code de la taxe sur la valeur ajoutée (Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado) e o artigo 1.° do arrêté royal n.° 53, du 23 décembre 1994, relatif au régime particulier d’imposition de la marge bénéficiaire applicable aux biens d’occasion, objets d’art, de collection ou d’antiquité (Decreto Real n.° 53, de 23 de dezembro de 1994, relativo ao regime especial da tributação da margem de lucro aplicável aos bens em segunda mão, aos objetos de arte e de coleção ou de antiguidades) transpõem para o direito belga os artigos 311.° e 313.° da Diretiva TVA.
Litígio no processo principal e questão prejudicial
8 IT está registado, desde 1 de outubro de 2013, para efeitos de IVA para o exercício de uma atividade profissional de venda de veículos usados e em fim de vida. No âmbito dessa atividade, adquire nomeadamente junto de companhias de seguros veículos em situação desuso, isto é, que estão em situação de perda total, e revende-os a terceiros como veículos em fim de vida ou «para peças».
9 Em 2015, no âmbito da realização de uma fiscalização tributária a IT, foi emitido um aviso de regularização por infração das normas de dedução do IVA e do regime de margem de lucro. Com base nas disposições nacionais que transpõem os artigos 311.° e 313.° da Diretiva IVA, a autoridade tributária decidiu excluir o regime da margem de lucro das faturas que continham a expressão «veículos vendidos para peças» ou as faturas relativas a veículos em fim de vida.
10 IT interpôs recurso desta decisão sustentando designadamente, referindo-se ao Acórdão do Tribunal de Justiça de 18 de janeiro de 2017, Sjelle Autogenbrug (C-471/15, EU:C:2017:20), que os veículos vendidos «para peças» revestiam a natureza de «bens em segunda mão», na aceção do artigo 311.°, n.° 1, ponto 1, da Diretiva IVA.
11 A cour d’appel de Liège (Tribunal de Recurso de Liège, Bélgica), por Acórdão de 1 de março de 2019, julgou improcedentes os pedidos de IT. Salientou que o Acórdão de 18 de janeiro de 2017, Sjelle Autogenbrug (C-471/15, EU:C:2017:20), não dizia respeito, como no caso em apreço, a veículos vendidos «para peças» sem individualização destas, mas a peças retiradas pelo próprio sujeito passivo revendedor de veículos em fim de vida e vendidas como tais por esse sujeito passivo. Aquele órgão jurisdicional considerou em seguida que era necessário verificar se os veículos em causa no processo principal conservavam as funcionalidades que possuíam quando eram novos para poderem ser reutilizados nesse estado ou após reparação e se podiam, por conseguinte, ser qualificados de «bens em segunda mão», na aceção do artigo 311.°, n.° 1, ponto 1, da Diretiva IVA.
12 O referido órgão jurisdicional considerou, por um lado, que não era manifestamente o caso dos veículos vendidos «para peças» por IT, uma vez que a menção «para peças» atesta objetivamente que esses veículos já não são, em princípio, suscetíveis de ser reutilizados enquanto tais, e que havia que atender às circunstâncias objetivas em que ocorreram as operações de revenda. Por outro lado, o referido órgão jurisdicional considerou que, no que se refere aos veículos que se considerava estarem em fim de vida, também não podiam ser qualificados de «bens em segunda mão» uma vez em que não podem voltar a ser utilizados com as funcionalidades que possuíam em novos, visto que a sua utilização é limitada apenas à valorização de algumas peças e dos materiais que os compunham.
13 Tendo IT interposto recurso desse acórdão na Cour de cassation (Tribunal de Cassação, Bélgica), que é órgão jurisdicional de reenvio, este último tem dúvidas sobre a questão de saber se a interpretação que o tribunal de recurso fez do artigo 311.°, n.° 1, ponto 1, da Diretiva IVA é correta.
14 Nestas condições, a Cour de cassation (Tribunal de Cassação) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça a seguinte questão prejudicial:
«Deve o artigo 311.°, n.° 1, ponto 1, da Diretiva [IVA] ser interpretado no sentido de que os veículos automóveis em desuso adquiridos por uma empresa de venda de veículos em segunda mão e em fim de vida às pessoas enumeradas no artigo 314.° da diretiva, destinados a ser vendidos “para peças” sem que tais peças tenham sido separadas, constituem bens em segunda mão na aceção dessa disposição?»
Quanto à questão prejudicial
15 Com a sua questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 311.°, n.° 1, ponto 1, da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que veículos automóveis definitivamente em desuso adquiridos por uma empresa às pessoas enumeradas no artigo 314.° da Diretiva IVA e que se destinam a ser vendidos «para peças» sem que essas peças tenham sido separadas constituem bens em segunda mão na aceção da primeira destas disposições.
16 A título preliminar, há que especificar que resulta tanto da exposição dos factos como da questão submetida que os veículos adquiridos por IT são veículos em desuso, isto é, que estão em situação de perda total e que estão, por isso, definitivamente inutilizados. Nestas condições e como resulta também da decisão de reenvio, estes veículos só podem ser revendidos como veículos em fim de vida ou para posterior utilização das peças que os compõem («revenda para peças») e não para ser reutilizados no estado em que se encontram ou para ser reparados, sendo especificado que a questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio se refere apenas à hipótese da revenda para peças.
17 À luz desta consideração preliminar, há que recordar que, nos termos do disposto no artigo 311.°, n.° 1, ponto 1, da Diretiva TVA, constituem «bens em segunda mão» os «bens móveis corpóreos suscetíveis de serem reutilizados no estado em que se encontram ou após reparação».
18 A este respeito, o Tribunal de Justiça considerou que este conceito inclui os bens móveis corpóreos suscetíveis de ser reutilizados, no estado em que se encontram ou após reparação, provenientes de outro bem no qual estavam incorporados enquanto elementos constitutivos e que a qualificação de «bem em segundo mão» requer apenas que o bem usado tenha conservado as funcionalidades que possuía quando era novo, e que, nessa medida, possa ser reutilizado no estado em que se encontra ou após reparação (v., nomeadamente, Acórdão de 18 de janeiro de 2017, Sjelle Autogenbrug, C-471/15, EU:C:2017:20, n.os 31 e 32).
19 Além disso, o Tribunal de Justiça também realçou que a aplicação do regime de margem de lucro não pressupõe necessariamente uma identificação entre o bem comprado e o bem vendido. Em especial, o Tribunal de Justiça confirmou que este regime se aplicava à revenda de peças separadas retiradas pelo próprio sujeito passivo de um veículo em desuso adquirido por este último, na medida em que um veículo automóvel é composto por um conjunto de peças que foram montadas e que podem ser destacadas e revendidas, nesse estado ou após reparação (v., nomeadamente, Acórdão de 18 de janeiro de 2017, Sjelle Autogenbrug, C-471/15, EU:C:2017:20, n.os 36 e 37).
20 É certo que, ao contrário do que sucedeu no processo que deu origem ao acórdão já referido, o processo principal se caracteriza pelo facto de o sujeito passivo revendedor não ter retirado as peças do veículo definitivamente em desuso que adquiriu para as revender ele próprio, tendo antes revendido o veículo no estado em que se encontrava «para peças», isto é, para posterior utilização das peças desse veículo como peças soltas.
21 Todavia, conforme a Comissão Europeia indicou, no essencial, nas suas alegações escritas, esta diferença não pode conduzir a que se considere que o raciocínio seguido pelo Tribunal de Justiça no Acórdão de 18 de janeiro de 2017, Sjelle Autogenbrug (C-471/15, EU:C:2017:20), não pode ser extrapolado para uma situação como a que está em causa no processo principal.
22 Com efeito, há que tomar em consideração o facto, realçado no n.° 16 do presente acórdão, de que os veículos adquiridos por um sujeito passivo revendedor como IT estão definitivamente inutilizados e não podem assim ser revendidos para ser reutilizados no estado em que se encontram ou após reparação. Uma vez que o próprio veículo, enquanto bem móvel corpóreo, não é, por hipótese, passível de ser reutilizado, no estado em que se encontra ou após reparação, na aceção do artigo 311.°, n.° 1, ponto 1, da Diretiva IVA, para determinar se se pode considerar que esse veículo é um bem em segunda mão e pode assim beneficiar do regime da margem de lucro, há que atender unicamente aos elementos desse veículo que, no âmbito de uma revenda pelo sujeito passivo revendedor a outras pessoas, possam ser objeto de tal nova utilização.
23 Uma interpretação que permita que um veículo definitivamente inutilizado possa, enquanto bem em segunda mão, ser abrangido pelo regime da margem de lucro pelo facto de alguns dos seus elementos constitutivos poderem ser novamente utilizados é conforme com o objetivo do referido regime que pretende, como resulta do considerando 51 da Diretiva IVA, evitar designadamente as duplas tributações que podem resultar da circunstância, por um lado, de o preço de venda desses elementos constitutivos já tomar em consideração o IVA que foi pago a montante quando da compra do veículo por uma pessoa abrangida pelo artigo 314.° desta diretiva e, por outro, de nem essa pessoa nem o sujeito passivo revendedor poderem deduzir esse montante (v., neste sentido, Acórdão de 18 de janeiro de 2017, Sjelle Autogenbrug, C-471/15, EU:C:2017:20, n.os 39 e 40 e jurisprudência referida).
24 No caso em apreço, para verificar se os veículos revendidos por IT podem ser abrangidos pelo regime da margem de lucro, o órgão jurisdicional de reenvio deverá assegurar-se de que, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.° 18 do presente acórdão, esses veículos ainda continham elementos constitutivos que conservavam as funcionalidades que possuíam quando o veículo era novo de maneira a poderem ser reutilizados no estado em que se encontram ou após reparação.
25 Além disso, o órgão jurisdicional de reenvio deverá verificar que os referidos veículos não foram na realidade vendidos para serem simplesmente destruídos ou transformados noutro objeto. Com efeito, um veículo cujos elementos constitutivos que conservam as funcionalidades que possuíam quando o veículo era novo não são retirados pelo adquirente para ser reutilizados no estado em que se encontram ou após reparação não ficou no ciclo económico a que pertencia e não pode, por conseguinte, beneficiar do regime da margem de lucro (v., neste sentido, Acórdão de 11 de julho de 2018, E LATS, C-154/17, EU:C:2018:560, n.° 34).
26 No âmbito dessa verificação, o órgão jurisdicional de reenvio deverá tomar em consideração todas as circunstâncias objetivas em que ocorreu a operação de revenda. Com efeito, conforme resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, os conceitos adotados na Diretiva IVA têm um caráter objetivo e são aplicáveis independentemente dos objetivos e dos resultados das operações em causa (v. Acórdão de 11 de julho de 2018, E LATS, C-154/17, EU:C:2018:560, n.° 35 e jurisprudência referida).
27 Embora a tomada em consideração da intenção de um sujeito passivo que participa na operação seja, salvo em casos excecionais, contrária aos objetivos do sistema comum do IVA, o órgão jurisdicional de reenvio poderá, ao invés, tomar em consideração elementos objetivos, como a apresentação e o estado dos veículos, o objeto do contrato, o valor pelo qual esses veículos foram vendidos, o modo de faturação ou ainda a atividade económica da pessoa que adquiriu os referidos veículos (v., neste sentido, Acórdão de 11 de julho de 2018, E LATS, C-154/17, EU:C:2018:560, n.os 36 e 37 e jurisprudência referida).
28 Atendendo aos fundamentos que precedem, há que responder à questão colocada que o artigo 311.° n.° 1, ponto 1, da Diretiva IVA deve ser interpretado no sentido de que os veículos definitivamente inutilizados adquiridos por uma empresa a pessoas enumeradas no artigo 314.° desta diretiva e que se destinam a ser vendidos «para peças» sem que as peças deles tenham sido retiradas constituem bens em segunda mão na aceção do artigo 311.°, n.° 1, ponto 1, da referida diretiva, quando, por um lado, ainda contenham peças que conservam as funcionalidades que possuíam quando o veículo era novo de modo a poderem ser reutilizadas no estado em que se encontram ou após reparação e, por outro, seja provado que esses veículos permaneceram no ciclo económico a que pertenciam devido a essa reutilização das peças.
Quanto às despesas
29 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Oitava Secção) declara:
O artigo 311.°, n.° 1, ponto 1, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado,
deve ser interpretado no sentido de que:
os veículos definitivamente inutilizados adquiridos por uma empresa a pessoas enumeradas no artigo 314.° desta diretiva e que se destinam a ser vendidos «para peças» sem que as peças deles tenham sido retiradas constituem bens em segunda mão na aceção do artigo 311.°, n.° 1, ponto 1, da referida diretiva, quando, por um lado, ainda contenham peças que conservam as funcionalidades que possuíam quando o veículo era novo de modo a poderem ser reutilizadas no estado em que se encontram ou após reparação e, por outro, seja provado que esses veículos permaneceram no ciclo económico a que pertenciam devido a essa reutilização das peças.
Assinaturas
* Língua do processo: francês.