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Edição provisória

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

11 de janeiro de 2024 (*)

«Reenvio prejudicial — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Recusa do direito à dedução — Obrigações do sujeito passivo — Dever de diligência — Ónus da prova — Princípios da neutralidade fiscal e da segurança jurídica — Primado do direito da União — Contradição entre a jurisprudência de um órgão jurisdicional nacional e o direito da União»

No processo C-537/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste-Capital, Hungria), por Decisão de 31 de maio de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 11 de agosto de 2022, no processo

Global Ink Trade Kft.

contra

Nemzeti Adó- és Vámhivatal Fellebviteli Igazgatósága,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, T. von Danwitz (relator), P. G. Xuereb, A. Kumin e I. Ziemele, juízes,

advogado-geral: A. M. Collins,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação do Governo Húngaro, por M. Z. Fehér e K. Szíjjártó, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por J. Jokubauskaitė e A. Sipos, na qualidade de agentes,

vista a decisão tomada, ouvido o advogado-geral, de julgar a causa sem apresentação de conclusões,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do princípio do primado do direito da União, bem como do artigo 167.°, do artigo 168.°, alínea a), e do artigo 178.°, alínea a), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1; a seguir «Diretiva IVA»), lidos à luz dos princípios da neutralidade fiscal e da segurança jurídica.

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Global Ink Trade Kft. à Nemzeti Adó- és Vámhivatal Fellebbviteli Igazgatósága (Direção de Recursos da Autoridade Nacional Tributária e Aduaneira, Hungria) (a seguir «Autoridade Tributária»), a respeito da recusa por esta última do direito a beneficiar da dedução do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) relativo a determinadas aquisições de bens.

 Quadro jurídico

3        O artigo 167.° da Diretiva IVA dispõe que o direito à dedução surge no momento em que o imposto dedutível se torna exigível.

4        Nos termos do artigo 168.°, alínea a), desta diretiva:

«Quando os bens e os serviços sejam utilizados para os fins das suas operações tributadas, o sujeito passivo tem direito, no Estado-Membro em que efetua essas operações, a deduzir do montante do imposto de que é devedor os montantes seguintes:

a)      O IVA devido ou pago nesse Estado-Membro em relação aos bens que lhe tenham sido ou venham a ser entregues e em relação aos serviços que lhe tenham sido ou venham a ser prestados por outro sujeito passivo;

[...]»

5        Por força do artigo 178.°, alínea a), da referida diretiva, para poder exercer o direito à dedução previsto no artigo 168.°, alínea a), desta diretiva, o sujeito passivo deve possuir uma fatura emitida em conformidade com os requisitos enunciados nesta mesma diretiva.

6        O artigo 273.°, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA dispõe:

«Os Estados-Membros podem prever outras obrigações que considerem necessárias para garantir a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude, sob reserva da observância da igualdade de tratamento das operações internas e das operações efetuadas entre Estados-Membros por sujeitos passivos, e na condição de essas obrigações não darem origem, nas trocas comerciais entre Estados-Membros, a formalidades relacionadas com a passagem de uma fronteira.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

7        A Global Ink Trade exerce uma atividade de comércio grossista na Hungria. No período compreendido entre julho de 2012 e junho de 2013, esta empresa adquiriu diversos materiais de escritório. A maior parte das faturas relativas a estas aquisições referem que o fornecedor dos bens em causa era a empresa húngara Office Builder Kft.

8        Aquando de inspeções efetuadas à Office Builder, a Autoridade Tributária salientou, nomeadamente, que esta não exercia uma atividade económica real e que não tinha respeitado as suas obrigações fiscais. O gerente desta empresa, detido num estabelecimento prisional em março de 2013, negou ter emitido qualquer fatura e mantido qualquer correspondência com a Global Ink Trade. Além disso, esta autoridade constatou que o endereço de correio eletrónico utilizado para os contactos entre a Office Builder e a Global Ink Trade não correspondia ao endereço de correio eletrónico oficial da Office Builder.

9        A Autoridade Tributária também interrogou testemunhas, que confirmaram que os bens em causa tinham sido entregues à Global Ink Trade. O gerente desta última declarou ter entrado em relação comercial com a Office Builder na sequência de um anúncio publicado por esta num jornal local, bem como ter verificado os dados desta empresa no registo comercial e ter encontrado pessoalmente um seu representante, mas que todos os contactos posteriores foram efetuados por correio eletrónico.

10      Com base nas provas recolhidas, a Autoridade Tributária considerou que as faturas pretensamente emitidas pela Office Builder e enviadas à Global Ink Trade não eram credíveis, uma vez que o gerente da Office Builder tinha negado expressamente tê-las emitido. Assim, esta autoridade deduziu daí que as operações descritas nessas faturas não tinham tido lugar entre estas duas empresas. Por conseguinte, a referida autoridade decidiu recusar à Global Ink Trade o direito de deduzir o IVA constante das referidas faturas com o fundamento, designadamente, de que esta não tinha feito prova da diligência exigida no exercício da sua atividade, nomeadamente por não se ter informado suficientemente quanto à identidade real do seu fornecedor e quanto ao cumprimento, por este, das suas obrigações fiscais, pelo que tinha incorrido em fraude passiva.

11      A Global Ink Trade interpôs recurso dessa decisão no Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste-Capital, Hungria), que é o órgão jurisdicional de reenvio, alegando que a recusa da Autoridade Tributária em conceder o direito à dedução do IVA relativo às faturas em causa se baseava em factos não provados e que esta autoridade não teve em conta o facto de que lhe incumbia a ela o ónus da prova.

12      Neste contexto, o órgão jurisdicional de reenvio constata que as disposições pertinentes da Diretiva IVA foram interpretadas pelo Tribunal de Justiça em processos semelhantes, relativos à Hungria, nos Despachos de 3 de setembro de 2020, Vikingo Fővállalkozó (C-610/19, EU:C:2020:673; a seguir «Despacho Vikingo Fővállalkozó»), e Crewprint (C-611/19, EU:C:2020:674; a seguir «Despacho Crewprint»). Ora, segundo esse órgão jurisdicional, a Kúria (Supremo Tribunal, Hungria) continua a aplicar a sua jurisprudência anterior a esses despachos, a qual parece restringir o direito à dedução do IVA através de exigências que não encontram base legal na Diretiva IVA, com o fundamento de que os referidos despachos não podem conter elementos novos para a interpretação do direito da União.

13      Em particular, a jurisprudência da Kúria (Supremo Tribunal) tem por efeito impor a qualquer sujeito passivo que proceda a verificações complexas e aprofundadas relativas aos seus fornecedores, nomeadamente quanto ao cumprimento, por estes, das suas próprias obrigações de declaração e de pagamento do IVA, quando resulta do Despacho Vikingo Fővállalkozó que essas verificações não podem ser impostas ao sujeito passivo que exerce o seu direito à dedução do IVA. Assim, existe uma divergência entre os órgãos jurisdicionais húngaros quanto às consequências a retirar da jurisprudência do Tribunal de Justiça. Neste contexto, a Autoridade Tributária continua, também ela, a aplicar exigências incompatíveis com as disposições da Diretiva IVA, conforme interpretadas pelo Tribunal de Justiça. Além disso, estas exigências são contrárias à circular publicada por esta autoridade à atenção dos sujeitos passivos, o que viola, segundo o órgão jurisdicional de reenvio, o princípio da segurança jurídica. Entre as referidas exigências figura, nomeadamente, a obrigação de manter contactos pessoais com cada fornecedor e a obrigação de utilizar exclusivamente o endereço de correio eletrónico oficial deste.

14      Uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio está, em princípio, vinculado pelos acórdãos da Kúria (Supremo Tribunal) e está obrigado a fundamentar qualquer desvio da sua apreciação jurídica em relação a esses acórdãos, que têm valor de precedente vinculativo, interroga-se sobre a questão de saber se, à luz do princípio do primado do direito da União, deve efetivamente afastar os acórdãos da Kúria (Supremo Tribunal) que lhe pareçam incompatíveis com as disposições da Diretiva IVA, conforme interpretadas pelo Tribunal de Justiça nos Despachos Vikingo Fővállalkozó e Crewprint.

15      Foi neste contexto que o Fővárosi Törvényszék (Tribunal de Budapeste-Capital) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      O facto de o órgão jurisdicional de um Estado-Membro que decide em última instância interpretar uma decisão do Tribunal de Justiça (adotada sob a forma de despacho em resposta a um pedido de decisão prejudicial cujo objeto era precisamente a jurisprudência desse órgão jurisdicional que decide em última instância) no sentido de que não contém nenhum elemento novo que tenha ou possa ter por efeito a revogação de decisões anteriores do Tribunal de Justiça ou uma alteração da jurisprudência nacional anteriormente desenvolvida pelo órgão jurisdicional que decide em última instância, constitui uma violação do princípio do primado do direito da União e do direito a uma proteção jurisdicional efetiva garantido pelo artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (a seguir «Carta [dos Direitos Fundamentais]»)?

2)      Devem o princípio do primado do direito da União e o direito a uma proteção jurisdicional efetiva garantido pelo artigo 47.° da Carta [dos Direitos Fundamentais] ser interpretados no sentido de que o princípio do primado das decisões do Tribunal de Justiça se aplica mesmo quando o órgão jurisdicional de um Estado-Membro que decide em última instância invoca também como precedente as suas decisões anteriores? A resposta poderá ser diferente, à luz do artigo 99.° do Regulamento de Processo do Tribunal de Justiça, quando o Tribunal de Justiça decide sob a forma de despacho?

3)      No âmbito da obrigação geral de controlo que incumbe ao sujeito passivo, independentemente da realização e da natureza da operação económica constante das faturas, e tendo em conta os artigos 167.°, 168.°, alínea a), e 178.°, alínea a), da [Diretiva IVA] bem como os princípios da segurança jurídica e da neutralidade fiscal, é possível exigir ao sujeito passivo, como requisito do direito à dedução do IVA — sem que exista uma disposição legislativa a esse respeito no Estado-Membro —, que mantenha contactos pessoais com o emitente da fatura ou que apenas contacte com o seu fornecedor através do endereço de correio eletrónico oficialmente comunicado? Pode considerar-se que estas circunstâncias revelam um incumprimento, demonstrado por factos objetivos, da diligência devida que cabe esperar do sujeito passivo, tendo em conta que tais circunstâncias ainda não existiam no momento em que o sujeito passivo efetuou as correspondentes verificações antes de iniciar a relação comercial, mas são elementos da relação comercial entre as partes?

4)      Uma interpretação jurídica e uma prática de um Estado-Membro segundo as quais o direito à dedução do IVA é recusado a um sujeito passivo que tem uma fatura conforme com a Diretiva do IVA, por considerar-se que não agiu com a diligência devida no exercício da atividade de comércio porque não adotou um comportamento que permita concluir que a sua atividade não se limitava à simples receção de faturas que cumpriam os requisitos formais exigidos, apesar de o sujeito passivo ter apresentado toda a documentação relativa às operações controvertidas e de a Autoridade Tributária ter recusado outras provas apresentadas pelo sujeito passivo no decurso do procedimento tributário, são conformes com os citados artigos da Diretiva IVA e com o princípio da neutralidade fiscal, mas principalmente com a jurisprudência do Tribunal de Justiça que, no contexto da interpretação dessas disposições, impõe à Autoridade Tributária o ónus da prova?

5)      À luz dos artigos acima referidos da Diretiva IVA e do princípio fundamental da segurança jurídica, pode considerar-se um facto objetivo a constatação, realizada em relação à diligência devida, de que o emitente da fatura não exercia nenhuma atividade económica, se a Autoridade Tributária considerar que não se demonstrou a realização efetiva (portanto, a existência real) de uma operação económica — que ficou documentada por meio de faturas, contratos e outros documentos contabilísticos, bem como através de correspondência, e que foi confirmada pelas declarações da empresa armazenista, bem como do administrador e do funcionário do sujeito passivo — e a referida autoridade se basear para tal exclusivamente na declaração do administrador da empresa fornecedora que nega a existência dessa operação, sem ter em conta as circunstâncias em que essa declaração foi emitida, os interesses do declarante nem o facto de que, segundo os documentos dos autos, foi o próprio declarante que fundou a empresa e, segundo as informações disponíveis, um mandatário agia em nome desta?

6)      Devem as disposições da Diretiva IVA relativas à dedução deste imposto ser interpretadas no sentido de que, se Autoridade Tributária apurar, no decurso do procedimento tributário, que os bens que figuram nas faturas são de origem comunitária e que o sujeito passivo é o segundo membro de uma cadeia [de fornecimentos], a conceção desse modelo — tendo em conta que os bens de origem comunitária estão isentos de IVA, de modo que o primeiro adquirente húngaro não tem o direito de deduzir o IVA, que apenas assiste ao segundo membro da cadeia — é um facto objetivo suficiente, em si mesmo, para demonstrar a fraude fiscal ou a Autoridade Tributária deve, também neste caso, demonstrar com elementos objetivos que membro ou membros da cadeia cometeram fraude fiscal, qual foi o seu modus operandi e se o sujeito passivo tinha ou poderia ter tido conhecimento da mesma se tivesse agido com a diligência devida?»

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira e segunda questões

16      A título preliminar, uma vez que o órgão jurisdicional de reenvio interroga o Tribunal de Justiça, com as suas questões prejudiciais primeira e segunda, sobre a interpretação do princípio do primado do direito da União, bem como do artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais, importa salientar que, por força da regulamentação nacional em causa no processo principal, o órgão jurisdicional de reenvio considera estar vinculado pelos acórdãos de órgãos jurisdicionais nacionais superiores, mesmo quando estes contenham apreciações jurídicas que lhe pareçam incompatíveis com o direito da União.

17      No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio não apresenta o nexo que estabelece entre o artigo 47.° da Carta dos Direitos Fundamentais, que consagra o direito a um recurso jurisdicional efetivo, e essa regulamentação nacional. Além disso, como a Comissão Europeia salientou nas suas observações escritas, a decisão de reenvio não refere nenhum obstáculo que impeça o referido órgão jurisdicional de submeter questões prejudiciais ao Tribunal de Justiça em caso de dúvida quanto à compatibilidade da jurisprudência nacional em causa com o direito da União. Nestas condições, há que responder às referidas questões unicamente à luz do princípio do primado do direito da União.

18      Assim, importa considerar que, com as suas questões primeira e segunda, às quais há que responder em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio do primado do direito da União deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional por força da qual as apreciações jurídicas efetuadas por um órgão jurisdicional nacional superior vinculam os órgãos jurisdicionais nacionais inferiores, que são obrigados a fundamentar qualquer desvio em relação a essas apreciações, quando esses órgãos jurisdicionais nacionais inferiores considerem, à luz da interpretação dada pelo Tribunal de Justiça a uma disposição de direito da União, que as referidas apreciações não são conformes com este direito.

 Quanto à admissibilidade

19      O Governo Húngaro sustenta que estas questões são inadmissíveis. Afirma que, com efeito, com estas questões, o órgão jurisdicional de reenvio pretende pôr em causa as decisões proferidas pela Kúria (Supremo Tribunal) nos processos que deram origem aos Despachos Vikingo Fővállalkozó e Crewprint, com o fundamento de que essas decisões não são conformes com esses despachos. Assim, as referidas questões não são pertinentes para a resolução do litígio no processo principal, uma vez que este não tem nenhuma relação com esses processos.

20      A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, as questões relativas à interpretação do direito da União submetidas pelo juiz nacional no quadro regulamentar e factual que define sob a sua responsabilidade, e cuja exatidão não cabe ao Tribunal de Justiça verificar, gozam de uma presunção de pertinência. O Tribunal de Justiça só pode recusar pronunciar-se sobre um pedido apresentado por um órgão jurisdicional nacional se for manifesto que a interpretação do direito da União solicitada não tem nenhuma relação com a realidade ou com o objeto do litígio no processo principal, quando o problema for hipotético ou ainda quando o Tribunal não dispuser dos elementos de facto e de direito necessários para dar uma resposta útil às questões que lhe são submetidas (Acórdão de 14 de setembro de 2023, Bezirkshauptmannschaft Feldkirch, C-55/22, EU:C:2023:670, n.° 35 e jurisprudência referida).

21      No caso em apreço, importa salientar que o órgão jurisdicional de reenvio refere uma potencial contradição entre as decisões da Kúria (Supremo Tribunal) e os Despachos Vikingo Fővállalkozó e Crewprint. Ora, na medida em que o órgão jurisdicional de reenvio considera que se deve referir aos ensinamentos destes despachos para a resolução do litígio no processo principal e que, segundo a regulamentação nacional em causa no processo principal, está, todavia, vinculado pelas decisões da Kúria (Supremo Tribunal), as questões submetidas têm relação com o objeto do litígio no processo principal e não são hipotéticas. Além disso, o Tribunal de Justiça dispõe dos elementos de facto e de direito necessários para lhes dar uma resposta útil.

22      Consequentemente, as questões primeira e segunda são admissíveis.

 Quanto ao mérito

23      Segundo jurisprudência constante, o princípio do primado do direito da União consagra a prevalência do direito da União sobre o direito dos Estados-Membros. Este princípio impõe, portanto, a todas as instâncias dos Estados-Membros que confiram pleno efeito às diferentes normas da União, não podendo o direito dos Estados-Membros afetar o efeito reconhecido a essas diferentes normas no território dos referidos Estados. Resulta daqui que, por força do princípio do primado do direito da União, o facto de um Estado-Membro invocar disposições de direito nacional, ainda que de ordem constitucional, não pode afetar a unidade e a eficácia do direito da União. [v., neste sentido, Acórdãos de 5 de junho de 2023, Comissão/Polónia (Independência e vida privada dos juízes), C-204/21, EU:C:2023:442, n.° 77, e de 24 de julho de 2023, Lin, C-107/23 PPU, EU:C:2023:606, n.° 128 e jurisprudência referida].

24      Neste contexto, importa salientar que o juiz nacional, que exerceu a faculdade que lhe é conferida pelo artigo 267.° TFUE, está vinculado, para a resolução do litígio no processo principal, pela interpretação das disposições do direito da União dada pelo Tribunal de Justiça e deve, assim, se for caso disso, afastar as apreciações de um órgão jurisdicional nacional superior se considerar, tendo em conta a interpretação dada pelo Tribunal de Justiça, que estas não são conformes com o direito da União, eventualmente deixando de aplicar a norma nacional que o obriga a dar cumprimento às decisões desse órgão jurisdicional superior. (v., neste sentido, Acórdão de 24 de julho de 2023, Lin, C-107/23 PPU, EU:C:2023:606, n.os 132, 133 e jurisprudência referida).

25      Nestas circunstâncias, a exigência de garantir a plena eficácia do direito da União inclui a obrigação de esse juiz nacional alterar, sendo caso disso, uma jurisprudência assente, caso esta se baseie numa interpretação do direito interno incompatível com o direito da União (Acórdão de 9 de setembro de 2021, Dopravní podnik hl. m. Prahy, C-107/19, EU:C:2021:722, n.° 47 e jurisprudência referida).

26      Além disso, quando a jurisprudência do Tribunal de Justiça já tenha dado uma resposta clara a uma questão relativa à interpretação do direito da União, o referido juiz nacional deve fazer tudo o que seja necessário para que essa interpretação seja aplicada (v., neste sentido, Acórdão de 10 de março de 2022, Grossmania, C-177/20, EU:C:2022:175, n.° 42 e jurisprudência referida).

27      A este respeito, como salientaram o Governo Húngaro e a Comissão, pouco importa que a interpretação formulada pelo Tribunal de Justiça revista a forma de um acórdão ou de um despacho fundamentado ao abrigo do artigo 99.° do Regulamento de Processo. Com efeito, nenhuma disposição dos Tratados, do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia ou deste Regulamento de Processo estabelece, no âmbito do processo prejudicial, uma distinção entre acórdãos e despachos fundamentados, no que respeita ao seu alcance e aos seus efeitos. Assim, um juiz nacional não pode ignorar um despacho pelo facto de, diferentemente de um acórdão, este pretensamente não conter elementos novos para a interpretação do direito da União.

28      Por conseguinte, no caso em apreço, o órgão jurisdicional de reenvio está vinculado, para a resolução do litígio no processo principal, pela interpretação do direito da União dada pelo Tribunal de Justiça e deverá, se for caso disso, afastar a apreciação feita pela Kúria (Supremo Tribunal) em decisões anteriores que têm, no direito nacional, valor de precedente vinculativo, se considerar, à luz dessa interpretação, que essa apreciação não é conforme com o direito da União.

29      Resulta das indicações do órgão jurisdicional de reenvio e do Governo Húngaro que a regulamentação nacional em causa no processo principal habilita esse órgão jurisdicional a afastar-se das decisões anteriores da Kúria (Supremo Tribunal), mesmo que estas tenham força de precedente vinculativo, desde que, nomeadamente, o referido órgão jurisdicional considere que essas decisões são incompatíveis com o direito da União e a sua apreciação a este respeito seja fundamentada. Neste contexto, o dever de fundamentação que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio a este respeito não se afigura, por si só, suscetível de violar o primado do direito da União, uma vez que os autos de que o Tribunal de Justiça dispõe não contêm nenhum elemento suscetível de indicar que tal obrigação constitui um obstáculo suscetível de tornar excessivamente difícil o exercício pelo referido órgão jurisdicional da faculdade de se afastar das decisões anteriores da Kúria (Supremo Tribunal).

30      Tendo em conta estas considerações, há que responder às questões primeira e segunda que o princípio do primado do direito da União deve ser interpretado no sentido de que impõe ao juiz nacional, que exerceu a faculdade que lhe é conferida pelo artigo 267.° TFUE, que afaste as apreciações jurídicas de um órgão jurisdicional nacional superior se considerar, à luz da interpretação de uma disposição de direito da União dada pelo Tribunal de Justiça sob a forma de um acórdão ou de um despacho fundamentado na aceção do artigo 99.° do seu Regulamento de Processo, que essas apreciações não são conformes com este direito. Todavia, este princípio não se opõe a uma regulamentação nacional que se limite a obrigar os órgãos jurisdicionais nacionais inferiores a fundamentar qualquer desvio em relação a essas apreciações.

 Quanto às questões terceira a quinta

31      Com as suas questões terceira a quinta, às quais há que responder em conjunto, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 167.°, o artigo 168.°, alínea a), e o artigo 178.°, alínea a), da Diretiva IVA, lidos à luz dos princípios da neutralidade fiscal e da segurança jurídica, devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma prática através da qual a Autoridade Tributária recusa a um sujeito passivo o direito de deduzir o IVA relativo à aquisição de bens que lhe foram entregues, com o fundamento de que as faturas relativas a essas aquisições não são fidedignas, devido a circunstâncias que demonstram uma falta de diligência imputável ao referido sujeito passivo, circunstâncias essas que são, em princípio, apreciadas tendo em conta uma circular publicada por essa autoridade à atenção dos sujeitos passivos.

32      Segundo jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, o direito dos sujeitos passivos de deduzir do IVA de que são devedores o IVA devido ou pago em relação aos bens adquiridos ou aos serviços que lhes foram prestados a montante constitui um princípio fundamental do sistema comum de IVA. Como o Tribunal de Justiça já declarou reiteradamente, o direito à dedução previsto nos artigos 167.° e seguintes da Diretiva IVA faz parte integrante do mecanismo do IVA e não pode, em princípio, ser limitado quando os requisitos ou condições materiais e formais a que este direito está subordinado forem cumpridos pelos sujeitos passivos que pretendam exercê-lo (Acórdão de 11 de novembro de 2021, Ferimet, C-281/20, EU:C:2021:910, n.° 31 e jurisprudência referida).

33      No que se refere aos requisitos ou às condições materiais, resulta do artigo 168.°, alínea a), da Diretiva IVA que, para poder beneficiar do referido direito, é necessário, por um lado, que o interessado seja um «sujeito passivo» na aceção desta diretiva e, por outro, que os bens ou serviços invocados para basear este direito à dedução sejam utilizados a jusante pelo sujeito passivo para os fins das suas próprias operações tributadas e que, a montante, esses bens sejam entregues ou esses serviços prestados por outro sujeito passivo. Quanto às modalidades de exercício do direito à dedução do IVA, equiparáveis a requisitos ou a condições de natureza formal, o artigo 178.°, alínea a), da Diretiva IVA prevê que o sujeito passivo deve possuir uma fatura emitida em conformidade com as exigências enunciadas nesta mesma diretiva (v., neste sentido, Acórdão de 11 de novembro de 2021, Ferimet, C-281/20, EU:C:2021:910, n.° 26 e jurisprudência referida).

34      As referidas condições materiais do direito à dedução apenas estão reunidas se a entrega de bens ou a prestação de serviços a que diz respeito a fatura tiver sido efetivamente realizada. O Tribunal de Justiça já declarou que a verificação da existência da operação tributável deve ser efetuada em conformidade com as regras de prova do direito nacional, procedendo a uma apreciação global de todos os elementos e circunstâncias de facto do caso em apreço [Despacho de 9 de janeiro de 2023, A.T.S. 2003, C-289/22, EU:C:2023:26, n.° 46 e jurisprudência referida, e Acórdão de 25 de maio de 2023, Dyrektor Izby Administracji Skarbowej w Warszawie (IVA — Aquisição fictícia), C-114/22, EU:C:2023:430, n.° 36].

35      No entanto, o direito à dedução pode ser recusado ao sujeito passivo quando se provar, com base em elementos objetivos, que é invocado fraudulenta ou abusivamente. Com efeito, importa recordar que a luta contra a fraude, a evasão fiscal e os eventuais abusos é um objetivo reconhecido e incentivado pela Diretiva IVA, e que o Tribunal de Justiça declarou reiteradamente que os particulares não podem, de maneira fraudulenta ou abusiva, invocar as normas do direito da União. Por conseguinte, mesmo que as condições materiais do direito à dedução estejam reunidas, cabe às autoridades e aos órgãos jurisdicionais nacionais recusar o benefício desse direito se se demonstrar, à luz de elementos objetivos, que esse direito é invocado fraudulenta ou abusivamente [Acórdão de 25 de maio de 2023, Dyrektor Izby Administracji Skarbowej w Warszawie (IVA — Aquisição fictícia), C-114/22, EU:C:2023:430, n.os 40 e 41 e jurisprudência referida].

36      No que respeita à fraude, segundo jurisprudência constante, a possibilidade de beneficiar do direito à dedução deve ser recusada não apenas quando o próprio sujeito passivo cometa uma fraude, mas também quando se demonstre que o sujeito passivo, ao qual foram entregues os bens ou prestados os serviços que estão na base do direito à dedução, sabia ou deveria saber que, com a sua aquisição, participava numa operação implicada nessa fraude [Acórdão de 25 de maio de 2023, Dyrektor Izby Administracji Skarbowej w Warszawie (IVA — Aquisição fictícia), C-114/22, EU:C:2023:430, n.° 42 e jurisprudência referida].

37      Uma vez que a recusa do direito à dedução é uma exceção à aplicação do princípio fundamental que constitui este direito, incumbe às Autoridades Tributárias fazer prova jurídica bastante de que os elementos objetivos que permitem concluir que o sujeito passivo cometeu uma fraude ao IVA ou que sabia ou deveria saber que a operação invocada para fundamentar o direito à dedução fazia parte dessa fraude. Em seguida, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais verificar se as Autoridades Tributárias em causa demonstraram a existência de tais elementos objetivos [Acórdão de 25 de maio de 2023, Dyrektor Izby Administracji Skarbowej w Warszawie (IVA — Aquisição fictícia), C-114/22, EU:C:2023:430, n.° 43 e jurisprudência referida].

38      A este respeito, uma vez que o direito da União não prevê regras relativas às modalidades de produção de prova em matéria de fraude ao IVA, esses elementos objetivos devem ser demonstrados pela Autoridade Tributária em conformidade com o regime probatório previsto no direito nacional No entanto, esse regime não deve atentar contra a eficácia do direito da União (Acórdão de 11 de novembro de 2021, Ferimet, C-281/20, EU:C:2021:910, n.° 51 e jurisprudência referida).

39      Neste contexto, a diligência exigida ao sujeito passivo e as medidas que lhe podem ser razoavelmente exigidas para se certificar de que, com a sua aquisição, não participa numa operação que faz parte de uma fraude cometida por um operador a montante dependem das circunstâncias do caso concreto e, em particular, da questão de saber se existem ou não indícios que permitem ao sujeito passivo, no momento da aquisição que efetua, suspeitar da existência de irregularidades ou de fraude. Assim, perante indícios de fraude, pode esperar-se uma diligência acrescida do sujeito passivo. Todavia, não se lhe pode exigir que proceda a verificações complexas e aprofundadas, como as que a Autoridade Tributária tem os meios para efetuar (Acórdão de 1 de dezembro de 2022, Aquila Part Prod Com, C-512/21, EU:C:2022:950, n.° 52, e Despacho de 9 de janeiro de 2023, A.T.S. 2003, C-289/22, EU:C:2023:26, n.° 70).

40      A questão de saber se o sujeito passivo fez prova de diligência suficiente enquadra-se na apreciação dos factos do litígio no processo principal e, portanto, é da exclusiva competência dos órgãos jurisdicionais nacionais. É a esses órgãos jurisdicionais que incumbe apreciar se, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, o sujeito passivo fez prova de diligência suficiente e tomou as medidas que lhe podiam razoavelmente ser exigidas nessas circunstâncias (v., neste sentido, Acórdão de 1 de dezembro de 2022, Aquila Part Prod Com, C-512/21, EU:C:2022:950, n.° 53 e jurisprudência referida).

41      A este respeito, a Diretiva IVA não obsta, em princípio, a que os Estados-Membros adotem uma regulamentação ou uma circular com o objetivo de precisar o nível de diligência exigido a um sujeito passivo e orientar a apreciação da Autoridade Tributária, prevendo critérios a este respeito. Com efeito, em conformidade com o artigo 273.°, primeiro parágrafo, da Diretiva IVA, os Estados-Membros podem prever outras obrigações além das impostas por esta diretiva, quando considerem essas obrigações necessárias para assegurar a cobrança exata do IVA e para evitar a fraude.

42      No entanto, como resulta de jurisprudência constante, tal medida não pode conduzir a pôr sistematicamente em causa o direito à dedução do IVA e, portanto, a neutralidade do IVA. (v., neste sentido, Acórdão de 11 de novembro de 2021, Ferimet, C-281/20, EU:C:2021:910, n.° 32 e jurisprudência referida). Do mesmo modo, não pode prejudicar a eficácia do direito da União quanto à produção de prova em matéria de fraude ao IVA.

43      Assim, a mesma medida não pode pôr em causa a obrigação de as Autoridades Tributárias, recordada no n.° 37 do presente acórdão, fazerem prova jurídica bastante dos elementos objetivos que permitem concluir que um sujeito passivo cometeu uma fraude ao IVA, ou que sabia ou deveria saber que a operação em causa fazia parte dessa fraude. Do mesmo modo, em conformidade com a jurisprudência recordada no n.° 39 do presente acórdão, não pode levar a que recaia sobre esse sujeito passivo o ónus de verificações complexas e aprofundadas sobre o seu fornecedor.

44      Por conseguinte, quando a Autoridade Tributária se baseia, nomeadamente, em irregularidades cometidas na esfera do emitente de uma fatura, a apreciação dos elementos de prova não pode levar a obrigar indiretamente o referido sujeito passivo, destinatário dessa fatura, a proceder a verificações junto da sua contraparte que, em princípio, não lhe incumbem (v., neste sentido, Despacho de 16 de maio de 2013, Hardimpex, C-444/12, EU:C:2013:318, n.° 27 e jurisprudência referida).

45      Por último, a execução de uma medida como a referida no n.° 41 do presente acórdão deve ser conforme com o princípio da segurança jurídica. A este respeito, há que recordar que, segundo jurisprudência constante, os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima devem ser respeitados pelas instituições da União Europeia, mas também pelos Estados-Membros no exercício dos poderes que as diretivas da União lhes conferem (Acórdão de 9 de julho de 2015, Cabinet Medical Veterinar Dr. Tomoiagă Andrei, C-144/14, EU:C:2015:452, n.° 33 e jurisprudência referida).

46      Como o Tribunal de Justiça declarou em diversas ocasiões, resulta daqui nomeadamente que a legislação da União deve ser precisa e a sua aplicação previsível para os litigantes, impondo-se tal imperativo de segurança jurídica com especial rigor quando se trate de legislação que pode ter consequências financeiras, a fim de permitir aos interessados conhecerem com exatidão a extensão das obrigações que essa legislação lhes impõe. Do mesmo modo, nos domínios abrangidos pelo direito da União, as regras jurídicas dos Estados-Membros devem ser formuladas de maneira inequívoca, que permita às pessoas interessadas conhecerem os seus direitos e obrigações de forma clara e precisa e aos tribunais nacionais assegurarem a sua observância (Acórdão de 9 de julho de 2015, Cabinet Medical Veterinar Dr. Tomoiagă Andrei, C-144/14, EU:C:2015:452, n.os 34 e 35 e jurisprudência referida).

47      No caso em apreço, resulta das indicações do órgão jurisdicional de reenvio que foi recusado à Global Ink Trade o direito à dedução do IVA relativo à aquisição de bens que lhe foram entregues, com o fundamento de que as faturas relativas a esses bens não eram fidedignas, devido, nomeadamente, à incerteza quanto à verdadeira identidade do seu fornecedor. Neste contexto, afigura-se que a Autoridade Tributária também invocou o facto de o gerente da empresa que emitiu as referidas faturas não ter cumprido as suas obrigações de declaração e de pagamento do IVA, do qual a Global Ink Trade deveria pretensamente ter conhecimento. A este respeito, a Autoridade Tributária considerou que a Global Ink Trade tinha incorrido em fraude passiva.

48      Como resulta da jurisprudência recordada nos n.os 37 e 40 do presente acórdão, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a Autoridade Tributária fez prova jurídica bastante dos elementos objetivos que permitem concluir que o sujeito passivo cometeu uma fraude ao IVA, ou que sabia ou deveria saber que a operação em causa fazia parte dessa fraude, bem como apreciar se, à luz das circunstâncias do caso concreto, o referido sujeito passivo fez prova de diligência suficiente e tomou as medidas que lhe podiam razoavelmente ser exigidas nessas circunstâncias.

49      Embora, perante indícios de fraude ao IVA, se possa esperar uma diligência acrescida desse sujeito passivo, incumbe, todavia, ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se as exigências da Autoridade Tributária não têm por efeito impor-lhe que proceda a verificações complexas e aprofundadas relativas ao seu fornecedor, transferindo de facto para o referido sujeito passivo a realização dos atos de controlo que incumbem a essa autoridade, na aceção da jurisprudência recordada nos n.os 39 e 44 do presente acórdão.

50      Em particular, importa recordar que a referida autoridade não pode exigir de maneira geral a um sujeito passivo, que pretende exercer o direito à dedução do IVA, que verifique se o emitente da fatura relativa aos bens e aos serviços a título dos quais o exercício desse mesmo direito é pedido cumpriu as suas obrigações de declaração e de pagamento do IVA. (v., neste sentido, Despacho Vikingo Fővállalkozó, n.° 56 e jurisprudência referida).

51      Por último, no que respeita ao princípio da segurança jurídica, cabe ainda ao órgão jurisdicional de reenvio examinar se a Autoridade Tributária respeitou o referido princípio no exercício dos poderes que lhe são conferidos. Neste contexto, incumbe a esse órgão jurisdicional examinar se a circular publicada pela referida autoridade à atenção dos sujeitos passivos e aplicável aos factos em causa no processo principal estava formulada de forma inequívoca, se a sua aplicação era previsível para os particulares, na aceção da jurisprudência recordada nos n.os 45 e 46 do presente acórdão, e se as exigências aplicadas por essa mesma autoridade não eram contrárias a esta circular.

52      Consequentemente, há que responder às questões terceira a quinta que o artigo 167.°, o artigo 168.°, alínea a), e o artigo 178.°, alínea a), da Diretiva IVA, lidos à luz dos princípios da neutralidade fiscal e da segurança jurídica, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma prática através da qual a Autoridade Tributária recusa a um sujeito passivo o direito de deduzir o IVA relativo à aquisição de bens que lhe foram entregues, com o fundamento de que as faturas relativas a essas aquisições não são fidedignas, devido a circunstâncias que demonstram uma falta de diligência imputável a este sujeito passivo, circunstâncias essas que são, em princípio, apreciadas tendo em conta uma circular publicada por essa autoridade à atenção dos sujeitos passivos, desde que:

–        esta prática e esta circular não ponham em causa a obrigação, que incumbe à referida autoridade, de fazer prova jurídica bastante dos elementos objetivos que permitem concluir que o referido sujeito passivo cometeu uma fraude ao IVA, ou que sabia ou deveria saber que a operação em causa fazia parte dessa fraude;

–        a referida prática e a referida circular não façam recair sobre o mesmo sujeito passivo o ónus de verificações complexas e aprofundadas sobre o seu cocontratante;

–        as exigências aplicadas por essa mesma autoridade estejam em conformidade com as previstas na mesma circular; e

–        a circular publicada à atenção dos sujeitos passivos tenha sido formulada de forma inequívoca e a sua aplicação fosse previsível para os sujeitos passivos.

 Quanto à sexta questão

53      Com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a Diretiva IVA deve ser interpretada no sentido de que se opõe, quando a Autoridade Tributária pretende recusar a um sujeito passivo o benefício do direito à dedução do IVA pago a montante pelo facto de esse sujeito passivo ter participado numa fraude ao IVA de tipo «carrossel», a que essa Autoridade Tributária se limite a demonstrar que essa operação faz parte de uma cadeia de faturação circular, sem identificar todos os participantes nessa fraude e as respetivas atuações.

54      Resulta da jurisprudência recordada nos n.os 35 a 38 que a Autoridade Tributária que pretende recusar a um sujeito passivo o benefício do direito à dedução deve fazer prova jurídica bastante, em conformidade com as regras de prova previstas pelo direito nacional e sem prejudicar a efeito útil do direito da União, tanto dos elementos objetivos que demonstram a existência da própria fraude ao IVA como dos que demonstram que esse sujeito passivo cometeu essa fraude ou então que sabia ou deveria saber que a aquisição de bens ou de serviços invocada para fundamentar esse direito fazia parte dessa fraude.

55      Esta exigência de prova proíbe, independentemente do tipo de fraude ou das atuações examinadas, o recurso a suposições ou a presunções que tenham por efeito, invertendo o ónus da prova, violar o princípio fundamental do sistema comum do IVA que constitui o direito à dedução e, portanto, a eficácia do direito da União (Acórdão de 1 de dezembro de 2022, Aquila Part Prod Com, C-512/21, EU:C:2022:950, n.° 34).

56      Consequentemente, embora a existência de uma cadeia de faturação circular constitua um indício sério que sugere a existência de fraude, que há que ter em conta no âmbito da apreciação global de todos os elementos e de todas as circunstâncias de facto do caso concreto, não se pode admitir que a Autoridade Tributária se possa limitar, para provar a existência de uma fraude de tipo «carrossel», a demonstrar que a operação em causa faz parte de uma cadeia de faturação circular (v., neste sentido, Acórdão de 1 de dezembro de 2022, Aquila Part Prod Com, C-512/21, EU:C:2022:950, n.° 35).

57      Incumbe à Autoridade Tributária, por um lado, caracterizar com precisão os elementos constitutivos da fraude e fazer prova das atuações fraudulentas e, por outro, demonstrar que o sujeito passivo participou ativamente nessa fraude ou que sabia ou deveria saber que a aquisição de bens ou de serviços invocada para fundamentar esse direito fazia parte dessa fraude. Todavia, a prova da existência da fraude e da participação do sujeito passivo nesta última não implica necessariamente que todos os participantes nessa fraude, bem como as respetivas atuações, tenham sido identificados. É aos órgãos jurisdicionais nacionais que cabe verificar se as Autoridades Tributárias fizeram prova jurídica bastante (v., neste sentido, Acórdão de 1 de dezembro de 2022, Aquila Part Prod Com, C-512/21, EU:C:2022:950, n.° 36).

58      Consequentemente, há que responder à sexta questão que a Diretiva IVA deve ser interpretada no sentido de que:

–        se opõe, quando a Autoridade Tributária pretende recusar a um sujeito passivo o benefício do direito à dedução do IVA pago a montante com o fundamento de que esse sujeito passivo participou numa fraude ao IVA de tipo «carrossel», a que essa Autoridade Tributária se limite a demonstrar que essa operação faz parte de uma cadeia de faturação circular;

–        incumbe à referida Autoridade Tributária, por um lado, caracterizar com precisão os elementos constitutivos da fraude e provar as atuações fraudulentas e, por outro, demonstrar que o sujeito passivo participou ativamente nessa fraude ou então que sabia ou deveria saber que a aquisição de bens ou de serviços invocada para fundamentar esse direito fazia parte da referida fraude, o que não implica necessariamente que se identifiquem todos os participantes na fraude e as respetivas atuações.

 Quanto às despesas

59      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      O princípio do primado do direito da União deve ser interpretado no sentido de que impõe ao juiz nacional, que exerceu a faculdade que lhe é conferida pelo artigo 267.° TFUE, que afaste as apreciações jurídicas de um órgão jurisdicional nacional superior se considerar, à luz da interpretação de uma disposição de direito da União dada pelo Tribunal de Justiça sob a forma de um acórdão ou de um despacho fundamentado na aceção do artigo 99.° do seu Regulamento de Processo, que essas apreciações não são conformes com este direito. Todavia, este princípio não se opõe a uma regulamentação nacional que se limite a obrigar os órgãos jurisdicionais nacionais inferiores a fundamentar qualquer desvio em relação a essas apreciações.

2)      O artigo 167.°, o artigo 168.°, alínea a), e o artigo 178.°, alínea a), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, lidos à luz dos princípios da neutralidade fiscal e da segurança jurídica, devem ser interpretados no sentido de que não se opõem a uma prática através da qual a Autoridade Tributária recusa a um sujeito passivo o direito de deduzir o imposto sobre o valor acrescentado (IVA) relativo à aquisição de bens que lhe foram entregues, com o fundamento de que as faturas relativas a essas aquisições não são fidedignas, devido a circunstâncias que demonstram uma falta de diligência imputável a este sujeito passivo, circunstâncias essas que são, em princípio, apreciadas tendo em conta uma circular publicada por essa autoridade à atenção dos sujeitos passivos, desde que:

–        esta prática e esta circular não ponham em causa a obrigação, que incumbe à referida autoridade, de fazer prova jurídica bastante dos elementos objetivos que permitem concluir que o referido sujeito passivo cometeu uma fraude ao IVA, ou que sabia ou deveria saber que a operação em causa fazia parte dessa fraude;

–        a referida prática e a referida circular não façam recair sobre o mesmo sujeito passivo o ónus de verificações complexas e aprofundadas sobre o seu cocontratante;

–        as exigências aplicadas por essa mesma autoridade estejam em conformidade com as previstas na mesma circular; e

–        a circular publicada à atenção dos sujeitos passivos tenha sido formulada de forma inequívoca e a sua aplicação fosse previsível para os sujeitos passivos.

3)      A Diretiva 2006/112 deve ser interpretada no sentido de que:

–        se opõe, quando a Autoridade Tributária pretende recusar a um sujeito passivo o benefício do direito à dedução do IVA pago a montante com o fundamento de que esse sujeito passivo participou numa fraude ao IVA de tipo «carrossel», a que essa Autoridade Tributária se limite a demonstrar que essa operação faz parte de uma cadeia de faturação circular;

–        incumbe à referida Autoridade Tributária, por um lado, caracterizar com precisão os elementos constitutivos da fraude e provar as atuações fraudulentas e, por outro, demonstrar que o sujeito passivo participou ativamente nessa fraude ou então que sabia ou deveria saber que a aquisição de bens ou de serviços invocada para fundamentar esse direito fazia parte da referida fraude, o que não implica necessariamente que se identifiquem todos os participantes na fraude e as respetivas atuações.

Assinaturas


*      Língua do processo: húngaro.