Available languages

Taxonomy tags

Info

References in this case

Share

Highlight in text

Go

Edição provisória

ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção)

12 de setembro de 2024 (*)

« Reenvio prejudicial — Fiscalidade — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Artigo 135.°, n.° 1, alínea i) — Isenções — Apostas, lotarias e outros jogos de azar ou a dinheiro — Condições e limites — Princípio da neutralidade fiscal — Manutenção dos efeitos de uma regulamentação nacional — Direito ao reembolso — Enriquecimento sem causa — Auxílios de Estado — Artigo 107.°, n.° 1, TFUE — Pedido de reembolso do imposto sob a forma de indemnização »

No processo C-741/22,

que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado, nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo tribunal de première instance de Liège (Tribunal de Primeira Instância de Liège, Bélgica), por Decisão de 18 de novembro de 2022, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 2 de dezembro de 2022, no processo

Casino de Spa SA,

Ardent Betting SA,

Ardent Finance SA,

Artekk SRL (absorvida pela Circus Belgium SA),

Circus Belgium SA,

Circus Services SA,

Gambling Management SA,

Games Services SA,

Gaming1 SRL,

Guillemins Real Estate SA,

Immo Circus Wallonie SA,

Mr Joker SRL,

Pres Carats Sports SA,

Pro Securite SRL,

Royal Namur SA,

Euro 78 SRL,

Lucky Bet SRL,

Reflex SA,

Slots SRL,

Winvest SRL,

Parction SA,

Ardent Casino Belgium SA,

Ardent Casino International SA,

Ardent Namur Immo SA,

Odds Sportbar SRL,

HQ1 SRL,

Tour de Baschamps SRL,

contra

État belge (SPF Finances),

sendo intervenientes:

État belge (SPF Justice),

La Chambre des Représentants,

O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Primeira Secção),

composto por: A. Arabadjiev, presidente de secção, L. Bay Larsen (relator), vice-presidente do Tribunal de Justiça, T. von Danwitz, A. Kumin e I. Ziemele, juízes,

advogado-geral: J. Kokott,

secretário: A. Calot Escobar,

vistos os autos,

vistas as observações apresentadas:

–        em representação da Casino de Spa SA, da Ardent Betting SA, da Ardent Finance SA, da Artekk SRL (absorvida pela Circus Belgium SA), da Circus Belgium SA, da Circus Services SA, da Gambling Management SA, da Games Services SA, da Gaming1 SRL, da Guillemins Real Estate SA, da Immo Circus Wallonie SA, da Mr Joker SRL, da Pres Carats Sports SA, da Pro Securite SRL, da Royal Namur SA, da Euro 78 SRL, da Lucky Bet SRL, da Reflex SA, Slots SRL, da Winvest SRL, da Parction SA, da Ardent Casino Belgium SA, da Ardent Casino International SA, da Ardent Namur Immo SA, da Odds Sportbar SRL, da HQ1 SRL e da Tour de Baschamps SRL, por M. Levaux e V. Lamberts, avocats,

–        em representação do Governo Belga, por S. Baeyens, P. Cottin e C. Pochet, na qualidade de agentes, assistidos por P. Vlaemminck, advocaat, e V. Ramognino, avocat,

–        em representação do Governo Checo, por L. Halajová, M. Smolek e J. Vláčil, na qualidade de agentes,

–        em representação do Governo Alemão, por P.-L. Krüger e J. Möller, na qualidade de agentes,

–        em representação da Comissão Europeia, por J. Carpi Badía, M. Herold e A. Armenia, na qualidade de agentes,

ouvidas as conclusões da advogada-geral na audiência de 25 de abril de 2024,

profere o presente

Acórdão

1        O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação do artigo 4.°, n.° 3, TUE, dos artigos 107.° e 267.° TFUE, dos princípios da neutralidade fiscal e da efetividade, bem como do artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1).

2        Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Casino de Spa SA e o. ao État belge, SPF Finances (Estado belga, Serviço Público Federal de Finanças), a respeito de uma decisão relativa ao imposto sobre o valor acrescentado (IVA) devido a título do período compreendido entre 1 de julho de 2016 e 21 de maio de 2018, a coimas e a juros de mora.

 Quadro jurídico

 Direito da União

3        O artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112 prevê:

«Os Estados-Membros isentam as seguintes operações:

[...]

i)      As apostas, lotarias e outros jogos de azar ou a dinheiro, sob reserva das condições e dos limites estabelecidos por cada Estado-Membro.»

 Direito belga

4        O artigo 1.°, n.° 14, do code de la taxe sur la valeur ajoutée (Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado) (Moniteur belge, 17 de julho de 1969, p. 7046), conforme alterado pela loi-programme du 1er juillet 2016 (Lei Programa de 1 de julho de 2016) (a seguir «Código do IVA»), previa:

«Para efeitos do presente Código, entende-se por:

1.°      “jogos de azar ou a dinheiro”:

a)      jogos, seja qual for a sua denominação, que oferecem a possibilidade de ganhar prémios ou recompensas em dinheiro ou em espécie, nos quais os jogadores não podem intervir no início, durante ou no final do jogo, e cujos vencedores são determinados unicamente por sorteio ou por qualquer outra circunstância devida ao acaso;

b)      jogos, seja qual for a sua denominação, que oferecem aos participantes num concurso de qualquer natureza a oportunidade de ganhar prémios ou recompensas em dinheiro ou em espécie, a menos que o concurso dê lugar à celebração de um contrato entre os vencedores e o organizador do concurso;

2.°      “lotarias”: qualquer circunstância em que, através da compra de bilhetes de lotaria, é possível competir por prémios ou recompensas em dinheiro ou em espécie, em que os vencedores são determinados por sorteio ou por qualquer outra circunstância devida ao acaso sobre a qual os vencedores não podem exercer nenhuma influência.»

5        O artigo 44.°, n.° 3, do Código do IVA dispunha:

«Estão também isentos do imposto:

13.°

a)      as lotarias;

b)      os outros jogos de azar ou a dinheiro, com exceção dos fornecidos por via eletrónica a que se refere o artigo 18.°, n.° 1, segundo parágrafo, ponto 16.»

 Litígio no processo principal e questões prejudiciais

6        A Casino de Spa e as outras sociedades demandantes no processo principal formam a Unité TVA Gaming Ardent (Unidade de IVA Gaming Ardent) e oferecem jogos online.

7        Esta atividade esteve isenta de IVA na Bélgica até 1 de julho de 2016, data em que foram adotadas disposições que revogaram a isenção do IVA sobre os jogos de azar ou a dinheiro online diferentes das lotarias.

8        A Cour constitutionnelle (Tribunal Constitucional, Bélgica) anulou aquelas disposições, por Acórdão de 22 de março de 2018, com fundamento na violação de normas de repartição de competências entre o Estado Federal e as regiões previstas no direito belga. Nesse acórdão, o referido tribunal não analisou os restantes fundamentos que lhe foram apresentados, em particular os relativos à violação da Diretiva 2006/112, do princípio da neutralidade fiscal e dos artigos 107.° e 108.° TFUE, por considerar que tais fundamentos não podiam conduzir a uma anulação mais extensa dessas disposições. No referido acórdão, o mesmo tribunal decidiu igualmente manter os efeitos daquelas disposições, invocando as dificuldades orçamentais e administrativas que o reembolso dos impostos já pagos implicaria.

9        Num Acórdão de 8 de novembro de 2018, a Cour constitutionnelle (Tribunal Constitucional, Bélgica) esclareceu que os efeitos das disposições que revogam a isenção do IVA sobre os jogos de azar ou a dinheiro online diferentes das lotarias, que anulara no seu Acórdão de 22 de março de 2018, se mantinham relativamente aos impostos que tinham sido pagos a título do período compreendido entre 1 de julho de 2016 e 21 de maio de 2018.

10      Na sequência desses acórdãos, a Unité TVA Gaming Ardent inseriu, na parte relativa às regularizações do IVA a seu favor na sua declaração de IVA do mês de setembro de 2019, um montante de 29 328 371,20 euros, que corresponde ao montante do IVA pago a título do período compreendido entre 1 de julho de 2016 e 21 de maio de 2018, e pediu o reembolso de um montante de 15 581 402,06 euros.

11      Em 5 de dezembro de 2019, a Administração Tributária belga lavrou um auto, no qual referiu que aquele pedido era contrário aos acórdãos da Cour constitutionnelle (Tribunal Constitucional, Bélgica) de 22 de março e 8 de novembro de 2018 e que, por conseguinte, a Unité TVA Gaming Ardent devia um montante de 29 328 370,36 euros a título de IVA, de coimas e de juros.

12      Na sequência de uma reclamação apresentada pela Unité TVA Gaming Ardent contra esse auto, o montante das coimas que lhe tinham sido aplicadas foi reduzido.

13      Em 12 de outubro de 2020, a Unité TVA Gaming Ardent impugnou a Decisão de 14 de agosto de 2020, relativa ao IVA devido a título do período compreendido entre 1 de julho de 2016 e 21 de maio de 2018, às coimas e aos juros de mora, no tribunal de première instance de Liège (Tribunal de Primeira Instância de Liège, Bélgica), que é o órgão jurisdicional de reenvio. Invoca, a título subsidiário, a responsabilidade do Estado belga por erro da Cour constitutionnelle (Tribunal Constitucional, Bélgica), uma vez que este tribunal decidiu manter os efeitos das disposições em causa no processo principal e, a título ainda mais subsidiário, a responsabilidade do Estado belga por erro do legislador.

14      Nestas condições, o tribunal de première instance de Liège (Tribunal de Primeira Instância de Liège) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:

«1)      Devem o artigo 135.°, n.° 1, alínea i) da Diretiva [2006/112] e o princípio da neutralidade fiscal ser interpretados no sentido de que se opõem a que um Estado-Membro trate de maneira diferente, em caso de prestações de serviços semelhantes, as lotarias em linha propostas pela Lotaria Nacional, estabelecimento público, que estão isentas de [IVA], e os outros jogos de fortuna ou azar em linha propostos por operadores privados que estão sujeitos ao [IVA]?

2)      No âmbito da resposta à questão anterior, a fim de determinar se se trata de duas categorias semelhantes que concorrem entre si e que devem receber o mesmo tratamento em matéria de [IVA], ou se se trata de categorias distintas que permitem um tratamento diferente, deve o tribunal nacional considerar unicamente o facto de as duas formas de jogo estarem ou não em concorrência entre si do ponto de vista do consumidor médio, no sentido de que as prestações de serviços são semelhantes quando tiverem propriedades semelhantes e satisfizerem as mesmas necessidades do consumidor, com base num critério de comparabilidade na utilização, e quando as diferenças existentes não influenciarem significativamente a decisão do consumidor médio de utilizar uma ou outra prestação de serviços (critério de substituição), ou deve ter em conta outros critérios, como a existência de um poder discricionário por parte do Estado-Membro de isentar certas categorias de jogos e de sujeitar outras ao IVA, o facto de as lotarias pertencerem a uma categoria distinta de jogos referidos no artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva [2006/112], os diferentes quadros normativos que se aplicam à Lotaria Nacional e aos outros jogos de fortuna ou azar, as autoridades de controlo diferentes ou os objetivos sociais e de proteção dos jogadores prosseguidos pela legislação aplicável à Lotaria Nacional?

3)      Deve o princípio da cooperação leal estabelecido no artigo 4.°, n.° 3, [TUE], conjugado com o artigo 267.° [TFUE], com as disposições da Diretiva [2006/112] e, quando aplicável, com o princípio da eficácia, ser interpretado no sentido de que permite ao Tribunal Constitucional de um Estado-Membro — por iniciativa própria e sem reenvio prejudicial ao abrigo do artigo 267.° TFUE —, com base numa disposição de direito nacional (neste caso, o artigo 8.° da Lei Especial de 6 de Janeiro de 1989 sobre o Tribunal Constitucional), manter os efeitos produzidos no passado por disposições nacionais em matéria de [IVA], consideradas contrárias à Constituição nacional e anuladas por esse motivo, e cuja não conformidade com o direito da União foi igualmente invocada em apoio do recurso de anulação perante o tribunal nacional, sem que, no entanto, este fundamento tenha sido examinado por este último, que se baseou, de maneira geral, nas “dificuldades orçamentais e administrativas que o reembolso dos impostos já pagos causaria”, privando assim os sujeitos passivos de IVA do direito ao reembolso do IVA cobrado em violação do direito da União?

4)      Em caso de resposta negativa à questão anterior, as mesmas disposições e princípios interpretados, em particular, à luz do Acórdão de 10 de abril de 2008, Marks & Spencer [(C-309/06, EU:C:2008:211)], segundo o qual os princípios gerais do direito comunitário, incluindo o princípio da neutralidade fiscal, conferem ao operador económico que tenha efetuado entregas ou prestações o direito de obter a restituição das quantias que lhe foram erradamente cobradas relativamente a estas mesmas entregas ou prestações [Acórdão de 10 de abril de 2008, Marks & Spencer (C-309/06, EU:C:2008:211)], impõem ao Estado-Membro em causa que restitua aos sujeitos passivos o IVA cobrado em violação do direito da União quando, como no caso vertente, esta decorre posteriormente de um acórdão do Tribunal de Justiça que afirma, em resposta a questões prejudiciais, por um lado, que as disposições nacionais anuladas não estão em conformidade com a Diretiva [2006/112], relativa ao sistema comum do IVA, e, por outro, que a decisão do Tribunal Constitucional de manter os efeitos produzidos no passado das disposições que anula não está em conformidade com o direito da União?

5)      O tratamento distinto entre as lotarias, de base territorial ou em linha, e os outros jogos e apostas em linha, instituído pelos artigos 29.°, 30.°, 31.°, 32.°, 33.° e 34.° da Lei Programa de 1 de julho de 2016, anulados pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 34/2018, de 22 de março de 2018, mas cujos efeitos se mantiveram após essa data no que respeita aos impostos já pagos correspondentes ao período compreendido entre 1 de julho de 2016 e 21 de maio de 201[8], cria uma vantagem seletiva a favor dos operadores dessas lotarias e, portanto, um auxílio concedido pelo Estado belga ou através de recursos estatais belgas, que falseia ou ameaça falsear a concorrência favorecendo certas empresas, incompatível com o mercado interno, na aceção do artigo 107.° [TFUE]?

6)      Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, a obrigação que incumbe aos Estados-Membros de assegurar que os direitos dos contribuintes afetados pela aplicação ilegal do auxílio em questão sejam salvaguardados, como decorre, designadamente, do Acórdão de 5 de outubro de 2006, Transalpine Ölleitung in Österreich [(C-368/04, EU:C:2006:644)], o princípio da cooperação leal e os princípios gerais do direito comunitário, incluindo o da neutralidade fiscal, que conferem ao operador económico que tenha efetuado entregas ou prestações o direito de obter a restituição das quantias que lhe foram erradamente cobradas relativamente a estas mesmas entregas ou prestações [Acórdão de 10 de abril de 2008, Marks & Spencer (C- 309/06, EU:C:2008:211)], permitem aos sujeitos passivos que tenham faturado IVA com base num auxílio estatal contrário à lei, recuperar o equivalente do imposto pago sob a forma de reparação dos prejuízos sofridos?»

 Quanto ao pedido de reabertura da fase oral do processo

15      Após a leitura das conclusões da advogada-geral na audiência de 25 de abril de 2024, as demandantes no processo principal requereram a reabertura da fase oral do processo, por ofício que deu entrada na Secretaria do Tribunal de Justiça em 30 de maio de 2024.

16      Em apoio deste pedido, as demandantes alegam que as conclusões incidem sobre uma questão de direito relativa ao reconhecimento de efeito direto ao artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112 que não foi submetida ao Tribunal de Justiça pelo órgão jurisdicional de reenvio e a respeito da qual não puderam, por conseguinte, apresentar as suas observações. As demandantes exprimem igualmente o seu desacordo com as conclusões da advogada-geral sobre este ponto.

17      A este respeito, cumpre salientar que, em conformidade com o artigo 83.° do seu Regulamento de Processo, o Tribunal de Justiça pode, a qualquer momento, ouvido o advogado-geral, ordenar a reabertura da fase oral do processo, designadamente se considerar que não está suficientemente esclarecido ou quando o processo deva ser resolvido com base num argumento que não foi debatido entre as partes.

18      Cumpre igualmente recordar que o Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia e o Regulamento de Processo não preveem a possibilidade de as partes apresentarem observações em resposta às conclusões apresentadas pelo advogado-geral (Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C-158/21, EU:C:2023:57, n.° 37 e jurisprudência referida).

19      Além disso, por força do artigo 252.o, segundo parágrafo, TFUE, o advogado-geral apresenta publicamente, com toda a imparcialidade e independência, conclusões fundamentadas sobre as causas que, nos termos do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia, requeiram a sua intervenção. O Tribunal de Justiça não está vinculado por essas conclusões nem pela fundamentação em que o advogado-geral as baseia. Por conseguinte, o desacordo de uma parte com as conclusões do advogado-geral, sejam quais forem as questões que este examina nas mesmas, não pode constituir, em si, um fundamento justificativo da reabertura da fase oral do processo (Acórdão de 31 de janeiro de 2023, Puig Gordi e o., C-158/21, EU:C:2023:57, n.° 38 e jurisprudência referida).

20      No caso em apreço, o Tribunal de Justiça considera, ouvida a advogada-geral, que dispõe de todos os elementos necessários para se pronunciar.

21      Em particular, atenta a jurisprudência recordada no n.° 19 do presente acórdão, importa salientar que, contrariamente ao que alegam as demandantes no processo principal em apoio do seu pedido de reabertura da fase oral do processo, uma vez que a quarta questão prejudicial tem por objeto os efeitos que devem ser reconhecidos no artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112 perante um tribunal nacional, o órgão jurisdicional de reenvio questionou necessariamente o Tribunal de Justiça a respeito do reconhecimento de efeito direto a esta disposição. Resulta do exposto que as demandantes tiveram oportunidade de apresentar o seu entendimento quanto a este ponto.

22      Por conseguinte, não há que ordenar a reabertura da fase oral do processo.

 Quanto às questões prejudiciais

 Quanto à primeira e segunda questões

23      Com as suas questões primeira e segunda, que importa analisar conjuntamente, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o princípio da neutralidade fiscal, deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional que estabelece uma diferença de tratamento entre, por um lado, a compra de bilhetes de lotaria online e, por outro, a participação noutros jogos de azar ou a dinheiro oferecidos online, ao excluir esta última da isenção do IVA aplicável à primeira.

24      Nos termos do artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112, as apostas, lotarias e outros jogos de azar ou a dinheiro estão isentos de IVA, sob reserva das condições e dos limites estabelecidos por cada Estado-Membro.

25      Resulta dos próprios termos dessa disposição que a mesma deixa uma ampla margem de apreciação aos Estados-Membros quanto à isenção ou à tributação das operações em causa, uma vez que lhes permite fixar as condições e os limites a que o benefício de tal isenção pode ser subordinado (v., por analogia, Acórdão de 10 de novembro de 2011, The Rank Group, C-259/10 e C-260/10, EU:C:2011:719, n.° 40 e jurisprudência referida).

26      Além disso, o Tribunal de Justiça esclareceu que o exercício da faculdade de que os Estados-Membros dispõem para fixar condições e limites à isenção de IVA prevista pela referida disposição lhes permite isentar desse imposto apenas certos jogos de azar ou a dinheiro (Acórdão de 24 de outubro de 2013, Metropol Spielstätten, C-440/12, EU:C:2013:687, n.° 29 e jurisprudência referida).

27      Contudo, quando, em conformidade com a mesma disposição, os Estados-Membros fazem uso da faculdade de determinar as condições e os limites da isenção e, por conseguinte, de sujeitar ou não operações a IVA, devem respeitar o princípio da neutralidade fiscal inerente ao sistema comum do IVA (Acórdão de 10 de novembro de 2011, The Rank Group, C-259/10 e C-260/10, EU:C:2011:719, n.° 41 e jurisprudência referida).

28      Segundo jurisprudência assente, o princípio da neutralidade fiscal opõe-se em especial a que mercadorias ou prestações de serviços semelhantes, que estão, por conseguinte, em concorrência entre si, sejam tratadas de maneira diferente do ponto de vista do IVA (Acórdão de 10 de novembro de 2011, The Rank Group, C-259/10 e C-260/10, EU:C:2011:719, n.° 32 e jurisprudência referida).

29      A fim de determinar se duas prestações de serviços são semelhantes, há que ter principalmente em conta o ponto de vista do consumidor médio, evitando distinções artificiais baseadas em diferenças insignificantes (v., neste sentido, Acórdão de 10 de novembro de 2011, The Rank Group, C-259/10 e C-260/10, EU:C:2011:719, n.° 43 e jurisprudência referida).

30      Duas prestações de serviços são, assim, semelhantes quando apresentam propriedades análogas e satisfazem as mesmas necessidades do consumidor, em função de um critério de comparabilidade na utilização, e quando as diferenças existentes não influenciam de forma considerável a decisão do consumidor médio de recorrer a uma ou a outra das referidas prestações (Acórdão de 10 de novembro de 2011, The Rank Group, C-259/10 e C-260/10, EU:C:2011:719, n.° 44 e jurisprudência referida).

31      Por outras palavras, trata-se de examinar se as prestações de serviços em causa se encontram, do ponto de vista do consumidor médio, numa relação de substituição. Com efeito, nesse caso, uma diferença de tratamento em termos de IVA é suscetível de afetar a escolha do consumidor, o que indica, consequentemente, uma violação do princípio da neutralidade fiscal (v., neste sentido, Acórdão de 3 de fevereiro de 2022, Finanzamt A, C 515/20, EU:C:2022:73, n.° 45 e jurisprudência referida).

32      A este respeito, há que ter em conta não só as diferenças que dizem respeito às propriedades das prestações em causa, bem como à sua utilização, e que são, assim, inerentes a essas prestações, mas também diferenças relativas ao contexto em que as referidas prestações são efetuadas, na medida em que essas diferenças contextuais sejam suscetíveis de criar uma distinção aos olhos do consumidor médio, em termos de resposta às suas próprias necessidades, e que possam, assim, influenciar a escolha desse consumidor (v., neste sentido, Acórdão de 9 de setembro de 2021, Phantasialand, C-406/20, EU:C:2021:720, n.os 41 e 42 e jurisprudência referida).

33      Assim, o Tribunal de Justiça declarou que fatores de ordem cultural, como costumes ou tradições, podem ser relevantes no âmbito desse exame (v., neste sentido, Acórdão de 9 de setembro de 2021, Phantasialand, C-406/20, EU:C:2021:720, n.° 44).

34      Além disso, o Tribunal de Justiça esclareceu, a propósito dos jogos de azar, que as diferenças relativas aos valores mínimos e máximos das apostas e dos prémios, às probabilidades de ganhar, aos formatos disponíveis e à possibilidade de interações entre o jogador e o jogo são suscetíveis de ter uma influência considerável na decisão do consumidor médio, uma vez que a atração dos jogos de azar ou a dinheiro reside principalmente na possibilidade de ganhar (v., neste sentido, Acórdão de 10 de novembro de 2011, The Rank Group, C-259/10 e C-260/10, EU:C:2011:719, n.° 57).

35      Estes elementos podem, por conseguinte, ser relevantes para determinar se a compra de bilhetes de lotaria online e a participação noutros jogos de azar ou a dinheiro online são semelhantes.

36      Embora incumba exclusivamente ao órgão jurisdicional de reenvio apreciar, à luz das considerações que figuram nos n.os 28 a 35 do presente acórdão, se essas prestações de serviços são semelhantes, cabe ao Tribunal de Justiça fornecer-lhe indicações úteis para o efeito que lhe permitam decidir o litígio que lhe foi submetido (v., neste sentido, Acórdão de 20 de junho de 2024, GEMA, C-135/23, EU:C:2024:526, n.° 32).

37      Em particular, cumpre salientar que fatores de ordem cultural e diferenças relativos aos valores mínimos e máximos das apostas e dos prémios, bem como às possibilidades de ganhar, podem criar uma distinção, aos olhos do consumidor médio, entre as lotarias e os outros jogos de azar ou a dinheiro.

38      Acresce que resulta da decisão de reenvio que, de acordo com a regulamentação nacional em causa no processo principal, por um lado, ao contrário de outros jogos de azar ou a dinheiro, em que as capacidades do jogador, como a habilidade ou o conhecimento, podem influenciar as probabilidades de obter um prémio, no caso das lotarias na aceção desta regulamentação, os vencedores são determinados apenas pelo acaso, sem que as suas capacidades possam exercer qualquer influência a este respeito. Por outro lado, neste contexto, uma vez que o vencedor é designado numa data específica, o período entre a compra do bilhete de lotaria e o resultado pode ser significativo.

39      Assim, o que caracteriza as lotarias, conforme definidas na regulamentação nacional em causa no processo principal, é a conjugação entre um período de espera para determinar os vencedores e o facto de as capacidades dos jogadores não terem nenhuma influência no resultado do jogo.

40      Ora, estas diferenças objetivas parecem ser suscetíveis de influenciar de forma considerável a decisão do consumidor médio de recorrer a uma ou a outra categoria de jogos, o que, todavia, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.

41      Em contrapartida, há que recordar que a identidade dos prestadores, a forma jurídica através da qual estes exercem as suas atividades, a categoria de licença a que pertencem os jogos em causa e o regime jurídico aplicável em matéria de controlo e de regulação não são, em princípio, relevantes para apreciar se essas categorias de jogos são comparáveis (v., por analogia, Acórdão de 10 de novembro de 2011, The Rank Group, C-259/10 e C-260/10, EU:C:2011:719, n.os 46 e 51).

42      Do mesmo modo, o facto de essa disposição referir expressamente as lotarias e os objetivos prosseguidos pela regulamentação nacional em causa é, em princípio, irrelevante no âmbito dessa análise, uma vez que, do ponto de vista do consumidor médio, tais elementos não parecem suscetíveis de estabelecer uma distinção em termos de satisfação das suas necessidades próprias.

43      Atendendo às considerações expostas nos n.os 28 a 42 do presente acórdão, afigura-se, à primeira vista, que as prestações tidas em consideração nestes números não são semelhantes, o que significa que uma diferença de tratamento como a que está em causa no processo principal é compatível com o princípio da neutralidade fiscal. No entanto, cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar em concreto, à luz dos elementos relevantes, se aquela regulamentação viola este princípio.

44      Por conseguinte, há que responder às questões primeira e segunda que o artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o princípio da neutralidade fiscal, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional que estabelece uma diferença de tratamento entre, por um lado, a compra de bilhetes de lotaria online e, por outro, a participação noutros jogos de azar ou a dinheiro oferecidos online, ao excluir esta última da isenção do IVA aplicável à primeira, desde que as diferenças objetivas entre estas duas categorias de jogos de azar ou a dinheiro sejam suscetíveis de influenciar de forma considerável a decisão do consumidor médio de recorrer a uma ou a outra destas categorias de jogos.

 Quanto à terceira questão

45      Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio da cooperação leal conforme consagrado no artigo 4.°, n.° 3, TUE, lido em conjugação com o artigo 267.° TFUE, a Diretiva 2006/112 e o princípio da efetividade, deve ser interpretado no sentido de que um tribunal nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial pode aplicar uma disposição nacional que lhe permite manter os efeitos de disposições nacionais que declarou incompatíveis com as normas superiores do seu direito nacional, sem examinar uma alegação segundo a qual essas disposições são igualmente incompatíveis com esta diretiva.

46      Segundo jurisprudência constante, no âmbito do procedimento de cooperação entre os órgãos jurisdicionais nacionais e o Tribunal de Justiça instituído pelo artigo 267.° TFUE, cabe a este dar ao juiz nacional uma resposta útil que lhe permita decidir o litígio que lhe foi submetido. Nesta ótica, incumbe ao Tribunal de Justiça, se necessário, reformular as questões que lhe são submetidas [Acórdão de 16 de maio de 2024, Toplofikatsia Sofia (Conceito de domicílio do requerido), C 222/23, EU:C:2024:405, n.° 63 e jurisprudência referida].

47      Para o efeito, o Tribunal de Justiça pode extrair do conjunto dos elementos fornecidos pelo órgão jurisdicional nacional, designadamente da fundamentação da decisão de reenvio, as normas e os princípios do direito da União que carecem de interpretação, tendo em conta o objeto do litígio no processo principal [Acórdão de 21 de março de 2024, Dyrektor Izby Administracji Skarbowej w Bydgoszczy (Possibilidade de correção em caso de taxa errada), C-606/22, EU:C:2024:255, n.° 20 e jurisprudência referida].

48      No caso em apreço, embora a terceira questão incida sobre as obrigações que o direito da União impõe a um tribunal nacional cujas decisões não são suscetíveis de recurso judicial, resulta da decisão de reenvio que esta questão é submetida por um tribunal de primeira instância, que tem dúvidas a respeito das consequências da eventual incompatibilidade com o artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o princípio da neutralidade fiscal, de uma disposição nacional que foi anulada pelo Tribunal Constitucional do seu Estado-Membro devido a uma violação de normas superiores do seu direito nacional e cujos efeitos foram mantidos por este último tribunal.

49      Neste contexto, parece, assim, que o órgão jurisdicional de reenvio não é chamado, no processo principal, a pronunciar-se diretamente sobre o comportamento do Tribunal Constitucional do seu Estado-Membro, sendo antes, se for o caso, chamado a retirar as consequências da incompatibilidade desta disposição nacional com o direito da União no âmbito de um litígio que opõe um sujeito passivo a uma autoridade tributária relativo ao montante do IVA devido por este sujeito passivo.

50      Nestas condições, há que reformular a terceira questão prejudicial no sentido de que, com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio da cooperação leal conforme consagrado no artigo 4.°, n.° 3, TUE e o princípio do primado do direito da União impõem ao juiz nacional que não aplique as disposições nacionais declaradas incompatíveis com o artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o princípio da neutralidade fiscal, sem que a existência de um acórdão do Tribunal Constitucional nacional que declara a manutenção dos efeitos dessas disposições nacionais tenha influência a este respeito.

51      Resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que, por força do princípio da cooperação leal previsto no artigo 4.o, n.° 3, TUE, os Estados-Membros são obrigados a eliminar as consequências ilícitas de uma violação do direito da União e que essa obrigação incumbe, no âmbito das suas competências, a cada órgão do Estado-Membro em causa (Acórdão de 5 de outubro de 2023, Osteopathie Van Hauwermeiren, C-355/22, EU:C:2023:737, n.° 27 e jurisprudência referida).

52      Assim, quando verificam que uma regulamentação nacional é incompatível com o direito da União, as autoridades do Estado-Membro em causa devem, embora mantendo a faculdade de escolher as medidas a tomar, fazer com que, o mais rápido possível, o direito nacional seja posto em conformidade com o direito da União e que seja dado pleno efeito aos direitos conferidos pelo direito da União aos seus destinatários (Acórdão de 5 de outubro de 2023, Osteopathie Van Hauwermeiren, C-355/22, EU:C:2023:737, n.° 28 e jurisprudência referida).

53      Importa igualmente recordar que o princípio do primado impõe ao juiz nacional encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições do direito da União, a obrigação, na impossibilidade de proceder a uma interpretação da regulamentação nacional conforme com as exigências do direito da União, de assegurar o pleno efeito das exigências deste direito no litígio que é chamado a decidir, afastando, se necessário, a aplicação, por sua própria iniciativa, de qualquer regulamentação ou prática nacional, ainda que posterior, que seja contrária a uma disposição do direito da União que tenha efeito direto, sem que tenha de pedir ou de esperar pela supressão prévia desta regulamentação ou prática nacional por via legislativa ou por qualquer outro procedimento constitucional [Acórdão de 22 de fevereiro de 2022, RS (Efeito dos acórdãos de um tribunal constitucional), C-430/21, EU:C:2022:99, n.° 53 e jurisprudência referida].

54      Ora, o artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112 tem efeito direto (v., por analogia, Acórdão de 10 de novembro de 2011, The Rank Group, C-259/10 e C-260/10, EU:C:2011:719, n.° 69 e jurisprudência referida).

55      Efetivamente, como foi salientado no n.° 25 do presente acórdão, esta disposição deixa aos Estados-Membros uma certa margem de apreciação quando adotam uma regulamentação que prevê as condições e fixa os limites da isenção do IVA prevista na referida disposição.

56      Não obstante, o facto de os Estados-Membros disporem, ao abrigo de uma disposição de uma diretiva, de uma margem de apreciação não exclui a possibilidade de efetuar uma fiscalização judicial para verificar se as autoridades nacionais não excederam essa margem de apreciação [v., neste sentido, Acórdãos de 9 de outubro de 2014, Traum, C-492/13, EU:C:2014:2267, n.° 47; de 8 de março de 2022, Bezirkshauptmannschaft Hartberg Fürstenfeld (Efeito direto), C-205/20, EU:C:2022:168, n.° 30; e de 27 de abril de 2023, M.D. (Proibição de entrada na Hungria), C-528/21, EU:C:2023:341, n.° 98].

57      Ora, os limites dessa margem de apreciação resultam, nomeadamente, do princípio da neutralidade fiscal. Assim, o Tribunal de Justiça já declarou que quando as condições ou os limites a que um Estado-Membro subordina o benefício da isenção do IVA para os jogos de azar ou a dinheiro são contrários ao princípio da neutralidade fiscal, o referido Estado-Membro não se pode basear nessas condições ou limites para recusar a quem explora esses jogos a isenção a que este pode legitimamente ter direito nos termos da Diretiva 2006/112 (v., neste sentido, Acórdão de 10 de novembro de 2011, The Rank Group, C-259/10 e C-260/10, EU:C:2011:719, n.° 68).

58      Importa ainda recordar que só o Tribunal de Justiça pode, a título excecional e com base em considerações imperiosas de segurança jurídica, conceder uma suspensão provisória do efeito de exclusão exercido por uma regra de direito da União relativamente ao direito nacional a ela contrário. Essa limitação no tempo dos efeitos da interpretação deste direito, dada pelo Tribunal de Justiça, apenas pode ser concedida no próprio acórdão que decide sobre a interpretação pedida (Acórdão de 5 de outubro de 2023, Osteopathie Van Hauwermeiren, C-355/22, EU:C:2023:737, n.° 30 e jurisprudência referida).

59      O primado e a aplicação uniforme do direito da União ficariam comprometidos se os órgãos jurisdicionais nacionais pudessem, ainda que a título provisório, dar primazia às disposições nacionais sobre o direito da União (Acórdão de 5 de outubro de 2023, Osteopathie Van Hauwermeiren, C-355/22, EU:C:2023:737, n.° 31 e jurisprudência referida).

60      O princípio do primado impõe, assim, ao juiz nacional que não aplique as disposições nacionais consideradas contrárias ao direito da União com efeito direto, mesmo que o Tribunal Constitucional nacional tenha previamente decidido adiar o fim da vigência dessas disposições declaradas inconstitucionais (v., neste sentido, Acórdão de 19 de novembro de 2009, Filipiak, C-314/08, EU:C:2009:719, n.° 85).

61      O Tribunal de Justiça esclareceu igualmente que o juiz nacional, tendo exercido a faculdade que lhe é conferida pelo artigo 267.°, segundo parágrafo, TFUE, está vinculado, para a resolução do litígio no processo principal, pela interpretação das disposições em causa feita pelo Tribunal de Justiça e deve, se for o caso, afastar as apreciações do tribunal superior se considerar, à luz dessa interpretação, que estas não são conformes com o direito da União (Acórdão de 5 de outubro de 2010, Elchinov, C-173/09, EU:C:2010:581, n.° 30).

62      Tendo em conta as considerações que precedem, há que responder à terceira questão que o princípio da cooperação leal conforme consagrado no artigo 4.°, n.° 3, TUE e o princípio do primado do direito da União impõem ao juiz nacional que não aplique as disposições nacionais declaradas incompatíveis com o artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o princípio da neutralidade fiscal, sem que a existência de um acórdão do Tribunal Constitucional nacional que declara a manutenção dos efeitos dessas disposições nacionais tenha influência a este respeito.

 Quanto à quarta questão

63      Com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o princípio da cooperação leal conforme consagrado no artigo 4.°, n.° 3, TUE, lido em conjugação com o artigo 267.° TFUE, a Diretiva 2006/112, o princípio da efetividade e os princípios gerais do direito da União, nomeadamente o princípio da neutralidade fiscal, devem ser interpretados no sentido de que conferem ao sujeito passivo um direito a obter o reembolso do montante do IVA cobrado num Estado-Membro em violação do artigo 135.°, n.° 1, alínea i), desta diretiva.

64      No presente caso, resulta da decisão de reenvio que, com a sua quarta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber se, caso conclua que o artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o princípio da neutralidade fiscal, se opõe à regulamentação nacional em causa no processo principal, as demandantes no processo principal têm direito a obter o reembolso do montante do IVA pago com base nessa regulamentação.

65      Por conseguinte, esta questão deve ser entendida no sentido de que tem por objeto a interpretação das regras do direito da União relativas à repetição do indevido (v., por analogia, Acórdão de 6 de setembro de 2011, Lady & Kid e o., C 398/09, EU:C:2011:540).

66      Nestas condições, e atenta a jurisprudência recordada nos n.os 46 e 47 do presente acórdão, há que reformular a quarta questão prejudicial no sentido de que, com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se as regras do direito da União relativas à repetição do indevido devem ser interpretadas no sentido de que conferem ao sujeito passivo um direito a obter o reembolso do montante do IVA cobrado num Estado-Membro em violação do artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112.

67      Resulta de jurisprudência constante que o direito de obter o reembolso de impostos cobrados por um Estado-Membro em violação das regras de direito da União é a consequência e o complemento dos direitos conferidos às pessoas pelas disposições do direito da União que proíbem esses impostos, tal como têm sido interpretadas pelo Tribunal de Justiça. Os Estados-Membros estão, assim, em princípio, obrigados a reembolsar os impostos cobrados em violação do direito da União [Acórdão de 28 de setembro de 2023, Administrația Județeană a Finanțelor Publice Brașov (Transferência do direito ao reembolso), C-508/22, EU:C:2023:715, n.° 34 e jurisprudência referida].

68      Resulta do exposto que o direito à repetição do indevido visa resolver as consequências da incompatibilidade do imposto com o direito da União, neutralizando o encargo económico que indevidamente onerou o operador que, afinal, o veio a suportar efetivamente (Acórdão de 16 de maio de 2013, Alakor Gabonatermelő és Forgalmazó, C-191/12, EU:C:2013:315, n.° 24 e jurisprudência referida).

69      Todavia, por via de exceção, essa restituição pode ser recusada quando conduza a um enriquecimento sem causa dos titulares do direito. A proteção dos direitos garantidos nesta matéria pelo ordenamento jurídico da União não impõe, por conseguinte, a restituição de impostos, direitos e taxas cobrados em violação do direito da União quando se prove que o sujeito passivo responsável pelo pagamento desses direitos os repercutiu efetivamente sobre outras pessoas [v., neste sentido, Acórdãos de 16 de maio de 2013, Alakor Gabonatermelő és Forgalmazó, C-191/12, EU:C:2013:315, n.° 25, e de 21 de março de 2024, Dyrektor Izby Administracji Skarbowej w Bydgoszczy (Possibilidade de correção em caso de taxa errada), C-606/22, EU:C:2024:255, n.os 34 e 35].

70      Esta exceção deve, no entanto, ser interpretada de forma restritiva, atendendo nomeadamente ao facto de a repercussão de um imposto no consumidor não neutralizar necessariamente os efeitos económicos da tributação sobre o sujeito passivo (v., neste sentido, Acórdão de 2 de outubro de 2003, Weber’s Wine World e o., C-147/01, EU:C:2003:533, n.° 95).

71      Assim, mesmo que se prove que o encargo do imposto indevido foi repercutido em terceiros, o seu reembolso ao operador não implica necessariamente o enriquecimento sem causa deste último, visto que a integração do montante do referido imposto nos preços praticados lhe pode provocar prejuízos associados à diminuição do volume das suas vendas [v., neste sentido, Acórdãos de 6 de setembro de 2011, Lady & Kid e o., C-398/09, EU:C:2011:540, n.° 21, e de 21 de março de 2024, Dyrektor Izby Administracji Skarbowej w Bydgoszczy (Possibilidade de correção em caso de taxa errada), C-606/22, EU:C:2024:255, n.° 28].

72      Cumpre igualmente recordar que a existência e a medida do enriquecimento sem causa que o reembolso de um imposto indevidamente cobrado à luz do direito da União criaria para um sujeito passivo só podem ser determinadas com base numa análise económica que tenha em conta todas as circunstâncias relevantes [v., neste sentido, Acórdãos de 10 de abril de 2008, Marks & Spencer, C-309/06, EU:C:2008:211, n.° 43, e de 21 de março de 2024, Dyrektor Izby Administracji Skarbowej w Bydgoszczy (Possibilidade de correção em caso de taxa errada), C-606/22, EU:C:2024:255, n.° 38].

73      Resulta do exposto que há que responder à quarta questão que as regras do direito da União relativas à repetição do indevido devem ser interpretadas no sentido de que conferem ao sujeito passivo um direito a obter o reembolso do montante do IVA cobrado num Estado-Membro em violação do artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112, desde que desse reembolso não resulte um enriquecimento sem causa para esse sujeito passivo.

 Quanto à sexta questão

74      Com a sua sexta questão, que deve ser analisada antes da quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se a obrigação que incumbe aos Estados-Membros de assegurar que os direitos dos contribuintes afetados pela aplicação ilegal de um auxílio de Estado são salvaguardados, o princípio da cooperação leal e os princípios gerais do direito da União, nomeadamente o princípio da neutralidade fiscal, devem ser interpretados no sentido de que um sujeito passivo pode receber, sob forma de uma indemnização, um montante equivalente ao IVA pago, nos casos em que a isenção desse imposto de que outros operadores beneficiaram constitui um auxílio de Estado ilegal.

75      No caso em apreço, resulta da decisão de reenvio que a sexta questão tem por objeto o regime de auxílios de Estado e, mais especificamente, as obrigações que recaem sobre os tribunais nacionais quando concluem que a isenção do IVA de que certos operadores beneficiaram constitui um auxílio de Estado pago sem que tenha havido lugar à notificação prévia exigida pelo artigo 108.°, n.° 3, TFUE.

76      Nestas condições, e atendendo à jurisprudência recordada nos n.os 46 e 47 do presente acórdão, há que reformular a sexta questão prejudicial no sentido de que, com esta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 108.°, n.° 3, TFUE deve ser interpretado no sentido de que, nos casos em que a isenção do IVA de que certos operadores beneficiaram constitui um auxílio de Estado ilegal, um sujeito passivo que não beneficiou dessa isenção pode receber, sob a forma de indemnização, um montante equivalente ao IVA pago.

77      A este respeito, cumpre salientar que, efetivamente, incumbe aos tribunais nacionais garantir que serão tiradas, em conformidade com o direito nacional, todas as consequências da violação do artigo 108.o, n.° 3, último período, TFUE, nomeadamente quer no que diz respeito à validade dos atos de execução das medidas de auxílio, quer à restituição dos apoios financeiros concedidos em violação dessa disposição, uma vez que o objetivo da missão dos tribunais nacionais é, por consequência, o de adotar as medidas adequadas para remediar a ilegalidade da execução dos auxílios, a fim de que o beneficiário não conserve o poder de livre disposição sobre estes durante o restante período de tempo até à decisão da Comissão (Acórdão de 5 de março de 2019, Eesti Pagar, C-349/17, EU:C:2019:172, n.° 89 e jurisprudência referida).

78      Além disso, um tribunal nacional pode ter que decidir de um pedido de indemnização do prejuízo causado em razão do caráter ilegal da medida de auxílio (Acórdão de 5 de outubro de 2006, Transalpine Ölleitung in Österreich, C-368/04, EU:C:2006:644, n.° 56).

79      Assim, ao cumprirem a sua missão, os tribunais nacionais podem ser levados a julgar procedentes pedidos de indemnização dos danos causados pelo auxílio de Estado ilegal aos concorrentes do beneficiário (Acórdão de 23 de janeiro de 2019, Fallimento Traghetti del Mediterraneo, C-387/17, EU:C:2019:51, n.° 56).

80      Dito isto, o Tribunal de Justiça já declarou igualmente que a eventual ilegalidade, à luz das regras do direito da União relativas aos auxílios de Estado, da isenção de um imposto não é suscetível de afetar a legalidade da cobrança desse imposto em si, pelo que o devedor do referido imposto não pode invocar que a isenção de que outras pessoas beneficiam constitui um auxílio de Estado para se subtrair ao pagamento desse imposto (v., neste sentido, Acórdãos de 5 de outubro de 2006, Transalpine Ölleitung in Österreich, C-368/04, EU:C:2006:644, n.° 51, e de 3 de março de 2020, Vodafone Magyarország, C-75/18, EU:C:2020:139, n.° 24).

81      Ora, se um tribunal nacional considerar que a isenção do IVA de que certos operadores beneficiaram constitui um auxílio de Estado, a concessão, sob a forma de indemnização, a um sujeito passivo que pagou esse imposto, de um montante equivalente ao IVA pago, teria justamente por efeito permitir que esse sujeito passivo se subtraísse ao pagamento do referido imposto.

82      Consequentemente, há que responder à sexta questão que o artigo 108.°, n.° 3, TFUE deve ser interpretado no sentido de que, nos casos em que a isenção do IVA de que certos operadores beneficiaram constitui um auxílio de Estado ilegal, um sujeito passivo que não beneficiou dessa isenção não pode receber, sob a forma de indemnização, um montante equivalente ao IVA pago.

 Quanto à quinta questão

83      Com a sua quinta questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 107.° TFUE deve ser interpretado no sentido de que a isenção do IVA na compra de bilhetes de lotaria e a exclusão de outros jogos de azar e a dinheiro oferecidos online dessa isenção constituem um auxílio de Estado incompatível com o mercado interno.

84      Resulta da decisão de reenvio que esta questão foi submetida no âmbito da ação intentada por um sujeito passivo com o intuito de recuperar, sob a forma de indemnização, o equivalente do IVA que pagou. Além disso, não resulta da decisão de reenvio que a referida questão tenha outro objeto.

85      Ora, decorre da resposta dada à sexta questão que, nos casos em que a isenção do IVA de que certos operadores beneficiaram constitui um auxílio de Estado, um sujeito passivo que não beneficiou dessa isenção não pode receber, sob a forma de indemnização, um montante equivalente ao IVA pago.

86      Tendo em conta a resposta dada à sexta questão, não há que responder à quinta questão.

 Quanto às despesas

87      Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Primeira Secção) declara:

1)      O artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, lido em conjugação com o princípio da neutralidade fiscal,

deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe a uma regulamentação nacional que estabelece uma diferença de tratamento entre, por um lado, a compra de bilhetes de lotaria online e, por outro, a participação noutros jogos de azar ou a dinheiro oferecidos online, ao excluir esta última da isenção do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) aplicável à primeira, desde que as diferenças objetivas entre estas duas categorias de jogos de azar ou a dinheiro sejam suscetíveis de influenciar de forma considerável a decisão do consumidor médio de recorrer a uma ou a outra destas categorias de jogos.

2)      O princípio da cooperação leal conforme consagrado no artigo 4.°, n.° 3, TUE e o princípio do primado do direito da União impõem ao juiz nacional que não aplique as disposições nacionais declaradas incompatíveis com o artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o princípio da neutralidade fiscal, sem que a existência de um acórdão do Tribunal Constitucional nacional que declara a manutenção dos efeitos dessas disposições nacionais tenha influência a este respeito.

3)      As regras do direito da União relativas à repetição do indevido devem ser interpretadas no sentido de que conferem ao sujeito passivo um direito a obter o reembolso do montante do IVA cobrado num Estado-Membro em violação do artigo 135.°, n.° 1, alínea i), da Diretiva 2006/112, desde que desse reembolso não resulte um enriquecimento sem causa para esse sujeito passivo.

4)      O artigo 108.°, n.° 3, TFUE deve ser interpretado no sentido de que, nos casos em que a isenção do IVA de que certos operadores beneficiaram constitui um auxílio de Estado ilegal, um sujeito passivo que não beneficiou dessa isenção não pode receber, sob a forma de indemnização, um montante equivalente ao IVA pago.

Assinaturas


*      Língua do processo: francês.