Edição provisória
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção)
17 de outubro de 2024 (*)
« Reenvio prejudicial — Fiscalidade — Sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) — Diretiva 2006/112/CE — Artigos 14.° e 15.° — Carregamento de veículos elétricos — Carregamento através de um equipamento disponibilizado por uma sociedade e que permite o acesso a uma rede de pontos de carregamento explorados por diferentes operadores — Qualificação da operação para efeitos de IVA — “Entrega de bens” — Transmissão efetuada ao abrigo de contratos de comissão »
No processo C-60/23,
que tem por objeto um pedido de decisão prejudicial apresentado nos termos do artigo 267.° TFUE, pelo Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo, Suécia), por Decisão de 3 de fevereiro de 2023, que deu entrada no Tribunal de Justiça em 6 de fevereiro de 2023, no processo
Skatteverket
contra
Digital Charging Solutions GmbH,
O TRIBUNAL DE JUSTIÇA (Quinta Secção),
composto por: I. Jarukaitis, presidente da Quarta Secção, exercendo funções de presidente da Quinta Secção, D. Gratsias (relator) e E. Regan, juízes,
advogado-geral: T. Ćapeta,
secretário: A. Lamote, administradora,
vistos os autos e após a audiência de 7 de fevereiro de 2024,
vistas as observações apresentadas:
– em representação da Skatteverket, por A.-S. Pallasdies, na qualidade de agente,
– em representação da Digital Charging Solutions GmbH, por U. Grefberg,
– em representação do Governo Sueco, por H. Eklinder e F.-L. Göransson, na qualidade de agentes,
– em representação do Governo Húngaro, por Zs. Biró-Tóth e Z. Fehér, na qualidade de agentes,
– em representação da Comissão Europeia, por M. Björkland e M. Herold, na qualidade de agentes,
ouvidas as conclusões da advogada-geral na audiência de 25 de abril de 2024,
profere o presente
Acórdão
1 O pedido de decisão prejudicial tem por objeto a interpretação dos artigos 14.° e 15.° da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado (JO 2006, L 347, p. 1), conforme alterada pela Diretiva 2009/162/UE do Conselho, de 22 de dezembro de 2009 (JO 2010, L 10, p. 14) (a seguir «Diretiva 2006/112»).
2 Este pedido foi apresentado no âmbito de um litígio que opõe a Digital Charging Solutions GmbH, uma sociedade de direito alemão, à Skatteverket (Administração Fiscal, Suécia) a respeito da validade de uma decisão fiscal prévia emitida em 8 de abril de 2022 (a seguir «decisão fiscal prévia»).
Quadro jurídico
Direito da União
3 O artigo 1.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112 prevê:
«Em cada operação, o [imposto sobre o valor acrescentado (IVA)], calculado sobre o preço do bem ou serviço à taxa aplicável ao referido bem ou serviço, é exigível, com prévia dedução do montante do imposto que tenha incidido diretamente sobre o custo dos diversos elementos constitutivos do preço.»
4 Nos termos do artigo 2.°, n.° 1, desta diretiva:
«Estão sujeitas ao IVA as seguintes operações:
a) As entregas de bens efetuadas a título oneroso no território de um Estado-Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade;
[...]
c) As prestações de serviços efetuadas a título oneroso no território de um Estado-Membro por um sujeito passivo agindo nessa qualidade;
[...]»
5 O artigo 14.° da referida diretiva dispõe:
«1. Entende-se por “entrega de bens” a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário.
2. Para além da operação referida no n.° 1, são consideradas entregas de bens as seguintes operações:
[...]
c) A transmissão de um bem efetuada nos termos de um contrato de comissão de compra ou de venda.
[...]»
6 Nos termos do artigo 15.°, n.° 1, da mesma diretiva:
«São equiparados a “bens corpóreos” a eletricidade, o gás, o calor, o frio e similares.»
Direito sueco
7 Em conformidade com o § 1, primeiro parágrafo, ponto 1, do capítulo 1 da mervärdesskattelagen (1994:200) [Lei (1994:200), relativa ao Imposto sobre o Valor Acrescentado], de 30 de março de 1994 (SFS 1994, no 200) (a seguir «Lei sobre o IVA»), é devido IVA, em princípio, a título das entregas de bens e das prestações de serviços que estão sujeitas a imposto e são efetuadas em território nacional por um sujeito passivo agindo nessa qualidade.
8 O § 6 deste capítulo da Lei sobre o IVA prevê que se consideram bens os bens corpóreos, incluindo bens imóveis, o gás, o calor, o frio e a energia elétrica. Este artigo acrescenta que se entende por prestação de serviços qualquer fornecimento diferente do que incide sobre bens.
9 O § 1, primeiro parágrafo, ponto 1, do capítulo 2 da Lei sobre o IVA dispõe que a entrega de bens é, nomeadamente, definida como uma cessão de bens efetuada a título oneroso, ao passo que o § 1, terceiro parágrafo, ponto 1, deste capítulo prevê que a prestação de serviços é definida como um serviço prestado, cedido ou efetuado de outra forma a favor de alguém a título oneroso.
Litígio no processo principal e questão prejudicial
10 A Digital Charging Solutions tem a sede da sua atividade económica na Alemanha e não dispõe de um estabelecimento estável na Suécia. A sociedade disponibiliza na Suécia acesso a uma rede de postos de carregamento aos utilizadores de veículos elétricos. Através da referida rede, os utilizadores recebem informações em tempo real sobre preços e sobre a disponibilidade dos postos de carregamento que fazem parte dessa rede. Além disso, o serviço fornecido inclui funções de pesquisa e localização dos postos de carregamento, bem como de planeamento de itinerários.
11 Os postos de carregamento que fazem parte dessa rede são explorados não pela Digital Charging Solutions mas por operadores com os quais a sociedade celebrou contratos com vista a permitir aos utilizadores de veículos elétricos recarregá-los. Para o efeito, a Digital Charging Solutions disponibiliza a esses utilizadores um cartão e uma aplicação informática que permite a sua autenticação. Aquando da utilização do cartão ou da aplicação, as sessões de carregamento são registadas no operador da rede de pontos de carregamento, que fatura essas sessões à Digital Charging Solutions. A faturação é feita mensalmente no final de cada mês civil e o pagamento deve ser efetuado no prazo de 30 dias.
12 Com base nas faturas emitidas pelos operadores de pontos de carregamento, a Digital Charging Solutions fatura, também mensalmente, aos utilizadores do cartão ou da aplicação, como elementos separados, primeiro, a quantidade de eletricidade fornecida e, segundo, o acesso à rede e às prestações conexas. O preço da eletricidade varia, mas é cobrada uma tarifa fixa pelo acesso à rede e a estas prestações. Esta tarifa é cobrada independentemente de o utilizador ter efetivamente comprado ou não eletricidade durante o período considerado. Não é possível comprar apenas eletricidade à Digital Charging Solutions sem pagar pelo acesso à rede e pelas referidas prestações.
13 Em 14 de abril de 2021, a Digital Charging Solutions apresentou à Skatterättsnämnden (Comissão de Direito Fiscal, Suécia) um pedido de decisão fiscal prévia. Em 8 de abril de 2022, esta comissão emitiu uma decisão segundo a qual o fornecimento efetuado pela Digital Charging Solutions constituía uma operação complexa principalmente caracterizada pelo fornecimento de eletricidade aos utilizadores e que se devia considerar que o lugar do fornecimento era na Suécia.
14 A Administração Fiscal interpôs recurso para o Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo, Suécia), que é o órgão jurisdicional de reenvio, pedindo a confirmação da decisão fiscal prévia. A Digital Charging Solutions também interpôs recurso para este órgão jurisdicional, mas pediu a alteração desta decisão fiscal prévia. A Digital Charging Solutions alegou perante o órgão jurisdicional de reenvio que existem, no caso em apreço, duas prestações distintas, a saber, um fornecimento de eletricidade e uma prestação de serviços de acesso à rede de pontos de carregamento, pelo que só o fornecimento de eletricidade deveria ser tributado na Suécia.
15 Como resulta do pedido de decisão prejudicial, a maioria dos membros da Comissão de Direito Fiscal considera que os operadores de pontos de carregamento fornecem eletricidade à Digital Charging Solutions que, por sua vez, a entrega aos utilizadores. Deste modo, trata-se de uma cadeia de operações no âmbito da qual esses operadores não estão contratualmente vinculados aos utilizadores.
16 Em contrapartida, uma minoria dos membros dessa comissão considera que a Digital Charging Solutions presta aos utilizadores um serviço que consiste, nomeadamente, em colocar à sua disposição uma rede de pontos de carregamento, concretizada pela faturação daí decorrente, o que implica que lhes conceda uma certa forma de crédito para a aquisição da eletricidade, tal como foi declarado, perante outras circunstâncias factuais nos Acórdãos de 6 de fevereiro de 2003, Auto Lease Holland (C-185/01, EU:C:2003:73), e de 15 de maio de 2019, Vega International Car Transport and Logistic (C-235/18, EU:C:2019:412). Esta abordagem tem especialmente em conta o facto de o utilizador poder escolher livremente as condições tais como, nomeadamente, a qualidade, a quantidade, o momento da compra e a maneira de utilizar a eletricidade.
17 Ora, para decidir o litígio nele pendente, o órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre o alcance que se deve atribuir à jurisprudência decorrente desses acórdãos.
18 Nestas circunstâncias, o Högsta förvaltningsdomstolen (Supremo Tribunal Administrativo) decidiu suspender a instância e submeter ao Tribunal de Justiça as seguintes questões prejudiciais:
«1) A prestação ao utilizador de um veículo elétrico que consiste no carregamento do veículo num posto de carregamento constitui uma entrega de bens na aceção [do artigo] 14.°, n.° 1, e [do artigo] 15.°, n.° 1, da Diretiva [2006/112]?
2) Em caso de resposta afirmativa à [primeira questão], deve considerar-se que essa entrega existe em todas as fases de uma cadeia de transações que inclui uma empresa intermediária, em que a cadeia de transações é acompanhada por contratos em todas as fases, mas só o utilizador do veículo tem o direito de decidir sobre questões como a quantidade, o momento e o local de carregamento, bem como o modo como a eletricidade será utilizada?»
Quanto às questões prejudiciais
Quanto à primeira questão
19 Com a primeira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o seu artigo 15.°, n.° 1, deve ser interpretado no sentido de que o fornecimento de eletricidade para carregar um veículo elétrico num ponto de carregamento que faz parte de uma rede pública desses pontos constitui uma entrega de bens, na aceção da primeira destas disposições.
20 Importa salientar que, como resulta da redação da primeira questão, esta tem por objeto o ato que consiste em carregar um veículo elétrico num ponto de carregamento, independentemente da intervenção de uma sociedade distinta do operador da rede desses pontos para fornecer ao utilizador o acesso à referida rede, sendo esta intervenção objeto da segunda questão.
21 O artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112 dispõe que se entende por «entrega de bens» a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário. Este conceito inclui qualquer operação de transferência de um bem corpóreo por uma parte que confira à outra parte o poder de dispor desse bem como se fosse o seu proprietário (Acórdão de 20 de abril de 2023, Dyrektor Krajowej Informacji Skarbowej, C-282/22, EU:C:2023:312, n.° 33 e jurisprudência referida).
22 Assim, a operação que consiste no encaminhamento de eletricidade com destino à bateria de um veículo elétrico constitui uma entrega de bens na medida em que esta operação habilita o utilizador do ponto de carregamento a consumir, para efeitos da propulsão do seu veículo, a eletricidade transferida, que, por força do artigo 15.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112, é equiparada a um bem corpóreo (Acórdão de 20 de abril de 2023, Dyrektor Krajowej Informacji Skarbowej, C-282/22, EU:C:2023:312, n.° 38).
23 Por conseguinte, há que responder à primeira questão que o artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o artigo 15.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112 deve ser interpretado no sentido de que o fornecimento de eletricidade para carregar um veículo elétrico num ponto de carregamento que faz parte de uma rede pública desses pontos constitui uma entrega de bens, na aceção da primeira destas disposições.
Quanto à segunda questão
24 Com a segunda questão, o órgão jurisdicional de reenvio pergunta, em substância, se o artigo 14.° da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o seu artigo 15.°, n.° 1, deve ser interpretado no sentido de que o carregamento de um veículo elétrico numa rede pública de pontos de carregamento à qual o utilizador tem acesso através de uma subscrição celebrada com uma sociedade diferente do operador dessa rede implica que a eletricidade consumida seja fornecida, num primeiro momento, pelo operador da referida rede à sociedade que concede o acesso a esta e, num segundo momento, por esta sociedade ao referido utilizador, mesmo que este último escolha a quantidade, o momento e o local do carregamento, bem como o modo de utilizar a eletricidade.
25 Ao especificar que os utilizadores dos veículos elétricos escolhem a quantidade, o momento e o local do carregamento, bem como a maneira de utilizar a eletricidade, a segunda questão corresponde às perguntas deste órgão jurisdicional quanto ao alcance da jurisprudência exposta no n.° 16 do presente acórdão, segundo a qual, atendendo a estas circunstâncias, se pode considerar que a Digital Charging Solutions não fornece um bem a esses utilizadores, mas exerce, na realidade, as funções de um fornecedor de crédito em relação aos referidos utilizadores.
26 A este respeito, há que salientar que o conceito de «entrega de bens» não se refere à transferência da propriedade nas formas previstas pelo direito nacional aplicável, mas inclui qualquer operação de transferência de um bem corpóreo por uma parte que confira a outra parte o poder de dispor dele, de facto, como se fosse o proprietário desse bem (Acórdãos de 18 de julho de 2013, Evita-K, C-78/12, EU:C:2013:486, n.° 33, e de 21 de novembro de 2013, Dixons Retail, C-494/12, EU:C:2013:758, n.° 20).
27 Ora, a transferência do poder de dispor de um bem corpóreo como proprietário, na aceção do artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112, não exige que a parte para a qual esse bem corpóreo é transferido o detenha fisicamente, nem que o referido bem corpóreo seja fisicamente transportado para ela e/ou fisicamente por ela recebido (Despacho de 15 de julho de 2015, Koela-N, C-159/14, EU:C:2015:513, n.° 38).
28 Assim, um mesmo bem pode ser objeto de duas entregas sucessivas na aceção do artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112, sendo simultaneamente transmitido, por ordem, diretamente do primeiro vendedor para o segundo adquirente (v., neste sentido, Acórdão de 10 de julho de 2019, Kuršu zeme, C-273/18, EU:C:2019:588, n.° 36).
29 Estas apreciações são também válidas para a eletricidade, que, em conformidade com o que foi recordado no n.° 22 do presente acórdão, é equiparada a um bem corpóreo por força do artigo 15.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112.
30 Dito isto, para responder à segunda questão, há que recordar que a tomada em consideração da realidade económica, que é, em princípio, refletida nos acordos contratuais, constitui um critério fundamental para a aplicação do sistema comum do IVA (v., neste sentido, Acórdãos de 20 de fevereiro de 1997, DFDS, C-260/95, EU:C:1997:77, n.° 23, e de 28 de fevereiro de 2023, Fenix International, C-695/20, EU:C:2023:127, n.° 72 e jurisprudência referida).
31 A este respeito, resulta das indicações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio que os operadores da rede de pontos de carregamento têm relações contratuais apenas com a Digital Charging Solutions e que, segundo os acordos correspondentes, esta sociedade disponibiliza aos utilizadores que optaram por se vincular pelos cartões e pela aplicação de autenticação que dá acesso a esta rede, permitindo assim a estes utilizadores carregar os seus veículos elétricos nos pontos que fazem parte da referida rede. Como foi exposto nos n.os 11 e 12 do presente acórdão, os operadores que exploram esses pontos de carregamento faturam mensalmente à Digital Charging Solutions o custo da eletricidade assim fornecida e esta última sociedade refatura, também mensalmente, esse custo aos utilizadores, ao qual acresce uma remuneração pelas prestações conexas, através de uma tarifa cujo montante não depende da quantidade de eletricidade fornecida e, deste modo, do custo desta eletricidade, nem do número de sessões de carregamento.
32 À semelhança do que a advogada-geral observou, em substância, no n.° 39 das suas conclusões, há que constatar que as circunstâncias em causa no processo principal se distinguem das dos processos que deram origem aos Acórdãos de 6 de fevereiro de 2003, Auto Lease Holland (C-185/01, EU:C:2003:73), e de 15 de maio de 2019, Vega International Car Transport and Logistic (C-235/18, EU:C:2019:412).
33 A este respeito, quanto ao primeiro deles, há que observar que a operação relativa ao reabastecimento do veículo em causa nesse processo se inscrevia no âmbito de um contrato de leasing e que, neste contexto, é tendo em conta, além disso, o facto de que, diferentemente das modalidades de faturação em causa no litígio principal no presente processo, as mensalidades pagas à sociedade de leasing representavam apenas um adiantamento, tendo o consumo real sido determinado no final do ano, que o Tribunal de Justiça considerou que o acordo relativo à gestão do combustível constituía um contrato de financiamento, ainda que parcial, de aquisição do combustível e que a sociedade de leasing exercia, na realidade, funções de fornecedor de crédito relativamente ao locatário do veículo em regime de leasing (v., neste sentido, Acórdão de 6 de fevereiro de 2003, Auto Lease Holland, C-185/01, EU:C:2003:73, n.os 35 e 36). No que respeita ao segundo processo, basta salientar que as circunstâncias em causa no litígio no processo principal também não são análogas àquelas em que uma sociedade-mãe decide que o reabastecimento de combustível das suas filiais será efetuado com cartões de combustível que lhes fornece e que podem ser utilizados em estações de serviço dos fornecedores indicados por essa sociedade-mãe (Acórdão de 15 de maio de 2019, Vega International Car Transport and Logistic, C-235/18, EU:C:2019:412, n.os 14 e 36).
34 A inexistência de um mecanismo de crédito que permita pré-financiar a aquisição de eletricidade é corroborada pelas modalidades de fixação da remuneração estipulada entre os utilizadores de pontos de carregamento e a Digital Charging Solutions. Com efeito, como foi exposto no n.° 31 do presente acórdão, esta sociedade não cobra uma retribuição de percentagem do montante do consumo de eletricidade faturado, mas uma tarifa fixa, independente da quantidade de eletricidade fornecida ao utilizador ou do número de sessões de carregamento.
35 Daqui resulta que, embora, como nos processos que deram origem aos acórdãos mencionados no n.° 33 do presente acórdão, seja o utilizador que decide quando, onde e em que quantidade adquire a eletricidade, os ensinamentos decorrentes destes acórdãos não são, todavia, transponíveis para o contexto do litígio no processo principal.
36 No caso em apreço, como a advogada-geral sublinhou no n.° 52 das suas conclusões, as estipulações contratuais entre os operadores de pontos de carregamento e a Digital Charging Solutions, por um lado, e entre esta última e os utilizadores destes pontos, por outro, implicam, segundo as informações fornecidas pelo órgão jurisdicional de reenvio, que são os utilizadores que iniciam, à sua discrição, o fornecimento de eletricidade no local, no momento e pela quantidade da sua escolha. A Digital Charging Solutions, por sua vez, não se compromete, junto dos operadores da rede desses pontos, a adquirir, de forma autónoma e independentemente das decisões dos utilizadores, uma qualquer quantidade de eletricidade, mas parece ocupar, como resulta da própria redação da segunda questão, o lugar de um intermediário.
37 Nestas condições, há que examinar esta configuração de relações contratuais tendo em conta o artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva 2006/112, que regula a transmissão de um bem efetuada ao abrigo de um contrato de comissão de compra ou de venda e que constitui, relativamente à definição geral da entrega de bens enunciada no artigo 14.°, n.° 1, desta diretiva, uma lex specialis cujos requisitos de aplicação têm caráter autónomo relativamente aos deste n.° 1 [v., neste sentido, Acórdão de 25 de fevereiro de 2021, Gmina Wrocław (Conversão do direito de usufruto), C-604/19, EU:C:2021:132, n.° 55 e jurisprudência referida].
38 A aplicação do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva 2006/112 exige que estejam preenchidos dois requisitos. Por um lado, deve existir uma procuração em cuja execução o comissário intervém, por conta do comitente, na entrega de bens e, por outro, é necessário que haja identidade entre as entregas de bens adquiridos pelo comissário e as entregas dos bens vendidos ou cedidos (v., neste sentido, Acórdão de 12 de novembro de 2020, ITH Comercial Timişoara, C-734/19, EU:C:2020:919, n.° 51).
39 Se estes dois requisitos estiverem preenchidos, o artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva 2006/112 cria uma ficção jurídica de duas entregas de bens idênticas efetuadas consecutivamente, as quais estão abrangidas pelo âmbito de aplicação do IVA. Por força desta ficção, considera-se que um sujeito passivo que, agindo em nome próprio mas por conta de outrem, intervém numa entrega de bens, recebeu e entregou pessoalmente os bens em questão (v., neste sentido, Acórdão de 12 de novembro de 2020, ITH Comercial Timişoara, C-734/19, EU:C:2020:919, n.os 49 e 50 e jurisprudência referida).
40 Nesse caso, o sujeito passivo em questão desempenha, nos termos do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva 2006/112, um determinado papel económico na entrega de bens em causa, o que permite qualificá-lo de intermediário que atua em nome próprio mas por conta de outrem (v., neste sentido, Acórdão de 19 de fevereiro de 2009, Athesia Druck, C-1/08, EU:C:2009:108, n.os 35 e 36).
41 Além disso, importa salientar que é conforme com a natureza de um contrato de comissão que tem por objeto a aquisição de eletricidade com vista a carregar um veículo elétrico que a escolha da qualidade, da quantidade, do momento da compra e do modo de utilizar a eletricidade reverta para o utilizador do ponto de carregamento e não para o comissário.
42 No caso em apreço, não se pode excluir que as ligações em causa no processo principal possam ser analisadas como contratos de comissão de venda celebrados entre os operadores da rede de pontos de carregamento, enquanto comitentes, e a Digital Charging Solutions, enquanto comissário, no âmbito dos quais estes operadores conferem a esta última um mandato para vender eletricidade, em seu nome mas por conta daqueles, aos utilizadores de veículos elétricos. Em todo o caso, sob reserva das verificações de ordem factual que cabem ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar, as ligações em causa no processo principal podem também ser qualificadas como contratos de comissão de compra celebrados entre os utilizadores de pontos de carregamento, enquanto comitentes, e a Digital Charging Solutions, enquanto comissário, no âmbito dos quais esses utilizadores dão a esta última um mandato para adquirir, aos operadores de pontos de carregamento, em nome próprio mas por sua conta daqueles, a eletricidade destinada a ser-lhes fornecida para efeitos de carregamento dos seus veículos elétricos.
43 Daqui resulta que o primeiro requisito de aplicação do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva 2006/112 parece estar preenchido.
44 Quanto ao segundo requisito de aplicação desta disposição, afigura-se também preenchido, dado que as entregas de bens que se consideram terem sido adquiridas pelo comissário e as entregas dos bens vendidos ou cedidos pelo mesmo são idênticas.
45 A este respeito, uma vez que o litígio no processo principal tem ainda por objeto a questão de saber se a prestação efetuada pela Digital Charging Solutions constitui uma operação complexa cujo fornecimento de eletricidade é o elemento característico e predominante ou se essa prestação é composta por duas prestações distintas, a saber, um fornecimento de eletricidade e uma prestação de acesso à rede de pontos de carregamento, há que identificar os elementos determinantes para efeitos dessa qualificação e determinar em que medida essa qualificação pode ter eventuais consequências no que respeita ao segundo requisito de aplicação da referida disposição.
46 Importa recordar que, quando uma operação é constituída por um conjunto de elementos e de atos, há que tomar em consideração todas as circunstâncias em que se desenvolve esta operação para determinar, por um lado, se a referida operação dá lugar, para efeitos de IVA, a duas ou mais prestações distintas ou a uma prestação única e, por outro, se, neste último caso, esta prestação única deve ser qualificada de «entrega de bens» ou de «prestação de serviços» (Acórdão de 20 de abril de 2023, Dyrektor Krajowej Informacji Skarbowej, C-282/22, EU:C:2023:312, n.° 27 e jurisprudência referida).
47 Em especial, decorre do artigo 1.°, n.° 2, segundo parágrafo, da Diretiva 2006/112 que cada operação deve ser normalmente considerada distinta e independente, não devendo a operação constituída por uma só prestação no plano económico ser artificialmente decomposta para não alterar a funcionalidade do sistema do IVA. A este respeito, há que considerar que existe uma prestação única quando dois ou mais elementos fornecidos ou atos fornecidos pelo sujeito passivo ao cliente estão tão estreitamente ligados que formam, objetivamente, uma única prestação económica indissociável cuja decomposição revestiria caráter artificial (Acórdão de 20 de abril de 2023, Dyrektor Krajowej Informacji Skarbowej, C-282/22, EU:C:2023:312, n.° 28 e jurisprudência referida).
48 Além disso, em certas circunstâncias, várias prestações formalmente distintas, suscetíveis de serem realizadas de forma isolada e de dar assim lugar, separadamente, à tributação ou à isenção, devem ser consideradas uma operação única quando não sejam independentes. Tal se verifica, nomeadamente, quando um ou vários elementos devem ser considerados uma prestação principal, ao passo que, pelo contrário, outros elementos devem ser considerados uma ou várias prestações acessórias que partilham do tratamento fiscal da prestação principal. Em especial, uma prestação deve ser considerada acessória a uma prestação principal quando constitua para a clientela, não uma finalidade em si mesma, mas o meio de beneficiar, nas melhores condições, da prestação principal (Acórdão de 20 de abril de 2023, Dyrektor Krajowej Informacji Skarbowej, C-282/22, EU:C:2023:312, n.os 29 e 30 e jurisprudência referida).
49 No âmbito da cooperação instituída pelo artigo 267.° TFUE, cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais determinar se, nas circunstâncias do caso concreto, a prestação em causa constitui uma prestação única e fazer todas as apreciações de facto definitivas a este respeito (Acórdão de 20 de abril de 2023, Dyrektor Krajowej Informacji Skarbowej, C-282/22, EU:C:2023:312, n.° 31 e jurisprudência referida). No entanto, cabe ao Tribunal de Justiça fornecer a esses órgãos jurisdicionais nacionais todos os elementos de interpretação do direito da União que possam ser úteis para a decisão da causa de que conhecem (Acórdão de 18 de abril de 2024, Companhia União de Crédito Popular, C-89/23, EU:C:2024:333, n.° 38 e jurisprudência referida).
50 No caso em apreço, como foi exposto no n.° 12 do presente acórdão, a Digital Charging Solutions fatura mensalmente aos utilizadores, por um lado, o custo da eletricidade que adquiriram para recarregar os seus veículos e, por outro, uma tarifa fixa a título de remuneração pelo acesso à rede de pontos de carregamento, informação sobre os preços da eletricidade e sobre a disponibilidade desses pontos e as funções de pesquisa e localização dos referidos pontos de carregamento e de planificação do itinerário.
51 A este respeito, como foi exposto no n.° 30 do presente acórdão, a tomada em consideração da realidade económica, tal como refletida, em princípio, nos acordos contratuais, constitui um critério fundamental para a aplicação do sistema comum do IVA.
52 Por conseguinte, a questão de saber se o fornecimento de eletricidade por uma sociedade como a Digital Charging Solutions para recarregar um veículo elétrico forma, juntamente com as outras prestações descritas no n.° 50 do presente acórdão, uma operação complexa única pode depender das condições em que a remuneração desse fornecimento e desses serviços se torna exigível em conformidade com os respetivos acordos contratuais.
53 Assim, os serviços de acesso a equipamentos de carregamento, de assistência técnica, de reserva de um ponto de carregamento, de consulta do histórico de carregamento ou de acumulação de créditos numa carteira digital que não são fornecidos mediante o pagamento de uma tarifa fixa e independente de qualquer fornecimento de eletricidade podem ser considerados no sentido de formar, juntamente com este fornecimento, uma operação complexa única para efeitos de IVA (v., neste sentido, Acórdão de 20 de abril de 2023, Dyrektor Krajowej Informacji Skarbowej, C-282/22, EU:C:2023:312, n.° 32).
54 Em contrapartida, como a advogada-geral observou nos n.os 24 a 29 das suas conclusões, quando uma remuneração por essas outras prestações deve ser paga pelo utilizador sob a forma de uma tarifa fixa separada e paga mensalmente, independentemente de qualquer fornecimento de eletricidade, há que considerar, sob reserva das verificações que cabe ao órgão jurisdicional de reenvio efetuar, que esses serviços são distintos e independentes do fornecimento de eletricidade propriamente dito.
55 Com efeito, considerar, nessas condições, que os serviços em questão são indissociáveis do fornecimento de eletricidade ou puramente acessórios a este, de modo que formem, juntamente com esse fornecimento, uma operação complexa única, poderia ignorar de forma artificial a realidade económica em dois aspetos. Primeiro, isto diz respeito aos períodos mensais em que o utilizador não recebe eletricidade, sendo obrigado a pagar, nos termos das cláusulas contratuais que o vinculam à Digital Charging Solutions, a tarifa fixa relativa a esses serviços. Segundo, de acordo com estas disposições, trata-se do facto de esta tarifa, que é faturada como elemento separado, não variar em função da quantidade de eletricidade fornecida ao utilizador nem em função do número de sessões de carregamento abrangidas pelo mesmo período mensal.
56 Por outro lado, desde que o utilizador possa carregar o seu veículo em redes de pontos de carregamento situadas em vários Estados-Membros e que, deste modo, o lugar de fornecimento da eletricidade possa variar em função das diferentes aquisições efetuadas, tratar os referidos serviços no sentido de formar o elemento acessório de uma operação única complexa cuja prestação principal é constituída pelo fornecimento de eletricidade revestiria um caráter ainda mais artificial do ponto de vista da realidade económica.
57 Nestas condições, como a advogada-geral observou no n.° 68 das suas conclusões, o fornecimento de eletricidade propriamente dito efetuado pela Digital Charging Solutions ao utilizador não apresenta diferenças em relação ao fornecimento de eletricidade efetuado pelo operador do ponto de carregamento a esta sociedade, pelo que o segundo requisito do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva 2006/112 está preenchido.
58 Todavia, não se pode deduzir daqui que este segundo requisito não está preenchido se o órgão jurisdicional de reenvio considerar que a prestação efetuada pela Digital Charging Solutions constitui uma operação única e complexa da qual o fornecimento de eletricidade é o elemento característico e predominante.
59 Com efeito, como exposto nos n.os 47 e 48 do presente acórdão, tal qualificação resulta do facto de os outros serviços prestados por essa sociedade serem considerados indissociáveis do fornecimento de eletricidade ou puramente acessórios a este. Por conseguinte, esses serviços, que justificam a remuneração do intermediário, apenas visam permitir que seja fornecido ao utilizador um ponto de carregamento da eletricidade objeto da entrega de bens considerada efetuada pelo operador desse ponto a este intermediário.
60 À luz das considerações precedentes, há que responder à segunda questão que o artigo 14.° da Diretiva 2006/112, lido em conjugação com o seu artigo 15.°, n.° 1, deve ser interpretado no sentido de que o carregamento de um veículo elétrico numa rede pública de pontos de carregamento à qual o utilizador tem acesso através de uma subscrição celebrada com uma sociedade diferente do operador desta rede implica que se considere que a eletricidade consumida é fornecida, num primeiro momento, pelo operador da referida rede à sociedade que concede o acesso à mesma e, num segundo momento, por esta sociedade a este utilizador, ainda que este último escolha a quantidade, o momento e o local do carregamento, bem como o modo de utilizar a eletricidade, quando essa sociedade atue em nome próprio mas por conta do utilizador, no âmbito de um contrato de comissão, na aceção do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), desta diretiva.
Quanto às despesas
61 Revestindo o processo, quanto às partes na causa principal, a natureza de incidente suscitado perante o órgão jurisdicional de reenvio, compete a este decidir quanto às despesas. As despesas efetuadas pelas outras partes para a apresentação de observações ao Tribunal de Justiça não são reembolsáveis.
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal de Justiça (Quinta Secção) declara:
1) O artigo 14.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado, conforme alterada pela Diretiva 2009/162/UE do Conselho, de 22 de dezembro de 2009, lido em conjugação com o artigo 15.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112, conforme alterada,
deve ser interpretado no sentido de que:
o fornecimento de eletricidade para carregar um veículo elétrico num ponto de carregamento que faz parte de uma rede pública desses pontos constitui uma entrega de bens, na aceção da primeira destas disposições.
2) O artigo 14.° da Diretiva 2006/112, conforme alterada pela Diretiva 2009/162, em conjugação com o artigo 15.°, n.° 1, da Diretiva 2006/112, conforme alterada,
deve ser interpretado no sentido de que:
o carregamento de um veículo elétrico numa rede pública de pontos de carregamento à qual o utilizador tem acesso através de uma subscrição celebrada com uma sociedade diferente do operador desta rede implica que se considere que a eletricidade consumida é fornecida, num primeiro momento, pelo operador da referida rede à sociedade que concede o acesso à mesma e, num segundo momento, por esta sociedade a este utilizador, ainda que este último escolha a quantidade, o momento e o local do carregamento, bem como o modo de utilizar a eletricidade, quando essa sociedade atue em nome próprio mas por conta do utilizador, no âmbito de um contrato de comissão, na aceção do artigo 14.°, n.° 2, alínea c), da Diretiva 2006/112, conforme alterada.
Assinaturas
* Língua do processo: sueco.